Opinião

A natureza jurídica do preâmbulo da Constituição

Autores

  • é bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) membro pesquisador do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito (Gemadi) e do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos Comunicação e Mídia e membro das comissões de Direito Público e de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – 5ª Subseção de Volta Redonda (RJ).

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  • é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social especialista em Direito Público pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

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30 de maio de 2024, 6h33

A Constituição é estruturalmente dividida em três partes, quais sejam: preâmbulo, corpo normativo e Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

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O seu corpo normativo compreende o conjunto de normas constitucionais propriamente ditas (do artigo 1º ao artigo 250), sendo também chamado de “parte permanente”, eis que goza de vigência indeterminada. O ADCT, por sua vez, diz respeito àquelas normas constitucionais de caráter temporário, cuja principal finalidade reside em garantir a transição entre as ordens jurídicas. Ou seja, entre a anterior e a inaugurada pela Carta Constitucional vigente — promovendo melhor recepção de suas normas, inclusive no contexto social.

No tocante ao preâmbulo, o qual se situa na abertura de todas as constituições brasileiras, até a atualidade, ele distingue-se da parte permanente e daquela transitória, precedendo-as.  Antes, porém, de pormenorizar as especificidades de tal componente, convém aduzi-lo, nos exatos termos da Lex Mater de 1988:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. [1]

Pela leitura sumária do preâmbulo constitucional, verifica-se um teor principiológico consistente, sendo também possível extrair (ou, ao menos, depreender) as intenções da Constituinte, no que concerne à elaboração e à promulgação da Lei Maior. Nos dizeres de Uadi Lammêgo Bulos [2], trata-se de um “documento de intenções que serve para certificar a legitimidade e a origem do novo texto”, não integrando — enquanto “proclamação de princípios” — o bloco de constitucionalidade da Magna Carta. Assim, sendo parte introdutória, não equivale às normas constitucionais em sentido estrito, motivo pelo qual a doutrina majoritária o entende como não possuidor de força normativa — eis que, de fato, não cria direitos, nem tampouco estabelece obrigações.

Entretanto, em que pese não se muna de caráter normativo e, ipso-facto, não sirva como parâmetro para o controle de constitucionalidade, isso não indica sua irrelevância. Sob essa constatação, perceba-se que o preâmbulo esclarece as diretrizes gerais eleitas pela Constituinte, quando da formulação da Lei Fundamental, sem prejuízo de seu caráter político-ideológico.

Exemplificativamente, observe-se que ao exprimir “sob a proteção de Deus”, promulgando o Texto Maior, o legislador originário afasta qualquer pretensão no sentido de um Estado laicista, isto é, ateu ou antirreligioso — fato este reiterado por numerosos dispositivos constitucionais [3] (que permitem inferir o reconhecimento, pelo Estado, dos valores religiosos), sem prejuízo de sua laicidade.

Note-se que o preâmbulo, além de seu valor ideológico, também exerce função juridicamente relevante. Por esse motivo, Marcelo Novelino [4] — comentando a tese da relevância interpretativa (ou jurídica específica ou, ainda, indireta) — assevera que, “ao indicar a intenção do constituinte originário e consagrar os valores supremos da sociedade, o preâmbulo serve de vetor interpretativo fornecendo razões contributivas para a interpretação dos enunciados normativos contidos no texto constitucional”. Desse modo, é necessário sublinhar sua indubitável importância para fins interpretativos, sendo, por isso, estudado e melhor situado no âmbito da hermenêutica constitucional.

Desse modo, quanto à sua natureza, é necessário ponderar duas premissas para que se chegue à conclusão adequada. Isto é, ao mesmo tempo em que não se pode conceber a irrelevância jurídica em absoluto do preâmbulo constitucional, também não é possível verificar sua força normativa, eis que não possui eficácia idêntica àquela dos outros dispositivos constantes da Lex Mater.

Assim, parece acertada a “tese da relevância indireta”, conforme preleciona Bulos [5], e pela qual se vislumbra que seu caráter não normativo é amortizado pelo valor que possui no âmbito da interpretação constitucional e pela orientação que também presta à atividade política — motivo pelo qual “o vigor de seus componentes não pode ser negado, tampouco supervalorizado”.

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  Acesso em: 29 fev. 2024.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: JusPODIVM. 2024.


[1]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  Acesso em: 29 fev. 2024.

[2]BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 502.

[3]CF. Art. 5º. “[…] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; […]”. Citem-se, ainda, os arts. 143, §§ 1.º, 2.º; 150, VI, “b”; 210, § 1.º; 226, § 2.º.

[4]NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: JusPODIVM. 2024. p. 189.

[5]BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 503-504.

Autores

  • é bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro pesquisador do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito (Gemadi) e do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Comunicação e Mídia e membro das comissões de Direito Público e de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – 5ª Subseção de Volta Redonda (RJ).

  • é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR, doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social, especialista em Direito Público, pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética, Ética Aplicada, e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

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