Opinião

Código Civil: por que os cônjuges devem deixar de ser herdeiros necessários

Autor

  • Tania Nigri

    é especialista e mestre em Direito Econômico e autora do livro O Sigilo Bancário e a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal lançado pela Editora IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.

    View all posts

26 de maio de 2024, 6h36

A comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de reforma do Código Civil encerrou seus trabalhos, entregando o documento ao Senado, em meados de abril de 2024. Dentre as alterações sugeridas, uma das mais polêmicas é a retirada dos cônjuges do rol dos herdeiros necessários.

Freepik
Amante, adultério, caso extraconjugal, divórcio, separação de casal

O Código Civil de 2002, cujo anteprojeto começou a ser elaborado em 1969, teve sua tramitação iniciada no Congresso em 1975, quando o divórcio sequer havia sido legalizado no Brasil, vindo a ser sancionado apenas em 2002, portanto 33 anos após o início de sua elaboração. Esse extenso período de tramitação resultou em um código que já nasceu obsoleto e incapaz de refletir as profundas mudanças na sociedade e nas famílias brasileiras, que ganharam novas configurações, como, por exemplo, as famílias monoparentais, homoafetivas e recompostas.

Pelo Código Civil de 2002, baseado na crença dos casamentos perenes, o cônjuge foi alçado à condição de super-herdeiro [1], herdando os bens particulares do falecido, em concorrência com descendentes ou ascendentes, mesmo quando os casamentos ocorram sob o regime de separação convencional de bens, sendo-lhe assegurado, ainda, a quarta parte da herança, quando a concorrência se der com seus próprios descendentes [2].

Entendimento do STJ

No ano de 2009, ao ser chamado a interpretar se, de fato, a viúva, casada pelo regime da separação convencional de bens, participaria da herança do marido, já que nem mesmo o meio jurídico compreendia essa extensão de direitos, o Superior Tribunal de Justiça [3] entendeu que não remanesceria, para o cônjuge casado mediante separação de bens, o direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado pelo casal, que obrigaria as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não seria herdeiro necessário.

No caso julgado, uma viúva postulou sua habilitação no processo de inventário, como herdeira necessária do falecido, mas os filhos dele alegaram que ela nada herdaria, já que o regime da separação total de bens foi lavrado em escritura pública de pacto antenupcial, com todas as cláusulas de incomunicabilidade, previstas em lei, assinalando os ministros que esse regime valeria não apena durante o casamento, mas também quando da sua dissolução, seja por separação, divórcio ou falecimento de um dos cônjuges.

Os filhos do falecido argumentaram que o pai foi casado, pela primeira vez com a mãe deles e que ela morreu tragicamente em um acidente de carro no Carnaval de 1999, casando-se posteriormente com a madrasta, 31 anos mais jovem, no regime de separação convencional de bens, inclusive dos aquestos (bem adquirido na vigência do matrimônio), tal como declarado na escritura do pacto antenupcial.

Spacca

Ao votar, a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, destacou que o casal escolheu voluntariamente se casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos, e tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge, quando poderia fazê-lo. Portanto, a viúva nada deveria herdar.

Virada

Posteriormente àquele precedente, o STJ veio a modificar esse entendimento, tendo sido afetado o Recurso Especial nº 1.382.170/SP, para que o assunto fosse pacificado e, somente em 22/4/2015, portanto 13 anos após a promulgação do Código Civil, o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de separação convencional de bens, passou a ostentar, de forma incontestável, a condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes do falecido, tendo o acórdão ficado assim ementado:

“CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC

  1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. 3. Recurso especial desprovido” (REsp 1.382.170/SP, Relator Ministro Moura Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 22/4/2015, DJe 26/5/2015).

Sem discriminação

Ainda não é tudo. No ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não pode haver discriminação entre os direitos de herança dos cônjuges e dos companheiros, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Portanto, para a corrente majoritária, à qual este autor se filia, os companheiros também passaram a ser herdeiros necessários, desde a promulgação do Código Civil atual [4].

Dessa forma, cônjuges e companheiros sempre herdarão parte ou a totalidade dos bens particulares do falecido, independentemente do regime que o casal tenha escolhido ao se casar, ou seja, atualmente, de nada vale a autonomia da vontade dos casais que conversam, debatem e, por fim, escolhem qual regime, diante da configuração daquela família, será o mais adequado ao casamento ou união estável que estão iniciando.

Além do direito à herança, está assegurado o direito real de habitação, ou seja, a prerrogativa de o viúvo ou viúva permanecer no imóvel, que era destinado à residência do casal, sem nada pagar e de forma exclusiva, até a morte, desde que esse bem seja o único daquela natureza a inventariar. Além de impedir a exigência de remuneração pelo uso exclusivo do bem (mesmo que os filhos do falecido sejam condôminos), o STJ ainda entende que não é autorizada a extinção do condomínio, nem tampouco a alienação do bem enquanto perdurar esse direito [5].

Subversão

Toda essa situação, como dito anteriormente, foi gestada pelos legisladores, ao longo de 33 anos, baseados nas famílias brasileiras do século 20, época em que a maioria das pessoas permanecia casadas até a morte e quando ficavam viúvas, especialmente as mulheres ainda não inseridas no mercado de trabalho, precisavam, de fato, desse amparo legal.

Apesar de ser inegável a desigualdade entre homens e mulheres, o perfil das famílias modernas é completamente diferente daquelas do Código de 2002, havendo uma quantidade imensa de famílias recompostas, resultantes de novos casamentos ou uniões estáveis, com filhos e bens de relações anteriores, que vêm tendo seus patrimônios misturados, muitas vezes contra suas vontades e em grave prejuízo à herança desses descendentes, que têm dividido os bens que o genitor herdou ou construiu sozinho, com o novo cônjuge ou companheiro do pai ou da mãe [6].

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil registrou, no ano de 2022, mais de 420 mil divórcios, o que constitui o maior número da série histórica, iniciada em 2007. Isso deixa claro que não faz sentido, nos dias atuais, que, além da meação, resguardada pela lei atual e pela proposta de reforma do Código Civil, o cônjuge e o companheiro sobreviventes tenham direito aos bens que o outro construiu antes de se casar, herdou dos seus familiares ou recebeu em doação, já que, além de injusta, essa condição de super-herdeiro, na prática, acaba por estimular fortemente os relacionamentos com finalidades escusas.

Pelo Código Civil atual, independentemente do tempo que dure o casamento ou união estável, o viúvo e a viúva herdarão os bens que não ajudou a construir, mesmo quando o regime seja o da separação convencional do bem.

Não há dúvidas que o CC subverteu o sistema diferenciado dos regimes de bens, igualando-os após a morte, já que em todos eles, salvo na separação legal, o viúvo terá direito à parte dos bens que não ajudou a construir, além da meação, quando existente. A única diferença é que uns receberão esse patrimônio a título de herança (comunhão parcial e separação total de bens) e outros a título de meação (comunhão total de bens).

Se as pessoas desejarem essa comunicação total do patrimônio na vida e após a morte, o mais correto é que se casem pelo regime da comunhão total de bens, que, inclusive, era o regime legal até o ano de 1977, antes da promulgação da Lei do Divórcio [7].

Ilustrando o absurdo

Vamos exemplificar o alcance do Código Civil atual, para melhor compreensão das situações absurdas que podem acontecer, em tempos de famílias recompostas: João e Maria queriam se casar, mas como Maria já era mãe de José, seu filho do primeiro casamento, optou pelo regime da separação total de bens, especialmente porque havia herdado uma fazenda dos seus pais e foi informada que, nesse regime, os bens herdados seriam incomunicáveis.

Pouco tempo após o casamento, já desconfiada que João tinha um relacionamento com Laura, sua ex-namorada, Maria teve um infarto e veio a falecer, deixando a fazenda que era dos seus pais, como herança para João (50%) e José (50%). Após a viuvez, João decide se casar com Laura e, antes de terem filhos, ele vem a falecer, deixando sua nova esposa como sua única herdeira, já que não tinha filhos, nem pais vivos, passando Laura a ser dona dos 50% da fazenda, que era, originalmente, dos pais da ex-mulher do seu marido.

Essa situação absurda também aconteceria na comunhão total de bens, pela qual João seria meeiro da fazenda, e na comunhão parcial de bens, na qual ele, da mesma forma, seria herdeiro. Pelo Código Civil atual, o cônjuge sempre terá direito aos bens que não ajudou a comprar, salvo no regime da separação legal de bens, que não pode ser escolhida pelos cônjuges, pois se aplica apenas aos casos previstos em lei.

Atualização

Se o projeto de reforma do Código Civil for aprovado, João, do exemplo acima, nada herdaria, salvo se Maria desejasse contemplá-lo através de testamento, já que a fazenda, por ser um bem particular dela, seria herdada apenas pelo seu filho José, que passaria a ser dono de 100% dela.

O anteprojeto mantem o direito à meação dos viúvos, mas determina que os bens particulares do falecido sejam herdados, primeiramente, pelos descendentes; na sua falta, pelos ascendentes, e só na ausência desses dois, pelo cônjuge, que será alçado ao terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, além de passar a ser um herdeiro facultativo e não mais necessário, como ocorre com o Código Civil atual.

Essa mudança legislativa é necessária e urgente, pois consagra a justiça e a ética, além de ir ao encontro do perfil das famílias contemporâneas, majoritariamente chefiadas por mulheres [8], que criam e sustentam seus filhos, muitas vezes sozinhas, e temem que seus novos relacionamentos amorosos venham a prejudicar a herança daqueles descendentes, que elas desejam proteger, quando vierem a falecer.

 


[1] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

[2] Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.

[3] STJ – REsp: 992.749 MS 2007/0229597-9, relator: ministra NANCY ANDRIGHI, data de julgamento: 01/12/2009, T3 – 3ª Turma, Data de Publicação: DJe 05/02/2010RSTJ vol. 217 p. 820.

[4] A decisão foi proferida no julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 646721 e 878694, ambos com repercussão geral reconhecida.

[5] Esse entendimento foi reafirmado pela Terceira Turma no julgamento do REsp 1.846.167. A relatora explicou que o direito real de habitação reconhecido ao cônjuge ou companheiro sobrevivente decorre de imposição legal, tem natureza vitalícia e personalíssima, o que significa que ele pode permanecer no imóvel até a morte.

[6] A elaboração de um testamento pode reduzir a parte que será destinada ao cônjuge ou companheiro, mas eles não podem ser excluídos da herança, pois são herdeiros necessários.

[7] O regime de comunhão parcial de bens passou a ser o regime legal de bens no Brasil a partir de 27 de dezembro de 1977, com a publicação da Lei Federal nº 6.515/77, também conhecida como Lei do Divórcio.

[8] Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PnadC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, 50,8% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. Em 2023, esse número aumentou para 51,7%.

Autores

  • é advogada e psicanalista, especialista e mestre em Direito Econômico, pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões e autora dos livros O Sigilo Bancário e a Jurisprudência do STFM, União Estável”, Herança, Contrato de Namoro, Divórcio, Pensão Alimentícia e Guarda de Filhos.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!