Opinião

Extinção da punibilidade do delito antecedente como paradigma para atipicidade da lavagem

Autores

  • Tapir Rocha Neto

    é doutorando mestre e especialista em Ciências Penais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados.

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  • Natan Lopes

    é pós-graduando em Ciências Penais pela PUC-RS pós-graduando em advocacia criminal e advogado no escritório Mateus Marques Advocacia Criminal.

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26 de maio de 2024, 6h08

Informativo de Jurisprudência n° 805 do Superior Tribunal de Justiça, publicado em 2 de abril de 2024, apresentou um caso em que a 6° Turma da Corte, diante da extinção da punibilidade do crime de sonegação fiscal (artigo 1º, inciso V, artigo 11 e artigo 12, inciso I, da Lei 8.137/90), reconheceu a atipicidade do delito de lavagem de dinheiro que dele decorria (artigo 1º, §1º, inciso I, da Lei 9.613/98).

Segundo o voto condutor do acórdão proferido pelo ministro Relator Sebastião Reis Júnior, com o pagamento integral do débito tributário, “fora declarada a extinção da punibilidade da conduta apontada como crime contra a ordem tributária pelo primeiro grau de jurisdição. Como consequência, ausente delito antecedente, a imputação de lavagem de capital não se sustenta[1].

O acórdão chama a atenção sobretudo diante da previsão contida no artigo 2º, § 1º, da Lei 9.613/98, que prevê que os fatos que configuram o delito de lavagem de dinheiro serão puníveis “ainda que (…) extinta a punibilidade da infração penal antecedente”. A legislação brasileira adotou a regra da acessoriedade limitada para o crime de lavagem de dinheiro, de modo que não se faz necessária a condenação pela infração penal antecedente para que seja possível a imputação pelos crimes previstos na Lei 9.613/98, bastando, para tanto, somente a “presença de indícios suficientes da existência da infração penal antecedente” [2]. A orientação jurisprudencial do STJ seguia nesse sentido, justamente em razão da autonomia entre a infração penal antecedente e o crime de lavagem de dinheiro [3].

Embora a indiscutível autonomia material e processual [4], não há dúvidas sobre a dependência entre os delitos, a revelar que a infração penal antecedente configura inclusive uma elementar constitutiva do tipo de lavagem de dinheiro [5]. É dizer: sem a consumação de uma infração penal prévia, não há que se falar na configuração da lavagem de dinheiro.

Caso concreto

No caso julgado pelo STJ, a única conduta apontada como crime antecedente à lavagem de dinheiro imputada foi o delito de sonegação fiscal. Os acusados foram denunciados como incursos nas sanções do artigo 1º, inciso V, artigo 11 e artigo 12, inciso I, da Lei 8.137/90 e quitaram integralmente o débito tributário devido, o que fez com que o juízo de primeiro grau extinguisse a punibilidade com relação ao crime contra a ordem tributária. A partir desse contexto, o STJ constatou que haveria atipicidade da sonegação fiscal e, como consequência, reconheceu também a atipicidade da lavagem de dinheiro.

Constou no acórdão da 6ª Turma do STJ que o pagamento integral teria sido efetuado pelos denunciados “antes da constituição definitiva” do tributo e da multa. Se assim ocorreu, efetivamente não há que se falar na consumação da sonegação fiscal, sobretudo diante da Súmula Vinculante 24 do STF, de modo que seria acertada a conclusão sobre o reconhecimento da atipicidade da sonegação fiscal e, por consequência lógica, da própria lavagem de capitais subsequente.

Spacca

No entanto, do que se depreende da narrativa fática do caso, consta que o pagamento teria ocorrido após o oferecimento da denúncia e depois do esgotamento da esfera administrativa em relação à aferição da dívida tributária devida, daí porque o juízo de primeiro grau decretou extinta a punibilidade da sonegação fiscal (o que não pode ser confundido com a atipicidade da conduta), na forma da legislação de regência.

Sem se concentrar na eventual impropriedade técnica incorrida pelo juízo de primeiro grau ou pela 6ª Turma do STJ (no que se refere à confusão entre atipicidade da conduta e extinção da punibilidade) e sem adentrar no mérito da discussão sobre a aptidão dos crimes fiscais serem antecedentes à lavagem de dinheiro [6], certo é que esse caso traz luz novamente à necessidade de revolvimento dos movimentos legislativos para a reforma da parte final do artigo 2º, § 1º, da Lei 9.613/98.

É de se questionar: faz realmente sentido manter viável a imputação de um crime de lavagem de dinheiro decorrente de uma infração penal antecedente que teve a extinção da punibilidade reconhecida? Em especial, nos crimes tributários, com o pagamento integral do tributo aferido pelas autoridades fazendárias, qual seria o proveito patrimonial que seria lavado se a quantia que constituiria o objeto material do crime de sonegação fiscal foi repassada aos cofres públicos?

A legislação atualmente em vigor, promulgada há doze anos, apresenta dispositivos dignos de críticas e apontamentos, em especial a previsão contida na parte final do artigo 2º, § 1º, da Lei 9.613/98. Talvez seja hora de serem retomadas as discussões jurídicas e acadêmicas que foram realizadas na comissão instalada na Câmara dos Deputados em setembro de 2020, mas que acabou sendo extinta pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, em maio de 2021 em razão da pandemia. O recente acórdão proferido pela 6ª Turma do STJ é, sem dúvida alguma, um grande incentivo a esse revolvimento necessário e fundamental que deve ser realizado no âmbito do nosso Poder Legislativo.

 

___________________

 [1] STJ, RHC 161701 / PB, Sexta Turma, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, publicado em 05/04/2024.

[2] Aras, Vladimir, e Ilana Martins Luz. Lavagem de dinheiro: comentários à Lei n. 9.613/1998. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo Almedina (Portugal), 2023, p. 103.

[3] STJ, AgRg no HC n. 782.749/SP, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, publicado em 26/05/2023.

[4] Nesse particular, ver: D’AVILLA, Fábio Roberto; GIULIANI, Emília Merlini. O problema da autonomia na lavagem de dinheiro. Breves notas sobre os limites materiais do ilícito-típico à luz da legislação brasileira. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 18, n. 74, p. 51-79, 2019.

[5] D’AVILLA, Fábio Roberto. A Certeza do Crime Antecedente como Elementar do Tipo nos Crimes de Lavagem de Capitais. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 7, nº 79, junho/1999, p.4.

[6] Por todos, ver: MENDES, Gilmar; BUONICORE, Bruno Tadeu; CEOLIN, Guilherme Francisco. Crime fiscal como antecedente da lavagem de dinheiro: desafios práticos e normativos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 186, ano 29, p. 41-73, dez. 2021.

Autores

  • é doutorando, mestre e especialista em Ciências Penais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt, Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados.

  • é pós-graduando em Ciências Penais pela PUC-RS, pós-graduando em advocacia criminal e advogado no escritório Mateus Marques Advocacia Criminal.

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