Direito da Insolvência

Regularidade da representação na recuperação judicial

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10 de junho de 2024, 17h20

A legislação brasileira, ao regular o processo de recuperação judicial, teve como objetivo dar a oportunidade de soerguimento das empresas a partir da livre negociação, respeitados os limites legais, dividindo os credores em diferentes classes. Neste sentido, inúmeras são as decisões destacando a soberania da assembleia de credores [1].

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A esse fim, e de modo a dar maior legitimidade ao resultado dessas negociações, é essencial que haja a participação do maior número possível de credores, sendo os resultados assembleares resultantes do voto por valor e cabeça, dependendo da matéria a ser deliberada.

Isso não significa, evidentemente, que se deva renunciar aos ditames que regem o devido processo legal. Expliquemos.

A partir desse princípio, deve ser respeitada, em primeiro lugar, a disponibilidade do direito, isto é, o credor pode participar do processo recuperacional, mas não está obrigado, sofrendo, no entanto, as consequências de sua omissão vez que será dragado pelo resultado assemblear qualquer que seja ele e independente da sua vontade, bem como se sujeitará às decisões judiciais, tenha ou não participado do processo.

Por outro lado, em segundo lugar, se desejar participar, deverá fazê-lo nos estritos limites impostos pela legislação específica e pelas normas gerais caso estas não estejam em confronto com aquela. Dentre outras normas, deve se sujeitar àquelas que regulam a representação adequada.

Neste ponto está a particularidade da RJ

Com efeito, a Lei 11.101/2005, ao regular a participação do credor na recuperação judicial, a divide em dois grandes grupos. Independentes e autônomos entre si, de modo que o credor pode participar de um ou de outro, dos dois ou de nenhum, a sua livre escolha.

O primeiro, é a participação no processo, em sentido estrito, exercendo o contraditório, com a ciência e oportunidade de manifestação. Assim, pode o credor, por exemplo, apresentar habilitações/impugnações judiciais, recorrer, em síntese, requerer a tutela jurisdicional nos limites do ordenamento jurídico.

Assim, caso o credor deseje praticar atos processuais no sentido estrito, deverá fazê-lo em conformidade com o Código de Processo Civil, em especial o quanto disposto pelos artigos 103 e seguintes. Ou seja, o credor, a menos que ele seja advogado, não possui capacidade postulatória, devendo, portanto, outorgar procuração a advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil para estar representado em Juízo. Em síntese, podemos afirmar que para requerer em juízo deve fazê-lo em conformidade com os pressupostos processuais.

No entanto, e conforme já afirmado, existe um segundo grupo, que é a prática de atos de natureza material, isto é, atos que não envolvem qualquer espécie de requerimento ou manifestação perante o juízo recuperacional e que, portanto, não se sujeitam às regras do Código de Processo Civil, em especial não dependem da constituição de advogado para seu exercício.

Neste segundo grupo podemos citar a apresentação de habilitações/divergências de crédito na fase administrativa, participação em comitê de credores, negociação de plano e participação na assembleia geral de credores.

Ocorre que, não obstante não seja aplicável o Código de Processo Civil para a prática dos atos que se enquadram neste segundo grupo, para eles também se exige a representação adequada.

Neste caso, os atos estarão sujeitos às regras específicas da Lei 11.101/2005 ou, subsidiariamente, naquilo que não conflitar ou não tiver norma específica, ao Código Civil.

Como exemplo, podemos citar a apresentação de habilitação/divergência na fase administrativa. A lei específica somente afirma que o credor deverá apresentá-la no prazo de 15 dias contados da publicação do edital de deferimento do processamento da recuperação judicial.

Não se trata de requerimento ao juízo e, por consequência, não exige a constituição de advogado para sua apresentação, Por outro lado, a lei recuperacional não trata de forma específica de representação. Logo, o requerimento será feito, no caso de credor pessoa física, por ele próprio ou, no caso de jurídica, pelo seu representante legal. Nada impedirá, no entanto, que o faça por meio de mandato, caso em que estará sujeito as regras do Código Civil que regulam a matéria, em especial artigo 653 e seguintes.

Diferente, todavia, é a hipótese da representação para a assembleia geral de credores em que o credor pode comparecer diretamente ou pelo seu representante contratual ou estatutário, mas, se o fizer por meio de mandatário, sujeitar-se-á, em primeiro lugar, às normas específicas.

Com efeito, a Lei 11.101/2005 ao tratar do tema assim dispõe:

“Art. 37 (…)

  • 4º O credor poderá ser representado na assembléia-geral por mandatário ou representante legal, desde que entregue ao administrador judicial, até 24 (vinte e quatro) horas antes da data prevista no aviso de convocação, documento hábil que comprove seus poderes ou a indicação das folhas dos autos do processo em que se encontre o documento.
  • 5º Os sindicatos de trabalhadores poderão representar seus associados titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho que não comparecerem, pessoalmente ou por procurador, à assembleia.
  • 6º Para exercer a prerrogativa prevista no § 5º deste artigo, o sindicato deverá:

I – apresentar ao administrador judicial, até 10 (dez) dias antes da assembléia, a relação dos associados que pretende representar, e o trabalhador que conste da relação de mais de um sindicato deverá esclarecer, até 24 (vinte e quatro) horas antes da assembléia, qual sindicato o representa, sob pena de não ser representado em assembléia por nenhum deles.”

Assim, não obstante o Código Civil disponha que o mandato possa ser verbal ou escrito e expresso ou tácito (artigo 656), e os atos do mandatário possam ser ratificados pelo mandante (artigo 662) regularizando ulteriormente a representação, essas regras não são integralmente aplicáveis à recuperação judicial, valendo, neste caso, o princípio de que a norma especial derroga a geral, quando forem incompatíveis entre si.

Da simples leitura da norma especial, extrai-se que a opção legislativa foi no sentido de afastar a possibilidade de o mandato ser verbal (o dispositivo expressamente determina a apresentação de documento que comprove o mandato) e a possibilidade de poderes tácitos (a lei determina a comprovação expressa dos poderes do mandatário).

De igual modo, a legislação nos parece que afastou qualquer possibilidade de participação do mandatário com ratificação posterior de seus atos ao determinar que a prova da representação e poderes seja apresentada 24 (vinte e quatro) horas antes do conclave, sendo o prazo de antecedência ampliado para dez dias em caso de representação por sindicato.

Importante também destacar que, não obstante, a lei faça menção à possibilidade de se indicar a página dos autos em que se encontra o mandato, isso não significa que o mandato específico previsto em lei possa ser substituído pela representação em juízo.

Em razão dessas especificidades, o Fonaref (Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências), em maio último, no seu 2º Congresso, firmou o entendimento de que “É necessária procuração com poderes específicos para representação do credor em assembleia geral de credores”.

Mencionado enunciado, não obstante sem caráter vinculativo, busca pacificar as divergências jurisprudenciais a respeito do tema, vez que existe relevante posição no sentido de que a procuração outorgada a advogado com poderes para transigir, desistir, celebrar acordos e renunciar a direitos seria suficiente para a representação em assembleia geral de credores.

Segundo o enunciado aprovado, não o é

Com efeito, a assembleia geral de credores envolve outros temas que transcendem a mera aprovação ou não de transação por meio do plano de recuperação judicial, mas podem tratar de outros relevantes temas como a aprovação de apresentação de plano alternativo de credor, eleição de comitê de credores e até mesmo conversão de dívida em capital social, que ultrapassam os poderes da transação.

Assim, mesmo que se pudesse entender que transigir envolve votar pela aprovação ou não do plano, não englobaria os demais temas, sendo ilógico se imaginar a possibilidade de cisão da assembleia em conformidade com os limites de poderes (o mandatário com procuração para transigir teria poderes para votar plano, mas não para os demais temas); ou se tem poderes para a assembleia como um todo ou ele não existe.

Ou seja, com a aprovação desse enunciado que, repita-se, não tem efeito vinculante, espera-se que a jurisprudência se pacifique no sentido de que a procuração para assembleia geral de credores deve conter poderes específicos a esse fim, respeitada, portanto, a ordem do dia.

Finalmente, surge uma derradeira questão que envolve as recuperações judiciais em andamento.

Como o enunciado reflete a interpretação da norma, sem que a mesma tenha sofrido no decorrer de sua vigência qualquer alteração, deve ser aplicado de imediato, ou seja, espera-se que para as futuras assembleias de credores ocorra a exigência.

Todavia, deve ser feita uma ressalva.

Para aquelas assembleias de credores que já foram convocadas com a permissão da utilização da procuração com poderes para transigir ou para aquelas que já instaladas e suspensas e em que foi aceita a representação sem poderes específicos, em nome da segurança jurídica, devem assim prosseguir sem a necessidade ou exigência de outorga de nova procuração.

 

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[1] REsp 1.830.550-SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe 30/4/2024; AgInt no REsp n. 2.107.336/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/4/2024, DJe de 11/4/2024; AgInt no REsp n. 2.089.658/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 13/11/2023, DJe de 16/11/2023.

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