Realidade virtual

Poder Judiciário brasileiro se mobiliza para tirar melhor proveito da inteligência artificial

Autor

25 de maio de 2024, 8h52

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil  2024, lançado nesta quarta-feira (22/5). A versão digital é gratuita, acesse pelo site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui).

18ª edição do Anuário da Justiça Brasil

Se a incorporação da inteligência artificial em nosso dia a dia vai representar o mesmo avanço trazido pela energia elétrica, ainda não sabemos. Fato é que, no campo do Direito, o Poder Judiciário já começa a se aventurar por esse universo. Mais de uma centena de projetos neste sentido estão em andamento nos tribunais do país.

Em outubro de 2023, a comunidade jurídica se surpreendeu com um pedido ousado feito pelo ministro Luís Roberto Barroso durante sua posse como novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça: ele gostaria de ter em sua corte uma solução de inteligência artificial capaz de dar rapidamente o resumo de todo o processo assim que fosse protocolado.

O briefing do caso teria o pedido, a sentença, o acórdão e as razões do recurso extraordinário. “É uma simplificação imensa você ter uma primeira visualização do processo sem ter que ler 20 volumes. Esse é um primeiro passo para a utilização bem racional da inteligência artificial pelo Supremo”, disse Barroso em dezembro, durante chamamento público que resultou em 24 propostas de empresas, universidades e startups.

O ministro ainda fez outras duas encomendas, até mais ambiciosas. Um segundo programa, ao estilo do ChatGPT, que possa ser alimentado com as jurisprudências da Suprema Corte, do Superior Tribunal de Justiça e demais tribunais do país. A ideia é que a aplicação seja capaz de, “diante do caso, oferecer uma proposta de solução”, com base nas informações disponibilizadas. “Eu sei que é polêmico. Porém, a gente não tem como fugir, em uma Justiça massificada, de tentarmos maximizar o uso das tecnologias. Se der certo, bem. Se não der, a gente abandona. Mas a gente tem que tentar”, afirmou.

Já a terceira solicitação feita por Barroso é de um sistema de base de dados comum para todo o Judiciário do país. A ideia não é implementar um novo PJe (Processo Judicial Eletrônico), mas “criar uma interface única, independentemente do sistema que esteja operando”, disse.

O ChatGPT, aplicativo pioneiro no uso de inteligência artificial para gerar textos, foi lançado em 20 de novembro de 2022, dando relevância a essa tecnologia tendo em vista seu potencial imensurável de transformação em todas as áreas da sociedade. No Brasil, uma pesquisa conduzida pela empresa de recrutamento especializado Page Interim revelou que 76% dos profissionais entrevistados acreditam que a IA terá um impacto parcial ou total em seus empregos. Essa percepção reflete a preocupação generalizada sobre o futuro do trabalho.

Ao assumir a presidência do STF, Barroso encomendou uma solução de inteligência artificial para resumir processos

A ascensão da IA traz consigo a promessa de melhorias significativas na produtividade e na criação de novas oportunidades. Ao mesmo tempo, há crescente apreensão em relação a possíveis riscos associados a essa tecnologia – que envolve, até mesmo, a soberania de países quanto ao controle de dados.

No meio jurídico muita coisa já se faz. Em agosto de 2020, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução 332, o primeiro documento normativo feito por um órgão público no Brasil. Ela instituiu o Sinapses como plataforma nacional de armazenamento, treinamento, controle de versionamento, distribuição e auditoria dos modelos de inteligência artificial, além de estabelecer os parâmetros de sua implementação e funcionamento. A gestão e responsabilidade pelos modelos e datasets cabe a cada órgão do Poder Judiciário.

A resolução proíbe expressamente decisões automatizadas no campo do processo penal. Falta ainda ao CNJ regulamentar as IAs generativas. Como informa o juiz Bráulio Gabriel Gusmão, secretário especial do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, “falta avançar também sobre deliberações de segurança e risco”.

Pesquisa feita em 2022 pela Fundação Getulio Vargas, sob coordenadoria do ministro Luís Felipe Salomão, mostrou que de 88 tribunais do país participantes, 53 tinham projetos de IA, sendo 111 o total de projetos, com 63 já em uso e 42 depositados na plataforma Sinapses. Dos 111, 65 estavam na Justiça Estadual, sendo o TJ de Rondônia o líder, com 21 projetos.

O próprio Sinapses foi desenvolvido pelo TJ-RO em cooperação com o CNJ, visando ao treinamento, hospedagem e auditabilidade de modelos de IA para uso do Poder Judiciário. Existem, ainda, 11 projetos na Justiça Eleitoral, nove na do Trabalho, 14 na Federal e sete nos tribunais superiores.

Há dois grupos principais entre as tecnologias já desenvolvidas pelo Poder Judiciário: um voltado às atividades jurisdicionais que podem ter influência na tomada de decisão; e outro, aos procedimentos complementares que não influenciam a decisão.

Os chatbots, recurso usado por empresas para resolver dúvidas e responder consultas, já está em uso na área judicial. A ferramenta pode fornecer informações e avançar para resolver casos menos complexos. O TJ-RJ tem um projeto iniciado chamado de “Resolução Online de Conflitos” que usa chatbots para casos simples de conciliação, com sugestões de acordos.

O TJ-BA desenvolveu um robô que recebe as informações por fluxogramas programados e conversa com o cidadão, simulando o atendimento como se fosse um ser humano. O Judi, como foi batizada a ferramenta, funciona como um assistente virtual pelo WhatsApp e se limita a fornecer informações administrativas.

Os robôs do TJ-SP

O TJ-SP triplicou o uso de robôs em 2023: foram 15,6 milhões de tarefas executadas por robôs em 84 aplicações, disponíveis em todas as unidades judiciais do estado. O número representa aumento de 254% em relação à média dos três anos anteriores, com pouco mais de 4,4 milhões de tarefas ao ano. Um dos setores que mais avançou com a implementação da robotização foi a Diretoria de Execuções de Precatórios e Cálculos (Depre).

Em correição na Vara das Execuções Fiscais Municipais da Capital, em 2022, verificou-se impensáveis 1,6 milhão de processos. Foram feitas mudanças nos quadros de pessoal, as rotinas de processamento foram estudadas e reorganizadas, inclusive com uso de robôs. Houve identificação de 926 mil feitos prontos para eliminação, o que resultou em uma redução para 980 mil processos na vara, queda de 41%. “Neste ano, esperamos colher frutos do trabalho, com a implantação de novas rotinas e ampliação do uso de robôs, mas, certamente, já conseguimos dimensionar os gargalos da vara e atuamos em sua melhoria”, explica a juíza Carolina Bertholazzi, titular da unidade desde setembro de 2023.

No STF, já funciona o Victor, uma inteligência artificial capaz de separar e classificar as peças mais usadas e identificar temas de repercussão geral de maior incidência. Foi desenvolvido em parceria com a UnB.

Ainda no STF, estão sendo desenvolvidas técnicas para fazer ementas com o auxílio da inteligência artificial. O ministro decano, Gilmar Mendes, aposta no uso da IA para a coerência da jurisprudência. “A inteligência artificial terá muito uso para sinalizar precedentes. Para mostrar que algo está ultrapassado e que a jurisprudência mais recente já sinaliza em outro sentido. Em função da jurisprudência tão ampla, às vezes somos impugnados com relação aos nossos próprios posicionamentos”, diz. Gilmar adverte para os limites da IA: “Não espero que alguém faça votos com o uso da inteligência artificial, mas é um auxílio para a melhoria de toda a sistemática existente.”

Embora no Victor do Supremo não haja a transferência de uma decisão de mérito para um algoritmo, a tecnologia pode ser usada na fundamentação do processo. “Apesar de a informação produzida ser meramente classificatória, há influência para a admissão do recurso no STF”, criticam os acadêmicos da Universidade Estadual do Norte do Paraná Eduardo Augusto Salomão Cambi e Maria Eduarda Toledo.

O TJ-MT desenvolve, desde 2020, em parceria com a Amazon, um robô para assessorar os juízes na produção de minutas de sentenças. Para os pesquisadores, a iniciativa deve ser vista com cautela. Isso porque não há, ainda, mecanismos capazes de impedir a ocorrência de discriminações algorítmicas. “Ainda que se defenda que o robô assessor produza apenas uma minuta de decisão, que deverá ser analisada e adaptada pelo magistrado responsável, a indução a determinado entendimento pelas máquinas, sem o devido cuidado na constatação dos fatos, na valoração das provas ou na mais justa aplicação do direito às peculiaridades do caso concreto, é preocupante, para não se perder o caráter humano da decisão judicial”, afirmam.

AI na execução penal

No TJ do Distrito Federal há um caso de sucesso. O Saref (sistema de apresentação por reconhecimento facial), feito a pedido de um juiz de vara de execução penal. A cada mês, condenados do regime aberto lotavam o fórum para a apresentação periódica na vara a que estão obrigados. O tribunal decidiu então que a apresentação poderia ser feita de forma virtual. Com o Saref, o apenado usa seu próprio celular para fazer um autorretrato. O sistema faz a geolocalização, faz o reconhecimento na base de dados e busca o respectivo processo. Vários tribunais se preparam para incorporar o dispositivo.

Outro programa do TJ-DF é o Toth, que lê a petição distribuída e preenche as classificações e assuntos do processo de acordo com o conteúdo informado, com bons índices de acerto. Também há o Maat (sistema recomendado de sobrestamento ou tese firmada)eo Ártemis (sistema detector de demandas repetitivas ou predatórias). “No futuro queremos usar IA generativa. Penso que a IA deve ser não para dificultar, mas para ampliar e facilitar o acesso à Justiça”, afirma Ricardo Pinheiro Ortegal, coordenador de Ciência de Dados do tribunal.

No caso da Justiça do Trabalho, há como exemplo o Monitor do Trabalho Decente, que é um painel que, usando modelo de inteligência artificial, analisa as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho que julgam casos de trabalho infantil, trabalho análogo à escravidão e assédio sexual. Essa solução analisa essas decisões periodicamente e faz uma classificação, mostrando onde estão esses casos e como os tribunais têm decidido a respeito.

Outra solução se chama Gemini, curiosamente o mesmo nome escolhido pelo Google, que trabalha com uma solução de busca de similaridade entre decisões para apoiar especialmente os gabinetes dos juízes para mostrar se já teve decisão semelhante àquele caso que se apresenta por exemplo num recurso ordinário. “Esse projeto vinha caminhando devagar e agora nós pretendemos acelerá-lo. Então, por isso nós não temos dados sobre a efetiva eficácia dele. É um desafio que nós temos para podermos avançar em IA”, pondera o juiz Bráulio Gusmão.

Mixórdia da mixórdia

No Tribunal Superior do Trabalho também há um produto concluído e já em uso nos gabinetes dos ministros. Trata-se do Bem-Te-Vi, uma solução de apoio aos gabinetes para identificar casos semelhantes para eles poderem otimizar o seu trabalho. “Tribunais, como o TJ-SC, já usam o robô para esboçar sentenças. Sua vida sendo decidida por robôs. Pior de tudo isso é a hiperprecarização. Se a coisa já estava ruim para os advogados recém-formados (e não só para esses), agora há robôs substituindo os advogados que ganha(va)m uma mixórdia. É a mixórdia da mixórdia. Precarizando a precarização. Guerra de todos contra todos. E, nos tribunais, robôs que fulminam recursos e julgam causas fiscais e quejandos”, critica o jurista Lenio Streck.

O juiz Bráulio Gabriel Gusmão adverte que não sabemos bem onde vamos chegar. “Estamos ainda dando a chave do carro ao manobrista. Não se sabe se vamos ser clientes de grandes modelos, se vamos contratar a Open IA, o Google Gemini, as big techs ou se vamos usar modelos open source. Há modelos muito interessantes a um custo diferenciado (porque não precisaríamos pagar pelo consumo daquele serviço), mas teríamos, do outro lado, um ônus de ter que botar gente para fazer isso. O Judiciário brasileiro tem uma característica interessante: ele sempre foi o dono da tecnologia. Obviamente, agora com essa nova IA surge um grande desafio porque esses grandes modelos estão nas mãos das big techs.”

Assista à cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2024:

ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2024
18ª Edição
ISSN: 2179981-4
Número de páginas: 276
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br

Anuário da Justiça Brasil 2024 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.

Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:

Abdala Advogados
Advocacia Fernanda Hernandez
Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Basilio Advogados
Bottini & Tamasauskas Advogados
Cançado e Barreto Advocacia S/S
Cecilia Mello Sociedade de Advogados
Cesa — Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Corrêa da Veiga Advogados
Costa & Marinho Advogados
Cury & Cury Sociedade de Advogados
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
DMJUS
D’Urso & Borges Advogados Associados
FAAP
Feldens Advogados
Fidalgo Advogados
Fontes Tarso Ribeiro Advogados Associados
Fux Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
JBS S.A.
Justino de Oliveira Advogados
Laspro Advogados Associados
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lollato, Lopes, Rangel, Ribeiro Advogados
Machado Meyer Advogados
Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia
Mauler Advogados
Mendes, Nagib e Luciano Fuck Advogados
Milaré Advogados
Moraes Pitombo Advogados
Multiplan
Nelio Machado Advogados
Nery Sociedade de Advogados
Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados
Ordem dos Advogados do Brasil — São Paulo
Original 123 Assessoria de Imprensa
Pardo Advogados Associados
Prevent Senior
Sergio Bermudes Advogados
Tavares & Krasovic Advogados
Tojal Renault Advogados
Warde Advogados

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!