Opinião

Incapacidade técnica como barreira para inclusão de novos sócios nas cooperativas

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2 de maio de 2024, 19h40

Para uma breve introdução, em 1971 foi sancionada a Lei nº 5.764, definindo a Política Nacional de Cooperativismo no Brasil e instituindo o regime jurídico das sociedades cooperativas, sem alterar o disposto nos sistemas próprios instituídos para as cooperativas de habitação e cooperativas de crédito, que não são objeto do presente artigo.

Referida lei, em seu artigo 3º, estipula que:

“Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”

Já o artigo 4º define que:

“As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características”

Com destaque para o inciso I, que assim determina:

“I – adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços.”

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Como se pode observar, o legislador estabelece condições para a celebração do contrato de sociedade cooperativa, quais sejam, a obrigação de reciprocidade entre os sócios cooperados para contribuírem com bens ou serviços na exploração de uma atividade econômica de proveito comum e, no inciso I, indica que a adesão é voluntária e ilimitada, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços [1].

Essa obrigação de reciprocidade visa objetivamente a contribuição conjunta dos sócios cooperados para a obtenção de ganhos na prestação de serviços que beneficiem todos os associados.

Assim, uma sociedade cooperativa constitui-se como uma livre associação entre profissionais da mesma atividade econômica, onde o grupo se forma cooperando entre si para prestar serviços de qualidade e aumentar a competitividade no mercado.

Nesse passo, é importante transcrever a lição de Fábio Bellote Gomes [2] sobre a sociedade cooperativa:

“Na sociedade cooperativa, os associados reciprocamente se obrigam contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica de proveito comum, sem objetivo de lucro, devendo as suas finalidades estarem voltadas à prestação de serviços e benefícios aos seus associados. É a política do cooperativismo: uns cooperam com os outros e a sociedade atua como mera facilitadora da disposição ao mercado dos bens e serviços individuais dos cooperados.”

Temos como exemplos mais comuns em nosso mercado as cooperativas de transporte (táxi, vans, ônibus etc.), cooperativas de produção de bens e serviços (recicladores) e as cooperativas de saúde (médicos, odontólogos etc.).

Ultrapassada a breve introdução ao universo cooperativista em sua legislação especializada e doutrina, passemos ao cerne deste artigo.

As condições de ingresso no quadro societário da sociedade cooperativa são definidas em seu estatuto social, nos termos do que determina o artigo 29 da Lei nº 5.764/71, que assim dispõe:

Art. 29. O ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4º, item I, desta Lei.

Nota-se que o artigo mencionado faz expressamente a ressalva do disposto no inciso I do artigo 4º: “I – adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;”.

Impossibilidade de prestação de serviços

Surge, então, a questão da impossibilidade técnica de prestação de serviços, mas o que essa impossibilidade significa na prática? Antes de adentrar ao significado, é importante destacar a existência de um dos princípios norteadores do cooperativismo, qual seja, o princípio das portas abertas, regulado pelos artigos 4º e 29 já mencionados, relacionando-se ao princípio do associativismo contido nos artigos 5º, XVII e XX da Constituição.

Esse princípio, de forma sintética, estabelece que, na sociedade cooperativa, o ingresso não pode ser negado àqueles que concordem com os propósitos sociais da cooperativa e atendam às condições estabelecidas em seu estatuto social.

Spacca

Segundo a obra de Wilson Polônio [3], é o princípio das portas abertas que distingue as cooperativas dos demais tipos societários, sendo que, nestes, os sócios podem vedar o ingresso de novos associados. Assim, discute-se no presente caso a impossibilidade técnica indicada na lei (inciso I do artigo 4º já transcrito), sob a ótica da sociedade cooperativa, frente ao absolutismo do princípio das portas abertas.

Sobre o tema, Wilson Polônio [4] ensina que essa impossibilidade pode ocorrer devido ao número insuficiente ou excessivo de membros, dadas as características e o objeto social que os sócios se propuseram a levar adiante, ou seja, a limitação imposta pela legislação à adesão dos cooperados não afronta os princípios cooperativistas, visto que a impossibilidade técnica pode impedir a prestação de serviços que o cooperado se dispôs a concretizar.

Fica claro, portanto, que a impossibilidade técnica descrita na lei não se refere apenas à condição do candidato a se associar, mas também está intimamente ligada à capacidade técnica da cooperativa de absorver a inclusão de novos sócios sem prejudicar sua viabilidade econômico-financeira.

Como já descrito, a finalidade da sociedade cooperativa é a contribuição conjunta dos cooperados para a obtenção de ganhos que beneficiem todos os associados.

O ingresso indiscriminado de novos cooperados, ocasionado pela interpretação literal do princípio das portas abertas sem a devida harmonização com os demais preceitos legais, especialmente a impossibilidade técnica de prestação de serviços, certamente resultará em desequilíbrio financeiro e, consequentemente, inviabilizará o objetivo central da sociedade cooperativa.

O Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.261.387, estabeleceu que o princípio das “portas abertas” das cooperativas comporta restrições legítimas. Estas restrições incluem limites técnicos e operacionais necessários para a prestação de serviços e requisitos estatutários alinhados aos propósitos sociais da cooperativa, que podem impor condições específicas relacionadas a atividades ou profissões.

Além disso, foi validada a legalidade de processos seletivos prévios para ingresso em cooperativas, como no caso de uma cooperativa de trabalho médico, justificados pela necessidade de equilíbrio financeiro e demandas do mercado. A decisão, proferida pela ministra Maria Isabel Gallotti, reforça a harmonização entre as necessidades operacionais das cooperativas e os direitos dos aspirantes a associados.

Diante do meticuloso exame das disposições legais e doutrinárias abordadas, emerge uma compreensão profunda sobre a natureza e os desafios das sociedades cooperativas. A legislação, ao delinear a estrutura dessas entidades, não apenas fomenta um modelo de negócios colaborativo e mutualista, mas também instaura mecanismos de proteção contra riscos que podem comprometer a sua sustentabilidade econômica e financeira.

É imperativo reconhecer que o princípio das portas abertas, característico das cooperativas, não se traduz em uma política de admissão indiscriminada de membros. Tal abertura, quando não medida e balanceada, pode levar a um desequilíbrio que ameaça a própria viabilidade da cooperativa.

Assim, a impossibilidade técnica de prestação de serviços, conforme prevista em lei, surge não como uma barreira arbitrária, mas como uma salvaguarda essencial para a saúde e a estabilidade da cooperativa.

Portanto, a restrição criteriosa ao ingresso de novos cooperados, fundamentada em razões técnicas e econômicas sólidas, revela-se não apenas como uma prerrogativa legal, mas como um imperativo prático para a preservação dos interesses coletivos.

Tal restrição é essencial para que a cooperativa não apenas sobreviva, mas prospere em seu propósito de servir coletivamente, garantindo a todos os membros uma base sólida para o desenvolvimento econômico e social. Assim, conclui-se que a capacidade de adaptar a admissão de membros à realidade técnica e econômica da cooperativa não apenas se alinha aos princípios cooperativistas, mas é um testemunho da sua vitalidade e prudência administrativa.

 


[1] Lei nº 5.764/1971, Art. 4º, inciso I

[2] GOMES, Fábio Bellote. Manual de direito empresarial. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 120-121.

[3]POLONIO, Wilson Alves. Manual das sociedades cooperativas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001., p. 97.

[4]Ibidem, p. 32.

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