Opinião

Igualdade salarial, concorrência e Fiarc: aliados ou incompatíveis?

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1 de maio de 2024, 6h10

No último 31 de março, encerrou-se o prazo para que as empresas divulgassem em suas redes sociais, site ou veículos semelhantes relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios produzidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

A publicação dos referidos relatórios constitui obrigação prevista na Lei nº 14.611/2023, que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens (“Lei de Igualdade Salarial”).

Em síntese, a norma estabelece a obrigação de publicação de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios por empresas com 100 ou mais empregados, de forma a permitir a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens [1].

A Lei de Igualdade Salarial foi regulamentada pelo Decreto nº 11.795/2023, que, por sua vez, foi regulamentado pela Portaria MTE nº 3.714/2023. De acordo com o Decreto e a Portaria, os relatórios deveriam contemplar informações detalhadas sobre cargos ou ocupações dos funcionários e os valores correspondentes às diversas parcelas que compõem a remuneração [2].

Não se discute o objetivo louvável da medida governamental, qual seja, concretizar a isonomia salarial de gênero no ambiente de trabalho, direito previsto na Constituição (artigo 7º, XXX).

Contudo, as disposições contidas no Decreto nº 11.795/2023 e na Portaria MTE nº 3.714/2023 suscitam riscos concorrenciais. Isso se dá porque informações específicas sobre salários de funcionários são informações concorrencialmente sensíveis que implicam riscos anticompetitivos decorrentes de sua divulgação irrestrita [3].

Nesse contexto, merecem destaque as recentes considerações emitidas pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) na Nota Técnica nº 3/2024.

Advertência

Ao analisar as disposições estabelecidas pelo Decreto nº 11.795/2023 e pela Portaria MTE nº 3.714/2023, o DEE adverte que “a obrigação de publicação de relatórios com dados sobre remuneração dos trabalhadores pelas empresas pode configurar a publicação de dados concorrencialmente sensíveis e, dessa forma, contribuir para a adoção de condutas concertadas anticompetitivas, como a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes, ou mesmo, formação de cartéis.

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Em suas conclusões, o DEE recomenda a suspensão ou cancelamento das disposições que exigem a divulgação detalhada de informações salariais, propondo uma revisão dessas normas. O objetivo seria garantir que, caso a divulgação seja mantida, as informações sejam apresentadas de forma agregada, evitando a revelação de dados concorrencialmente sensíveis.

O DEE sugere ao MTE que sejam também adotadas medidas de cautela na divulgação de quaisquer informações e relatórios relacionados à política pública.

Há aparente antinomia entre o atual texto do Decreto/Portaria e lei hierarquicamente superior, a Lei de Defesa da Concorrência. Com isso, o caso seria de ilegalidade dos referidos atos normativos, que também ultrapassam os limites da Lei nº 14.611/2023. Contudo, os objetivos das referidas legislações não são necessariamente antinômicos.

A Constituição, além de estabelecer a livre concorrência como um dos princípios gerais da ordem econômica (artigo 170, inciso IV), prevê a livre iniciativa como um de seus fundamentos. Para tanto, determina que a legislação específica “reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros” (artigo 173, § 4º). Por outro lado, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e tem como princípio a redução das desigualdades regionais e sociais.

Ainda que a pretexto de assegurar a igualdade salarial entre homens e mulheres prevista na Constituição, as disposições contidas no Decreto nº 11.795/2023 e na Portaria MTE nº 3.714/2023 não podem deixar de observar outros princípios constitucionais, tais como a livre concorrência e demais princípios da ordem econômica [4].

Isso está em linha com o princípio da unidade da Constituição, que estabelece que todas as normas constitucionais devem ser interpretadas em conjunto (i.e., dentro de um contexto constitucional), e não de maneira isolada [5].

Concorrência pressupõe restrição à transparência

Cada concorrente observa o comportamento de seus rivais a partir de informações necessariamente limitadas, e tenta desenvolver a sua estratégia para superá-los a partir dessa relativa opacidade. É justamente essa incerteza que incentiva o desenvolvimento de estratégias competitivas diversas, o que é benéfico tanto para a resiliência dos mercados quanto para a sua diversificação.

Algumas dessas estratégias se mostrarão mais bem adaptadas a um futuro econômico que é impossível antecipar completamente. Aqueles que mais acertarem em suas estratégias tenderão a prevalecer.

É dessa forma que diferentes empresas desenvolvem as suas específicas estratégias de contratação de colaboradores. Algum tipo de compartilhamento de informações nesse contexto reduz custos de transação e aumenta a eficiência do mercado como um todo.

Mas o compartilhamento amplo e detalhado de informações concorrencialmente sensíveis, como pretendido pelo Decreto e Portaria mencionados, pode gerar coordenação e, no limite, prejudicar trabalhadores.

Em vez de participarem de um mercado no qual diferentes empresas propõem estratégias de contratação diversas, os trabalhadores disputariam (e seriam disputados) por vagas em empresas alinhadas entre si, o que tende a diminuir o poder de barganha e mobilidade desses trabalhadores. Certamente, não faz sentido defender, a pretexto da igualdade salarial entre homens e mulheres, que todos os trabalhadores sejam igualmente prejudicados.

O MTE pode, na prática, implementar precauções na divulgação dos relatórios, utilizando mecanismos de agregação para mitigar os impactos concorrenciais negativos decorrentes da divulgação irrestrita de informações concorrencialmente sensíveis, em linha com as recomendações do DEE.

Esse parece ter sido, ao menos inicialmente, o caminho adotado na elaboração dos referidos relatórios, após uma série de críticas recebidas. No entanto, a ilegalidade dos atos normativos permanecerá enquanto a obrigação de divulgação dos relatórios com dados minuciosos sobre a remuneração de seus colaboradores estiver expressamente prevista no Decreto nº 11.795/2023 e na Portaria MTE nº 3.714/2023.

Além dos riscos mais diretamente relacionados à concorrência, a divulgação dos relatórios, conforme previsto nos referidos decreto e portaria, gera potenciais danos à imagem e à reputação das empresas. Isso porque seu mecanismo não prevê a apresentação das razões que justifiquem eventuais disparidades remuneratórias identificadas em um mesmo cargo (como tempo de empresa, especializações do funcionário etc.) apesar de lhes conferir a aparência de um ilícito.

Adicionalmente, ao não prever que as empresas apresentem tempestivamente as justificativas para eventuais disparidades remuneratórias, as referidas normas deixam de observar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

É importante que a divulgação do relatório possa ser acompanhada das justificativas apresentadas para eventuais disparidades salariais a fim de evitar eventuais prejuízos indevidos à reputação e à imagem das empresas.

Essa preocupação também tangencia o processo competitivo. Afinal, a apresentação pública, pelas empresas, das razões para as diferentes políticas salariais adotadas evita uma distorção na sua capacidade de concorrer. Trabalhadores levarão em conta essas razões ao optarem por diferentes caminhos profissionais.

Algumas empresas e associações já têm procurado resguardar os seus direitos apresentando as medidas judiciais cabíveis para evitar a divulgação dos referidos relatórios. De forma mais sistêmica, uma possibilidade a ser considerada é submeter requerimento para investigação da lei no âmbito do programa “Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial” (Fiarc), conduzido pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), atual Subsecretaria de Acompanhamento Econômico e Regulação, do Ministério da Economia (ME).

Em fevereiro deste ano, a Seae foi recriada sob a denominação de Subsecretaria de Acompanhamento Econômico e Regulação. Um dos planos anunciados pela secretária nomeada é uma nova formulação para a Fiarc. Em especial, a recém-criada coordenação-geral de promoção da concorrência foi ocupada por um técnico experiente no tema da defesa da concorrência e existe a intenção de buscar instrumentos de “enforcement” para dar efetividade maior à opinião do órgão.

O objetivo do Fiarc é identificar e analisar os atos normativos editados por agências, autarquias e órgãos públicos que tenham caráter anticompetitivo. O programa está em conformidade com a Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), particularmente com o artigo 4º, que identifica circunstâncias em que a regulação pode afetar a concorrência, causando danos significativos à sociedade e aos mercados.

Conforme a Instrução Normativa Seae/ME nº 84/2022, que permanece vigente, o procedimento de investigação no âmbito do Fiarc poderá ser instaurado de ofício pela própria Seae ou por meio de requerimento submetido por pessoas físicas ou jurídicas à Subsecretaria de Advocacia da Concorrência.

O requerimento será admitido caso sejam demonstrados os seguintes critérios: (i) relevância e interesse público do requerimento; (ii) potencial impacto relevante concorrencial aferido com base nas documentações enviadas; (iii) outros critérios relevantes, observado os princípios da impessoalidade e simplicidade da Administração Pública.

Uma vez admitido o requerimento e instaurado o procedimento de investigação, quaisquer associações e entidades poderão se manifestar na Seae para subsidiar a sua análise, desde que demonstrem sua representatividade nacional no setor econômico impactado.

Outras empresas e interessados poderão participar de audiências e debates previstos na legislação. Com base no conjunto de informações analisadas, a Seae emitirá parecer acerca do mérito do requerimento e gradará as suas conclusões através do sistema de bandeiras, na forma de bandeira vermelha, bandeira amarela e bandeira verde.

Eventuais sensibilidades políticas podem ser contornadas e não devem ofuscar o principal: estamos diante de ótima oportunidade para o reinício dos trabalhos da Fiarc. Afinal, o procedimento pode levar à alteração ou revogação do Decreto nº 11.795/2023 e na Portaria MTE nº 3.714/2023, de modo a deixar claro que os objetivos da igualdade salarial e a preservação da concorrência no mercado de trabalho são, na verdade, importantes aliados.

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[1] Lei nº 14.611/2023, “Art. 5º Fica determinada a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

  • 1º Os relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios conterão dados anonimizados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade, observada a legislação de proteção de dados pessoais e regulamento específico.”

[2] O Decreto nº 11.795/2023 estabelece que: “Art. 2º  O Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios de que trata o inciso I do caput do art. 1º tem por finalidade a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos e deve contemplar, no mínimo, as seguintes informações: I – o cargo ou a ocupação contida na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, com as respectivas atribuições; e II – o valor: a) do salário contratual; b) do décimo terceiro salário; c) das gratificações; d) das comissões; e) das horas extras; f) dos adicionais noturno, de insalubridade, de penosidade, de periculosidade, dentre outros; g) do terço de férias; h) do aviso prévio trabalhado; i) relativo ao descanso semanal remunerado; j) das gorjetas; e k) relativo às demais parcelas que, por força de lei ou norma coletiva de trabalho, componham a remuneração do trabalhador.” No mesmo sentido, a Portaria MTE nº 3.714/2023 determina que: “Art. 3º O Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios será composto por duas seções, contendo cada uma, as seguintes informações: […] Parágrafo único. O valor da remuneração de que trata a alínea “c”, do inciso I do caput, deverá conter: I- salário contratual; II- décimo terceiro salário; III- gratificações; IV- comissões; V- horas extras; VI- adicionais noturno, de insalubridade, de penosidade, de periculosidade, dentre outros; VII- terço de férias; VIII- aviso prévio trabalhado; IX- descanso semanal remunerado; X- gorjetas; e XI- demais parcelas que, por força de lei ou de norma coletiva de trabalho, componham a remuneração do trabalhador.”

[3] Vide p. 7 do Guia de Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica do CADE. Já existe pelo menos uma investigação em andamento no CADE envolvendo possível troca de informações sobre salários entre empresas.

[4] O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu que “A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico, por sua vez, não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro, notadamente os princípios – como aquele que tutela a intangibilidade do ato jurídico perfeito – que se revestem de um claro sentido de fundamentalidade. Motivos de ordem pública ou razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas que frustram a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade – não podem ser invocados para viabilizar o descumprimento da própria Constituição, que, em tema de produção normativa, impõe ao Poder Público limites inultrapassáveis, como aquele que impede a edição de atos legislativos vulneradores da intangibilidade do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada.” (RE 205.193, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 25.2.1997, 1ª Turma, p. 6.6.1997, grifou-se)

[5] “O primeiro desses princípios, o da unidade da Constituição, postula que não se considere uma norma da Constituição fora do sistema em que se integra; dessa forma, evitam-se contradições entre as normas constitucionais. As soluções dos problemas constitucionais devem estar em consonância com as deliberações elementares do constituinte. Vale, aqui, o magistério de Eros Grau, que insiste em que ‘não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços’, acrescentando que ‘a interpretação do direito se realiza não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o que bastaria ao intérprete ser alfabetizado’. Esse princípio concita o intérprete a encontrar soluções que harmonizem tensões existentes entre as várias normas constitucionais, considerando a Constituição como um todo unitário.” (Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018).

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