Opinião

Autoria no crime empresarial e atuação estratégica da advocacia criminal

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14 de junho de 2024, 20h49

A dogmática aplicável ao Direito Penal econômico e empresarial tem encontrado certo avanço no cenário jurídico brasileiro, sobretudo no que se refere à imputação subjetiva e à autoria na criminalidade empresarial. Diante da possibilidade da “irresponsabilidade organizada” (Schünemann) [1], nota-se um evolução nos debates dogmáticos sobre como se determinar a autoria na criminalidade empresarial.

Criminalidades

Já na prática, ainda não há um progresso significativo, tornando-se indispensável uma aplicação mais ampla e acurada das teses dogmáticas. Não obstante, a advocacia criminal especializada tem desempenhado suma importância no debate fático e probatório para a definição da autoria na criminalidade econômica (em sentido amplo) [2], que compreende a criminalidade de empresa, a criminalidade na empresa e as empresas ilícitas [3].

A primeira consiste nas infrações penais cometidas por um funcionário específico ou terceiro contra a própria empresa ou seus membros. O Direito Penal tradicional, caracterizado pelos mecanismos de autoria e imputação já existentes, é suficiente para o tratamento dessa criminalidade [4], contanto deva ser complementado com a autorregulação empresarial, é dizer, instrumentos que possibilitam uma maior vinculação legal e ética dos dirigentes e colaboradores à cultura empresarial.

Criminalidade na empresa

A título de exemplo, as estratégias globais de cultura empresarial, visando à prevenção e ao combate da criminalidade na empresa, são, entre outras: a governança corporativa, a gestão de riscos e os programas de compliance, o qual tem sido cada vez mais tecnológico; o canal de denúncias e o código de condutas; os denunciantes-cívicos (Whistleblowing); os “testes de integridade”, ou seja, a realização de exames para aferir a integridade e idoneidade dos colaboradores; a “identidade corporativa”, com o aumento do vínculo ético entre o colaborador e a própria empresa; e o ESG (Environment, Social and Governance).

Reprodução

Ganham importância, nesse contexto, as investigações corporativas [5], que dependem de procedimentos internos padronizados e materializados pelo advogado ou pelo departamento de compliance. Essas investigações, que têm o condão de melhor definir a autoria na criminalidade na empresa, devem ser conduzidas com metodologia técnico-jurídico apropriada [6], como proposto no The International Investigations Review [7].

Criminalidade de empresa

Por outro lado, a criminalidade de empresa tem por objeto os crimes perpetrados pelos dirigentes, conselheiros ou demais membros no interesse da própria empresa, em atendimento aos fins societários. Essa criminalidade também tem demandado uma capacitação da advocacia cada vez mais técnica e sofisticada, envolvendo o manejo, além da responsabilização da pessoa jurídica em crimes ambientais, de um novo conteúdo da omissão imprópria [8].

Esse perfil de advocacia compreende a identificação de teses dogmáticas e estratégias processuais mais robustas para a defesa dos acusados, com o escopo de demonstrar sob os ângulos fático e probatório, de forma mais técnica e precisa, a autoria na criminalidade de empresa, seja em processos de menor complexidade (e.g., crimes tributários, concorrência desleal, contra as relações de consumo, entre outros), sejam nos de maior complexidade, tal como nos crimes decorrentes de desastres ambientais (e.g., Caso Brumadinho) [9] e no âmbito da saúde (e.g., Caso da Prevent Senior) [10].

Busca por respostas

Certo é que as teorias tradicionais de autoria, em particular o disposto no artigo 29 do CP e a teoria objetivo-formal, não apresentam respostas satisfatórias para essa criminalidade. Da mesma forma, os fundamentos da autoria mediata e do domínio do fato – em especial do domínio da organização [11] –, são incompatíveis com a criminalidade de empresa, embora sejam aplicáveis à autoria das organizações ilícitas [12] (e.g., participação em organização criminosa), geralmente envolvendo as operações criminais e os “maxiprocessos” [13].

Assim, tem se tornado necessário o refinamento da omissão penalmente relevante, envolvendo a compreensão, entre outros aspectos: 1. da espécie societária (e.g., sociedade anônima [14] ou limitada); 2. da possibilidade de combinação entre o artigo 13, §2º, do CP e a legislação setorial aplicável à área de atuação da empresa — e.g., Lei das S.A.s, Lei dos Crimes Ambientais, Lei da Lavagem de Capitais, etc. —, a fim de determinar se existe um vínculo legal de garantia entre os membros da organização com certos bens [15], como os diretores executivos, os conselheiros de administração e o compliance officer; 3. do controle dos dirigentes sobre as fontes de perigo da empresa; 4. a delegação de funções de controle; 5. das relações nas estruturas vertical e horizontal.

Nessa esteira, o dirigente assume a posição de garantidor no âmbito empresarial, tendo o dever de vigilância em duas searas: 1. dos produtos que a empresa distribui e comercializa no mercado, no lado externo da organização societária; e 2. das pessoas que atuam no seio da empresa.

Complementa Estellita: “Há, essencialmente, três entendimentos acerca do fundamento da posição de garantidor do dirigente: uma que se assenta no seu poder diretivo sobre os empregados, outra que se assenta na ingerência e outra que se funda no controle dos dirigentes sobre a fonte de perigo empresa[16]. Assim, o último entendimento, que se assenta no binômio liberdade-responsabilidade, é o que parece melhor fundamentar a responsabilidade dos dirigentes: à liberdade de gerir pessoas e coisas na consecução dos objetivos econômicos da empresa corresponde o dever de agir para evitar que dela advenham danos a terceiros ou à coletividade.

Imputação

Ainda no que diz respeito à criminalidade de empresa, identificamos uma autoria de cunho essencialmente individual. Neste caso, percebe-se um desvirtuamento, nas acusações, seja da “cegueira deliberada” [17], seja do domínio do fato [18], o qual, a nosso sentir, não pode ser utilizado como mera metodologia de imputação para pressupor a autoria desse tipo de criminalidade [19], sem que seja compreendido o real nível de contribuição ou atividade de cada um dos intervenientes.

Em crimes tributários e aduaneiros, é possível que seja determinada, em regra, a autoria por meio da teoria objetivo-formal então existente, não sendo o caso de autoria mediata ou domínio do fato, como nas seguintes hipóteses: 1. responsabilidade unicamente do sócio-proprietário, caracterizando autoria individual; 2. conluio entre o sócio-proprietário e os administradores, classificando-se em coautoria, em que o primeiro seria coautor intelectual, ao passo que os demais poderiam figurar como coautores funcionais; e 3. acessoriedade dos administradores à ação principal e nuclear do sócio-proprietário, em que os administradores poderiam figurar como partícipes.

Conclusão

Portanto, a advocacia criminal, mediante o aprimoramento do seu modo de atuação e pautando-se por uma linha ainda mais proativa, estratégica e inovadora sob o ponto de vista prático, tem sido fundamental no debate fático e probatório para a determinação da autoria na criminalidade empresarial, mormente para a redução dos riscos de violação à responsabilidade subjetiva.

 


[1] Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Delincuencia empresarial: cuestiones dogmáticas e de política criminal. Buenos Aires: Fábian J. di Plácido, 2004, p. 25-26.

[2] Em contribuição dogmática, identificamos a manifestação de diversos fenômenos criminológicos em meio a uma criminalidade econômica organizada: VALENTE, Victor Augusto Estevam. Direito Penal de Empresa & Criminalidade Econômica Organizada: Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas e de Seus Representantes Face aos Crimes Corporativos. Curitiba, Juruá, 2015.

[3] A jurisprudência também já reconheceu como empresa ilícita a hipótese em que a sociedade foi constituída para funcionar como “empresa de fachada”: STJ, HC 84.423. 1ª T. Min. Carlos Britto. DJ 24.09.2004; HC 81.260/ES. Plenário do STF. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 14.11.2001; HC-ED 84.453. 1ª T. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 10.06.2005.

[4] Além disso, se propõe, atualmente, a necessidade de tipificação da infidelidade patrimonial ou, até mesmo, um novo sentido de fraude a ser conferido aos crimes patrimoniais para melhor consubstanciar os ilícitos penais praticados contra a empresa. Cf. DE GRANDIS, Rodrigo. O Delito de Infidelidade Patrimonial e o Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2022.

[5] ANTUNES, Maria João. Privatização das Investigações e Compliance Criminal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Coimbra, Ano 28. Nº 1. p. 119-129, Janeiro-abril, 2018.

[6] Esse perfil de advocacia, que é possível já em nível consultivo, pressupõe o conhecimento técnico sobre a autorregulação empresarial, uma vez que nem todos os ilícitos são plenamente identificados e alcançados pelas autoridades públicas (e.g., polícia judiciária e Ministério Público), cabendo à própria empresa criar e desenvolver as condições estruturais necessárias com o objetivo de preveni-los e apurá-los internamente. É viável, além disso, a investigação criminal defensiva nas corporações. Cf. CANESTRARO, Anna Carolina; JANUÁRIO, Túlio Felippe Xavier. Investigação defensiva corporativa: um estudo do Provimento 188/2018 e de sua eventual aplicação para as investigações internas de pessoas jurídicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, [S. l.], v. 6, n. 1, p. 283–328, 2020. DOI: 10.22197/rbdpp.v6i1.324. Disponível em: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/324.. Acesso em: 8 jun. 2024.

[7] É imprescindível a conformidade constitucional das investigações internas (e.g., contraditório e ampla defesa, vedação das provas ilícitas, proibição à autoincriminação, a privacidade do colaborador e o sigilo da investigação, a proteção de dados pessoais, entre outros). Cf. The International Investigations Review: The Law Reviews. Edition 13. Nicolas Bourtin, 2023. Disponível em: < https://www.lw.com/en/people/admin/upload/SiteAttachments/The-International-Investigations-Review-13th-Edition-England-Wales.pdf >.

[8] O Direito Penal de Empresa possui quatro questões fundamentais, a saber: i. Dificuldades de conciliação do direito penal da empresa com a teoria da infração criminal; ii. A responsabilidade dos administradores e a imputação do fato de natureza criminal; iii. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e as consequências práticas do modelo de imputação; iv. Os efeitos e as implicações dos programas de compliance na responsabilidade penal, tanto das pessoas jurídicas, como das pessoas individuais. Cf. SOUSA, Susana Aires de. Questões Fundamentais de Direito Penal de Empresa. Coimbra: Almedina, 2019.

[9] “A denúncia imputa às pessoas físicas denunciadas o crime de homicídio qualificado (artigo 121, § 2º, incisos III e IV, do Código Penal, por 270 vezes [270 pessoas morreram no desastre]; crimes contra a fauna (artigo 29, caput e § 1º, inciso II, e § 4º, e artigo 33, caput e incisos V e VI, da Lei 9.605/1998); crimes contra a flora (artigo 38, caput; artigo 38-A, caput; artigo 40, caput, e artigo 48, estes combinados com o artigo 53, inciso I, da Lei 9.605/1998) e crime de poluição (artigo 54, § 2º, inciso III, da Lei 9.605/1998). As pessoas jurídicas foram denunciadas pelos crimes ambientais (crimes contra a fauna e a flora e crime de poluição)”. Para mais detalhes: https://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/desastre-da-vale-mpf-ratifica-denuncia-originalmente-oferecida-perante-a-justica-estadual.

[10] Cf. https://www.mpsp.mp.br/w/em-coletiva-pgj-e-promotores-explicam-denuncias-contra-integrantes-da-prevent-senior.

[11] ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 335.

[12] Sob o ponto de vista técnico, exsurgem controvérsias sobre a definição da responsabilidade criminal no contexto das organizações criminosas, havendo as seguintes dificuldades: i. Comprovar, suficientemente, a participação dos chefes ou líderes e dos subalternos nos crimes perpetrados pela organização criminosa; e ii. A utilização das categorias tradicionais de autoria e de participação para a definição da responsabilidade criminal, razão pela qual se revela necessário que seja realizada uma análise cuidadosa dessas categorias, com base no princípio da responsabilidade organizacional. Para mais detalhes: TEIXEIRA, Adriano; CAMPANA, Felipe Longobardi. O que é integrar uma organização criminosa? Uma reflexão em torno dos modelos de imputação ao crime associativo após 10 anos da Lei nº 12.850/13. In: 10 Anos da Lei das Organizações Criminosas: Aspectos Criminológicos, Penais e Processuais, p. 205-228, São Paulo: Almedina, 2023, p. 228; BRITTES DE ARAÚJO, Gláucio Roberto. Imputação de Autoria e Participação em Organizações Criminosas. Curitiba: Juruá, 2020, p. 335; DE GRANDIS, Rodrigo. Notas Sobre a Imputação Penal no Âmbito das Organizações Criminosas. In: 10 Anos da Lei das Organizações Criminosas: Aspectos Criminológicos, Penais e Processuais, p. 229-254, São Paulo: Almedina, 2023, p. 254.

[13] Expressão empregada por Luigi Ferrajoli (Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 5. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibañez et al. Madrid: Trotta, 2001, p. 823).

[14] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade por omissão dos membros de Conselhos de Administração. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Coimbra, Ano 28. Nº 3. p. 119, p. 403-440, Setembro-dezembro, 2018.

[15] Para mais detalhes: GRECO, Luís. ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís. LEITE, Alaor. TEIXEIRA, Adriano. ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 110.

[16] Uma aproximação às formas de responsabilidade penal individual em empresas. FGV Direito SP Research Paper Series n. CL001, p. 1-41, em especial p. 19. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3340950.

[17] A propósito, já criticamos essa “pseudoteoria”: VALENTE, Victor Augusto Estevam.  Aplicação da cegueira deliberada requer cuidados na prática forense. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-09/victor-valente-aplicacao-cegueira-deliberada-requer-cuidados/.

[18] Esse desvirtuamento geralmente ocorre em denúncias por crimes tributários envolvendo pequenas, médias e grandes empresas, com vista a fundamentar a responsabilidade criminal dos sócios-proprietários ou administradores, em concurso ou não com o contador. Sobre a falta de responsabilidade na conduta do contador: TRF 1ª Região, Terceira Turma, Processo: 0015012-92.2014.4.01.3300/BA). Ainda, o fato de o nome de um contador constar em declarações apresentadas à Receita Federal não é suficiente para imputar-lhe a prática do crime tributário (TRF-1 – ApCrim 2005.35.00.013296-3, Rel. Des. Mário César Ribeiro, DJ 30.4.2009).

[19] Sobre a inépcia da denúncia em crimes tributários: STJ, HC 224.728/PE, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 10/06/2014, DJe 27/06/2014.

Autores

  • é advogado e coordenador do Departamento de Direito Penal Empresarial e Fraudes Corporativas do Sartori Sociedade de Advogados, pós-doutor e doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. mestre e doutor em Direito Penal pela PUC-SP, especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, coordenador da especialização e professor de Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, autor de obras e artigos jurídicos.

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