Opinião

Lesão dupla e continuada: o dano depois do dano

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31 de janeiro de 2024, 13h12

A prestação da atividade jurisdicional no Brasil, função típica do Poder Judiciário, é, antes de qualquer observação, um dever estatal previsto como garantia fundamental pela Constituição.

No Direito brasileiro, é certa e pacífica a tese de que, quando alguém viola interesse juridicamente protegido de outrem, fica obrigado a reparar o dano do ato decorrente. Ultrapassar prejudicialmente a esfera jurídica alheia traz como certa a responsabilidade civil. E desde o princípio deve ficar consignada a informação de que dano é “qualquer lesão injusta a componentes do complexo de valores protegidos pelo direito[1].

Reparabilidade consagrada
A garantia da reparabilidade dos danos, sejam de ordem material ou moral, resta pacificada não só em todo o ordenamento normativo pátrio como também na doutrina e na jurisprudência. Ademais, conforme já mencionado, tamanha é a sua importância que ganhou texto na Carta Magna que, em seu artigo 5º, incisos V, X e XXXV, prevê:

CRFB, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[…]

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[…]

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

O Código Civil brasileiro, por sua vez, em consonância com o tema, traz em sua redação, mais precisamente em seus artigos 186, 187 e 927, as seguintes previsões infraconstitucionais acerca dos danos em geral, reconhecendo também a sua necessidade de reparação:

CC, Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[…]

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

E ainda, conforme é do conhecimento de juristas em geral — e já parcialmente mencionado anteriormente —, a lei não é a única fonte do direito. Além das normas legislativas, o direito também pode ser interpretado e aplicado com base nos princípios gerais do direito, na jurisprudência, na doutrina, na analogia, na equidade[2] e nos costumes.

Unanimidade
Inclusive, hoje em dia já existem discussões sobre como as tecnologias baseadas em inteligências artificiais também podem ser utilizadas como fontes jurídicas, suscitando mais uma vez a necessidade de regulamentação dessas novas ferramentas.

O principal ponto é que, não importando quantas fontes do direito haja e quantas possam surgir, todas elas possuem em comum o entendimento de que o dano comprovado, e que advenha de qualquer origem, é indenizável, sendo que isso, ao menos no mundo das ideias, é um fato inquestionável e tão certo quanto a estrela branca que surge no céu ao Leste toda manhã.

E considerando o uso da mencionada doutrina — que consiste em um conjunto de interpretações e obras analíticas teóricas feitas por especialistas e estudiosos do direito em geral, passando a, muitas vezes, compor e influenciar a aplicação do direito em um Estado — em uma interessante doutrina pátria, e de ótima utilização, Marcelo Oliveira Câmara resumiu perfeitamente no que consiste o dever de reparar quando lecionou (grifou):

O direito tem um ditame que atravessa eras e deve ser profundamente refletido: Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, neminem laedere, suum quique tribuere. (Tais são os preceitos do direito: viver honestamente, não lesar a ninguém, dar a cada um o que é seu). Este texto é de lavra de Eneu Domicio Ulpiano, que pode ser analisado da seguinte forma: se uma pessoa (natural ou jurídica) vive honestamente, com uma conduta reta, proba e escorreita, significará que nada deve a outrem, pois não lesou ninguém. Entretanto, em uma interpretação inversa, lê-se que ao viver desonestamente causará dano a outrem e deverá dar a esta pessoa algo, a título de indenização (aqui em sentido amplo). A responsabilidade civil incorre justamente neste condão. Ao sofrer algum tipo de dano, oriundo de um ato ilícito deve o causador deste (dano) indenizar a pessoa que o sofreu. Neste contexto, iniciamos o estudo da responsabilidade civil com uma análise de seu conceito perpassando pelos entendimentos de renomados juristas. O doutrinador Pablo Stolze cita José de Aguiar Dias: ‘Toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade’.

Esse entendimento é de grande acerto ao definir ao mesmo tempo as principais características e requisitos da responsabilidade civil e da necessidade de reparação por danos. É, na verdade, uma das doutrinas que melhor resume o instituto da indenização por danos materiais. E, não obstante, unindo o texto doutrinário anteriormente apresentado e a interpretação textual dos dois dispositivos legais retro mencionados (contidos na Constituição e no Código Civil brasileiro), é possível dar uma definição ainda mais sucinta quanto ao conceito de danos (sejam materiais ou morais).

Indenização por dano material ou moral
Desse resumo resulta que: todos são iguais perante a lei, que não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, sendo assegurado a todos o direito à indenização por dano material, moral ou à imagem. E todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e fica obrigado a repará-lo.

E concluindo, uma vez constituídas as provas necessárias, o direito a indenização por danos materiais e morais é um dever a ser seguido pelo Estado em favor dos jurisdicionados legítimos sem ressalvas.  Por quem? Por todo o Poder Judiciário; para quais vítimas? Para todas as vítimas; onde? Aqui; quando? Agora.

Teoria e prática
Assim, nota-se que no ordenamento jurídico brasileiro não faltam meios capazes de guiar a atividade jurisdicional rumo às decisões mais adequadas. Tal como não restam controvérsias quanto à legitimidade e a procedibilidade de uma pretensão processual que pleiteie danos à Justiça, visto que tais pedidos estão amplamente amparados pelo ordenamento jurídico pátrio, cabendo ao jurisdicionado apenas valer-se da sua competência para dizer o direito e aplicá-lo à causa com adequação e justiça.

Ocorre que, não obstante a existência de todo o arcabouço jurídico anteriormente tratado, não é possível dizer que todo o entendimento judicial pátrio está em consonância com o caminho traçado pelas fontes jurídicas. É certo que muitas das decisões prolatadas são de exímio acerto, frequentemente é possível ver julgados que são perfeitos modelos empatia, cidadania e direitos humanos, sendo que são tais decisões que vão pouco a pouco e gradualmente construindo o acervo jurisprudencial de um país. E no Brasil há notáveis exemplos de apreciações humanistas que merecem ser lembradas e estimuladas.

Porém, essas ocorrências não são uma realidade una, constituída e tampouco pacificada. Em número maior, nota-se muitos processos — que tantos esforços vitais demandaram dos seres humanos que existem por trás da sua autuação —, que não obtêm a menor garantia de um direito que, por muitas vezes, tão nítido se mostra.

Cada processo pode ser também mais um processo aumentando as estatísticas do Poder Judiciário, mas isso não significa que naqueles autos não existam pessoas reais precisando de uma tutela real que só o Poder Judiciário pode fornecer, em ultima ratio.

De forma mais específica, a negativa do direto ocorre mais frequentemente com os pedidos de danos morais requeridos à Justiça, mesmo quando o acervo probatório dos autos é robusto. Ou ainda, seguindo o rumo da total improcedência, comum é a condenação do causador de danos diversos a indenizações em valores cuja intenção é desconhecida, pois, em vez de funcionar como um instrumento de repressão e educação, mais tem o condão de representar um incentivo.

Clima de insegurança jurídica
Evidentemente, claro que o propósito do direito é tutelar o comportamento do chamado homem médio. Do contrário, todo e qualquer aborrecimento ensejaria a reparação por danos morais, o que geraria no meio social um insustentável clima de insegurança jurídica. De modo que aqui se fala de danos que indiscutivelmente provocam a necessidade de indenização e que, ademais, são muitas vezes considerados dano in re ipsa.

Se houvesse por parte de qualquer lesador contumaz (pessoa física ou jurídica) o receio de sofrer uma condenação em valores acima de R$ 50 mil, por exemplo, o Poder Judiciário começaria a ser desafogado, trazendo maior celeridade e maior qualidade de vida para quem com ele trabalha.

Na realidade, somente indenizações em valores como ou superiores a esse seriam capazes de representar de fato uma punição educativa e uma repressão geral a práticas abusivas, organizando a sociedade civil. E ainda assim não enriqueceriam o indenizado. Mais importante do que se falar em enriquecimento sem causa, é falar a respeito da causação deliberada e premeditada de danos sem causa.

Isto seria producente para a atividade judiciária porque, pelo receio, polos passivos em potencial passariam a rever a sua conduta, fiscalizar as suas práticas e evitar o frequente cometimento de danos não só em face da vítima ou em casos isolados, mas diante de toda a sociedade, que além de merecer respeito é formada por hipossuficientes em sua maioria. Assim, uma forte garantia e uma forte execução de direitos, inclusive de direitos constitucionais, é o que realmente evitaria a tão falada e conhecida avalanche de ações judiciais que assoberbam o Poder Judiciário.

Realmente, a superlotação de processos na Justiça brasileira é uma realidade. Mas isso ocorre justamente porque a população sabe bem que, no fim, é somente através dela que encontrará alguma proteção para os seus direitos. E não há qualquer demérito em utilizar o amparo judicial quando todos os demais recursos extrajudiciais se esgotarem.

Desestimular a utilização dessa última possibilidade de efetivação de direitos pelo cidadão, que é o Poder Judiciário, é justamente o que espera os praticantes de condutas vitimizadoras porque assim ninguém terá que lidar com um efetivador de garantias legais. E dizer o direito e ser o guardião das normas quando necessário são atribuições do Poder Judiciário, sem o qual a população estaria totalmente à deriva e a mercê de atitudes ilícitas.

O volume de processos existentes no Brasil não é só “culpa” dos cidadãos. Não é somente a “cultura do litígio” que assoberba as estatísticas processuais brasileiras, é principalmente a cultura social geral de ignorar a necessidade de cumprir fontes jurídicas pré-estabelecidas, e a cultura de ignorar os direitos, as necessidades e os pedidos da sociedade — que em grande parte é extremamente vulnerável — que causam essa quantidade de processos.

Dano moral presumido
Da necessidade de garantir a tutela, surge também o instituto do dano moral in re ipsa — o dano moral presumido — o qual ajuda a Justiça a reconhecer que em uma civilização firmemente formada pelo pacto social é inadmissível que alguém imponha unilateralmente danos sem causa em face de outrem sem maiores consequências. Isto destoa completamente da dignidade da pessoa humana e de variados tipos de liberdades e por todas essas razões, o dano moral se presume muitas vezes. Isso é de conhecimento do Poder Judiciário, que possui ampla jurisprudência desse teor.

O dano moral in re ipsa é presumido também devido à necessidade de resolução da alta quantidade de demandas existentes nesse sentido, de modo a tornar possível que todas sejam resolvidas de forma justa e sem precisarem de uma cognição exaustiva e de que as partes lesadas tenham que provar um sofrimento intenso e desproporcional, o que não é necessário, não significando, é claro, que não tenha havido um verdadeiro dano moral, pelo sentimento do injusto e do descaso provocados.  O que se presume é que, em grande parte dos casos, sempre há a presença de lesão a direitos de personalidade diversos, que não precisam ser desgastantemente comprovados.

O sentimento de ser destinatário de um injusto certamente não faz bem à psiqué de pessoa alguma. É isso que se denomina responsabilidade social e é daí que provém a necessidade de proteger a sociedade destas práticas, e é nesse ponto que a vítima, ao ver seus pedidos negados dia após dia, sofre uma verdadeira revitimização pelo Estado, ocorrendo um verdadeiro dano sobre dano.

Certamente pode representar uma lesão dupla para o jurisdicionado saber que a única barreira que o impede de ser vitimizado por uma pessoa jurídica que lhe exija o pagamento de uma dívida que ele não contraiu é uma indenização por danos morais no valor de 500 reais.

Também é necessário pensar sobre até que ponto pode ser novamente moralmente ferido alguém que, ao requerer uma indenização por danos morais em razão de diversas agressões sofridas, lê na sentença em que buscou tutela que a ação foi motivada por haver interesse amoroso da parte requerente em seu agressor [3]. Somando tais circunstâncias ao dano inicial, muitas das partes lesadas certamente têm sua saúde psicológica duplamente afetada.

Por fim, mas não sem importância, indenizações justas para ambas as partes representa ainda, diretamente, respeito aos direitos trabalhistas do advogado, cujos honorários são, acima de tudo, alimentos. Nesse sentido prevê o artigo 22 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei nº 8.906 de 04 de julho de 1994, que em seu Capítulo VI, que trata “dos honorários advocatícios”, determina: “EAOAB, Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência”.

Todo aquele cujo trabalho é manipular o direito já demonstra de per si sua capacidade intelectual, de modo que são dispensáveis demonstrações demasiadas dessa realidade. Na aplicação do direito, o que realmente se faz necessário é a observação dos casos concretos, que são demonstrações da vida real que vão muito além de discussões teóricas. In fine: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”, Carl Jung.


[1] BITTAR, C. A. Reparação civil por danos morais. São Paulo, RT, 1993, p. 12.

[2] Observância à igualdade de cada um para fins de concessão de direitos.

[3] Casos reais provindos da atuação profissional da autora.

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