Opinião

Pontes de Miranda deixou bibliografia de cientista para cientistas

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31 de janeiro de 2024, 17h13

Em que pese cada vez menos trazido aos debates, a bibliografia oceânica de Pontes de Miranda permanece necessária. Trata-se de um pensador de alto quilate, que deixou-nos vasto material no qual expõe suas ideias e problematizações as quais se prestam em auxílio diante do problemas do Brasil (se são os problemas — de sempre — sustenta-se, então eles se agravaram). E também, que não se olvide, suas proposições. Não é crítico a esmo, apresenta as ideias de outros autores e confronta-as, aponta o que entende equívoco e fundamenta com as assertivas que entende corretas.

Obra de estreia e influências
O primeiro título, À Margem do Direito, um ensaio de psicologia jurídica, foi publicado em 1912. O autor, por volta dos seus 19 anos, faz o prognóstico de sua visão peculiar de mundo, especialmente do direito. De forma autêntica, trata-o como mais um processo de adaptação social do homem, isto é, com carga fenomenológica, o direito “é”, afastando-se do “dever-ser” difundido especialmente pelo austríaco Hans Kelsen. É um dos pontos altos de sua abordagem. Os autores partem de pontos diferentes, em que pese alguns se confundam, e cheguem a afirmar que chegam ao mesmo fim. Não procede.

Pontes de Miranda alia-se à sociologia. A isso se deve a influência do positivismo de Augusto Comte, em especial associada ao evolucionismo de Spencer e Darwin, somando-se o cientificismo trazido por Tobias Barreto na Faculdade de Direito de Recife, onde o autor formara-se. A simpatia pela cultura alemã e os expoentes dela eclode nesse tempo.

Livros fundamentais
A seguir foram listadas algumas obras as quais são consideradas imprescindíveis para a compreensão do pensamento do autor. O objetivo é, além de divulgá-las, demonstrar a ímpar capacidade do autor de desenvolver suas ideias nas mais variadas searas do conhecimento. O que apenas corrobora o pensamento do autor, para o qual todas as ciências partem de uma gênese em comum.

Em 1916, publica História e Prática do Habeas-Corpus. A obra, com algumas reedições é ainda hoje instrumento válido para a compreensão do instituto, em especial na sua evolução no transcorrer da civilização.

Em 1917, publica Direito de Família, no qual reitera tratar-se o direito de mais um processo de adaptação social (como a política, a moral, a economia, a religião, a arte, a estética, a ciência).

O título mais importante, pelo que se pode constatar após longa pesquisa, é o Sistema de Ciência Positiva do Direito, publicado em 1922. Nessa obra o autor reúne os fundamentos do que escrevera até então e, como o próprio nome aponta, sistematiza o seu pensamento.

É, sustenta-se, o instrumental. Uma descrição pormenorizada do instrumental para análise dos elementos os quais se apresentam em sua jornada intelectual. Segundo o autor, foi presente dado pelo centenário da independência do Brasil, no qual debruçara-se por dez anos até a sua conclusão.

Escritos em alemão
Seleciona-se um dos artigos em alemão considerados fundamentais para a compreensão do pensamento do autor: “Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, publicado em 1923 na revista Archiv für Rechts — und Wirtschaftphilosophie”. A abordagem objetiva, sistemática, científica, mais uma vez latente na bibliografia do autor.

Complemento
Em 1924, publica Os Fundamentos da Política Científica, na linha de Sistema de Ciência Positiva do Direito. Entretanto, adverte o autor, não se contrapõem e nem se presta a substituir a obra de 1922. São para momentos distintos, mas que se complementam. Nessa obra, sua advertência permanece incólume, e explica parte do que sobreveio no âmbito jurídico brasileiro: Nas faculdades de direito, deveria estar escrito: Aqui não entrará quem não for sociólogo. E o sociólogo pressupõe o matemático, o físico… é flor de cultura.

1924 a 1953
Em 1924, publica Introdução à Sociologia Geral. Nesse mesmo ano, teve o privilégio de conversar, em alemão, com o físico Albert Einstein, quando da vinda deste ao Brasil, e pode o autor ajudar Einstein a aperfeiçoar a sua teoria da relatividade.

Em 1928, publica Fontes e evolução do Direito Civil Brasileiro, que se originou de “notas pessoaes”, nas palavras do próprio autor.

Em 1932, publica Os Fundamentos Actuaes do Direito Constitucional, no qual se constata o ressalto dado ao direito internacional pelo autor, bem como às estruturas que compõem o Estado e suas respectivas atribuições.

Em 1933, publica Os novos Direitos do Homem. Nele, o autor apresenta as cinco pontas da estrela socialista (evitem-se anacronismos), trata-se de um projeto de Estado brasileiro, baseado em direito à educação (objeto de outro título, publicado também em 1933), direito à subsistência, direito à assistência e direito ao Ideal e direito ao Trabalho. Trata-se de um humanista, progressista que não admitia avanços sem o caminhar da sociedade como um todo.

No mesmo ano de 1933, publica Anarchismo, Communismo, Socialismo. Nesse título, faz uma análise de cada ideologia, apontando o que entende como assertivas e equívocos. Análise essa que não se restringe ao tempo da publicação. Ainda se prestam ensinamentos, problematizações válidas.

Em 1934, publica A Acção Rescisória Contra as Sentenças (o título foi atualizando-se, em especial pela entrada em vigor do Código de Processo Civil  de 1939, bem como pela entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973). Falando em Código de Processo Civil, o autor prestou-se também a comentá-los, atualizando-se quando necessário.

Em 1937, publica O problema Fundamental do Conhecimento. A análise epistemológica do autor, a preocupação com os universais. Nesse título, destaque para a chamada teoria dos jetos, a qual, na busca pelo conhecimento, transformava o observador sobretudo em instrumental, e o objeto em abstração, reunião de todas as qualidades iguais aos objetos de igual natureza. Mister a citação: Ciência é persuasão. Onde se impõe não é mais Ciência.

No pós-segunda guerra, viu publicado em 1945 o título Democracia, Liberdade, Igualdade: os três caminhos. Obra igualmente valiosa, na qual o autor traça o histórico dos três elementos e propugna uma sociedade que os tenha na mesma proporção, pois, os excessos desequilibram, e não levam ao caminho ideal. Preocupação do autor para que os erros do passado não voltem a se repetir.

Em 1953, Garra, Mão e Dedo. A análise antropológica do autor, da evolução do homem enquanto ser que vive em grupo. A tantas, afirma: “não foi o homem que fez a assembleia, foi a assembleia que fez o homem, isso é, foram os debates, a necessidade de se defender pontos de vista com argumentos em comunidade, com discursos que, pode-se concluir, reduziu o ‘quantum’ animalesco”.

1954 a 1960
Em 1954, o primeiro tomo de sua obra mais conhecida: Tratado de Direito Privado, que quando concluída alcançou o recorde ainda mantido de 60 volumes. Sustenta-se que a referida biblioteca tem o sentido dado pelo autor no contexto do já citado Sistema de Ciência Positiva do Direito. Referir-se ao tratado de direito privado sem uma breve análise que seja do sistema é compreender parcialmente, muito aquém do proposto pelo autor.

Brindou-nos com sua maestria ao comentar as Constituições do Brasil dos anos de 1934, 1937 (em plena ditadura do Estado Novo), 1946 e 1967, com a emenda constitucional de 1969 (em plena ditadura militar instaurada pós 1964). Desde sempre, é coerente ao tratar dos temas realçando as liberdades, a igualdade e a democracia, sendo enfático quando deparando-se com retrocessos e atrasos.

Faceta literária
Em 1960, publica Prosa e Poesia: Obras Literárias. Uma compilação de obras outrora publicadas, como A sabedoria dos Instintos, A sabedoria da inteligência, O sábio e o Artista, Penetração e outras mais. A típica maestria do autor também manifesta-se no campo literário. E como de seu costume, põe seus leitores não apenas para concluir, mas para meditar, para persuadirem-se com suas ideias. O método indutivo é uma marca constante.

De cientista para cientistas
O autor, pelo que pode se constatar, assume a postura de um verdadeiro cientista social. Aos tempos de hoje, a estética de sua escrita deixa evidente um dos vértices de sua axiologia. Exige, pois, do leitor, que ele se ponha na mesma posição, da mesma forma, científica.

Sejamos, pois, o cientista que Pontes de Miranda espera que sejamos. Ponhamo-nos na posição do ser que inquieto indaga a gênese dos elementos, do que são compostos, e especialmente, que afastemo-nos dos subjetivismos na compreensão dos fenômenos, que extraiamos deles o que eles são, ontologicamente, e que possamos, a partir disso, desvendar as relação que se estabelecem e de que forma elas exprimem-se no mundo.

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