Opinião

O formalismo no ordenamento: um critério inafastável

Autor

  • Werner Grau Neto

    é advogado e professor universitário especialista em Direito Ambiental mestre em Direito Internacional e doutor em Direito Tributário pela USP.

21 de janeiro de 2024, 9h14

Uma das características do ordenamento jurídico que se aprende nas faculdades de direito é o formalismo. Porquanto criado para conformar a conduta humana a determinados parâmetros — em verdadeira renúncia dos indivíduos à liberdade plena, limitada pela conjugação de direitos e deveres contrapostos e sobrepostos — necessários à vida em sociedade, o ordenamento jurídico estratifica, regula e determina forma e limites aos atos praticados pelos indivíduos, pessoas jurídicas e Estado.

A forma é elemento indissociável da eficiência do ordenamento. Entrega-se forma específica a determinados atos como meio de, pela estratificação, dar a todos o mesmo espaço e limites.

No que toca ao Judiciário, instrumento de materialização do ordenamento pelo exercício da prestação jurisdicional, não se poderá flexibilizar as regras de forma, sob pena de negação ao sistema, ao próprio ordenamento. A ordem que se põe há de ser observada e imposta pelo Judiciário, que dela é guardião, fazendo-o sob batuta rígida e inflexível. A toda flexibilização do ordenamento, pelo seu guardião, rasgar-se-ia o sistema em seu todo.

O processo civil será necessariamente expoente desse requisito: conteúdo e forma caminham lado a lado, sem espaço para que se distanciem os agentes envolvidos no processo das regras de forma que se impõem.

Há poucos dias, no entanto, chamou a atenção da comunidade jurídica decisão que em seu todo ofende os requisitos básicos do processo.

Em caso que tramita perante o Judiciário no estado de São Paulo, por ocasião de julgamento de recurso de apelação, proferiram os causídicos que representam a apelante a sua assistente sustentação oral, esse momento do “direito ao vivo”, conforme já defendi aqui.

Pois bem. Realizadas as sustentações orais, e julgado o apelo, tão logo publicado o acórdão sobrevieram embargos de declaração, estes opostos pela ré apelante e por sua assistente.

Os declaratórios foram no entanto havidos por intempestivos, porquanto o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, invocando o artigo 718 de norma regimental interna, entendeu que, proferidas sustentações orais, e lida a ementa do acordão na sessão, na presença dos causídicos, teriam estes saído da sessão de julgamento já intimados do teor do quanto decidido, de sorte que a partir dali fluiria o prazo para os declaratórios e recursos outros.

Este Conjur publicou opinião de processualistas, todos oferecendo crítica à decisão, seja porquanto calçada em normativa à qual não compete estabelecer regras processuais, atribuição exclusiva da União, seja porque, bem ali destacado, não se tinha, àquele momento, ao final do julgamento do caso, o acórdão do qual se recorrerá.

A este ponto último é que me valho dessas limita das linhas para filiar pensamento e buscar agregar argumento.

Já aqui defendi, por mais de uma vez, uma visão conceitual do que é o ordenamento, esse emaranhado de regras que, articuladas de forma hierarquizada, conforme nos ensinou Kelsen[1], estabelecem o modelo de convivência em sociedade. Tudo na vida em sociedade é limite e forma. Limita-se a liberdade, define-se a forma pela qual se exerce direitos — leia-se, limita-se esses direitos e seu exercício — e o modo pelo qual se conformam os atos praticados pelo Estado e pelo Judiciário. Qualquer manifestação que exceda, desprenda-se ou fuja à forma posta em lei é inválida, sujeita-se a questionamento e perde-se de seu norte.

Aqui, no caso reportado, o ponto atine à forma pela qual os nossos tribunais, no exercício da função da prestação jurisdicional, entregam o resultado do julgamento dos casos cujo exame lhes é devolvido em sede recursal — aqui, na espécie, apelação.

A lei é clara, objetiva [como deve ser] e não entrega espaço a flexibilização, licença poética ou o que quer que seja: acórdão é o documento, a decisão por meio da qual a corte recursal materializa seu decisum. Nada, em hipótese alguma, ato nenhum outro, substituirá ou figurará em lugar do acórdão. Somente o acórdão materializa a decisão colegiada fruto do julgamento do apelo.

Estamos aqui diante especialmente do § 2º do artigo 943 do Código de Processo Civil, que expressamente impõe que a ementa seja parte do acórdão, e não o contrário e, menos ainda, algo livre e solto no tempo e no espaço.

Dá-se o julgamento, com o belíssimo exercício do direito ao vivo, as sustentações orais, e então os magistrados decidirão, debatendo as questões submetidas a si na forma e extensão que entenderem necessário, para então, se chegarem ao final do julgamento — ou seja, não havendo pedido de vista, conversão do julgamento em diligência, ou reconhecimento de algum elemento impeditivo à apreciação do mérito do caso — proferir-se o resultado a que chegaram — de unanimidade, ou decisão por maioria — para harmonizar o conflito.

Não há aqui, ainda, acórdão materializando a decisão. Não se recorre do julgamento, ou da ementa que eventualmente venha a ser proferida por ocasião do julgamento. Recorre-se, única e exclusivamente, do acórdão representativo do julgamento realizado, e somente após disponibilizado este a todas as partes envolvidas no processo.

Reduzir a formalização do julgamento à leitura da ementa, para que disso recorram as partes, é ferir o básico requisito de validade que se impõe às decisões judiciais. Relatório, fundamentação e dispositivo.

O tema é caro à sociedade e é regra intrínseca ao exercício de qualquer função que represente um Poder — mas que tantas vezes é maltratada nas esferas do Executivo e, também, do Judiciário — que toda e qualquer decisão, administrativa ou judicial, seja fundamentada, revelando seus elementos de exame, fundamentação e dispositivo, e tenha em conta a realidade social, não podendo ser reduzida, seja ela administrativa ou judicial, a algo menor, que pelo apelo da flexibilização, ou pelo canto da sereia de uma maior eficiência temporal, perca-se de seus elementos essenciais.

As partes, neste caso que aqui se traz como razão de escrever, ou em qualquer outro, somente terão a fluência do prazo para de uma decisão recorrer quando esta decisão for devidamente publicada, pelos meios oficiais, observadas todas as formalidades aplicáveis, sejam elas de forma e formação da decisão, sejam elas meramente burocráticas.

Vivemos tempos difíceis, em que a sociedade líquida para a qual nos chama a atenção Bauman perde-se de seus valores, notadamente aqueles formais, em nome de uma eficácia que, não raras vezes, compromete a validade do ato que se quer tornar expedito.

Faz-se necessário ter apego às regras que compõem o sistema — o ordenamento — que nos possibilita viver em sociedade. Ou sucumbiremos às vontades, em breve, do momento de cada indivíduo, e deixaremos de atender às necessidades da sociedade para viver da imposição do desejo de cada um.

O Judiciário é o guardião dessas regras, desses limites, da forma. E não pode dobrar-se a interpretações que excedam a necessária conformação do todo à igualdade de tratamento diante de todos os casos.


[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito

Autores

  • é advogado e professor. Especialista em Direito Ambiental, mestre em Direito Internacional e doutor em Direito Tributário pela USP. Ativista da proteção animal.

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