Opinião

Impossibilidade de ANPP no crime de maus-tratos contra cães e gatos

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Manoel Franklin Fonseca Carneiro

    é juiz de direito no TJDFT pós-graduado em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe) e Universidade Internacional (Uninter) e em Direito Processual Civil nas Cortes Superiores pela Faculdade Mackenzie professor de Direito Animal na OAB-DF conferencista e palestrante.

1 de agosto de 2023, 7h07

O crime de maus-tratos contra animais após a Lei "Sansão"
O crime de maus-tratos contra animais (melhor: crime contra a dignidade animal) está previsto no artigo 32 da Lei 9.605/1998, conhecida como "Lei dos Crimes Ambientais".

A redação atual do dispositivo, com o parágrafo 1º-A introduzido pela Lei 14.064/2020 (destaque nosso), é seguinte:

"Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal."

A Lei 14.064/2020 foi batizada como "Lei Sansão" (em homenagem ao cão vítima de tortura e amputação das patas traseiras) e resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do deputado federal Fred Costa (Patriotas/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.

O tipo qualificado do crime contra cães e gatos
O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.

No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, "em estabelecimento de segurança máxima ou média" (artigo 33, § 1º, I, CP).

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Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995.

Em consequência:

(1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (artigo 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (artigo 159, CPP);

(2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (artigo 313, I, CPP), após audiência de custódia;

(3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (artigo 322, CPP);

(4) descabe transação penal (artigo 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (artigo 394, § 1º, I, CPP);

(5) também não cabe a suspensão condicional do processo (artigo 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.

Violência como elementar do tipo no crime de maus-tratos contra animais
Ao contrário do que se costuma dizer, não é o meio ambiente, a natureza, o equilíbrio ecológico ou a biodiversidade os bens diretamente protegidos pela norma penal contida no artigo 32, da Lei 9.605/1998. A criminalização das condutas apontadas no tipo, simples ou qualificado, decorre da regra da proibição da crueldade contra animais, estabelecida no artigo 225, § 1º, VII, da Constituição, da qual se revelam o valor intrínseco de todo animal e a dignidade animal individual, independentemente das suas funções ecológicas [1].

Destarte, verifica-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime.

Apenas como sujeito passivo mediato do crime poder-se-ia cogitar o meio ambiente, ante o direito difuso de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, possibilitando a defesa dos animais também nas searas administrativa e civil, quando incabível a via criminal, que exige conduta dolosa [2].

Considerando tudo isso, deve-se perceber que todo crime tipificado no artigo 32, da Lei 9.605/1998, é doloso e violento. A violência intencional, nesse caso, é dirigida ao animal vítima do crime. Não há abuso, maltratamento, ferimento, mutilação ou experimentação dolorosa indevida sem violência contra o animal.

A violência contra os animais não é limitada ao sofrimento físico diretamente infligido, como no caso do ferir ou do mutilar, constantes do tipo penal. Os maus-tratos, nas suas diferentes caracterizações [3], o abuso e a utilização indevida em experimentos científicos dolorosos também são condutas humanas violentas contra animais, descritas no tipo, nas quais o sofrimento animal pode ser tanto físico, como psíquico.

Vale sempre relembrar que os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais [4].

O acordo de não persecução penal após a Lei 13.964/2019
O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor [5].

A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.

Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado "pacote anticrime" (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Da leitura do referido artigo 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (grifo nosso); (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O § 2º do artigo 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.

Da impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos
É evidente que, no tipo simples do crime de maus-tratos contra animais, que não sejam cães e gatos, são cabíveis diversas medidas despenalizadoras, como a transação penal, dado que, por enquanto, se trata de crime de menor potencial ofensivo, submetido às branduras dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Descabe o acordo de não persecução penal nesse caso, ante a imposição do artigo 28-A, § 2º, I, do CPP, até por ser desnecessário.

Mas, em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do artigo 32, da Lei 9.605/98, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado não se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo.

Também se deve concluir não ser cabível o acordo de não persecução penal para esse tipo qualificado de crime contra animais.

A título de introdução, vale a pena recordar as palavras da professora Sônia Felipe, verbis (com destaque nosso):

"[…] se negamos aprovação moral a alguém que causa dor e sofrimento a um ser humano para se beneficiar de tais atos, então devemos manter a mesma convicção quando se trata da dor e sofrimento de outros seres, ainda que não pertençam à espécie Homo sapiens, pois o que está em jogo, em primeiro lugar, é o sofrimento, não a natureza dos seres que sofrem, e em segundo lugar, a integridade e coerência moral do agente, não a qualidade moral do paciente" [6].

São despiciendas maiores indagações para a interpretação do artigo 28-A do CPP, no sentido de se descortinar se a violência a que se refere o dispositivo seria exclusivamente contra a pessoa humana, pois a finalidade do instituto despenalizador em comento é avaliar a periculosidade e a culpabilidade do agente, e não a qualidade da vítima.

O que se julga é a conduta do agente e o sofrimento impingido à vítima, e não a natureza do ser vitimado. O objetivo é impedir que os violentos se beneficiem dos favores legais, forma correta de política criminal, haja vista ser hodiernamente sabido que as pessoas cruéis contra animais têm grande probabilidade de cometer crimes violentos contra seus próprios semelhantes, conforme a denominada Teoria do Link [7], estudada nos Estados Unidos desde a década de sessenta e, posteriormente em outros países, inclusive no Brasil [8].

Com essa perspectiva, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT), por exemplo, já consolidou entendimento de que a violência referida no artigo não fica restrita às pessoas humanas, abrangendo as outras formas de vida sencientes, como se vê em decisão da sua Vice-Procuradoria de Justiça, homologando parecer da sua 1ª Câmara de Coordenação e Revisão da Ordem Jurídica Criminal, que ratificou entendimento do parquet ao não conceder o acordo de não persecução penal a agente do crime de maus-tratos a uma cadela, uma vez que o crime havia sido cometido com violência, mesmo com aquele preenchendo os demais requisitos objetivos do instituto.

Confira-se trecho da manifestação da douta vice-procuradora de Justiça do MPDFT, Selma Sauerbronn:

"Ademais, a tese sustentada pela Defesa não merece nenhum acolhimento, posto que a violência impeditiva da benesse, prevista no caput do art. 28-A, do CPP, não se restringe somente à pessoa, mas também abarca a vida e integridade física, de humanos e animais, todos estes detentores de direitos de personalidade, como direito à vida e ao não-sofrimento. Logo, a violência perpetrada contra esses seres vivos não pode ser incluída na categoria de violência contra a coisa. Legítima, portanto, a recusa ministerial de ofertar o ANPP." [9]

Da mesma forma, o juízo da 2ª Vara Criminal de Montenegro (RS), em julho de 2023, deixou de homologar o acordo proposto pelo Ministério Público, dentre outros fundamentos, pelo de que "Se a Constituição da República diz que o animal não é uma coisa, senão um ser senciente, dotado de valor e dignidade próprios, não se pode incluir a violência contra os animais na categoria de violência contra a coisa, por se tratar de interpretação contrária ao texto constitucional" [10].

Esses aportes interpretativos pós-humanistas para o Direito Processual Penal são adequados e razoáveis, considerando a evolução social, evidenciada pela crescente sensibilização social para o tema da violência contra animais, do que é demonstração a própria Lei Sansão.

Assim, não se deve admitir o acordo de não persecução penal em relação ao crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos, considerando que a violência contra os animais é ínsita ao tipo penal, e o artigo 28-A do CPP não se refere à violência ou grave ameaça à pessoa, mas, de forma mais ampla, à violência ou grave ameaça em geral, o que deve abranger as práticas violentas dirigidas a qualquer ser vivo senciente (especialmente cães e gatos), dada a existência de tipos penais — como o do artigo 32 — que protegem a dignidade para além dos seres humanos.

Por fim, seria importante abrir à vítima — inclusive os animais, representados processualmente por um guardião ou sociedade protetora, interessado ou habilitado como assistente do Ministério Público — a possibilidade de controle sobre o acordo de não persecução penal, postulando a sua revisão pelas instâncias superiores do próprio Ministério Público, na forma preconizada pelo artigo 28, § 1º, do CPP, com a redação dada pela Lei 13.964/2019.

 


[1] Cf. ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 56-79; STF, Pleno, ADI 4983, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017 (especialmente os votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber).

[2] Sob essa ótica, o direito de todos os animais em território nacional – quer sejam silvestres (da nossa fauna), exóticos (da fauna de outros países) ou domésticos – de não serem submetidos a crueldade integraria o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e isso por intenção dos legisladores constituintes, ao colocar a última figura do parágrafo 1º, inciso VII, no art. 225, da Constituição Federal, relativo ao meio ambiente, porque reconheceu que o respeito às outras formas de vida deve constar em todo rol de direitos e garantias individuais de um Estado democrático, pois a crueldade não deve ser tolerada sob nenhuma justificativa.

[3] Nas hipóteses catalogadas, por exemplo, no art. 3º do Decreto 24.645/1934 ou no art. 5º da Resolução CFMV 1.236/2018.

[4] Cf. Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos (2012), disponível em: https://labea.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Cambridge-sobre-Consci%C3%AAncia-Animal.pdf. Acesso em: 25 jul. 2023.

[5] Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, HC 636.279/SP, Relator Min. JOEL ILAN PACIORNIK, julgado em 09/03/2021, publicado em 23/03/2021.

[6] FELIPE, Sônia Teresinha. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Boiteux, 2003, p. 155.

[7] NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Maus tratos aos animais e violência contra pessoas: a aplicação da teoria do link nas ocorrências atendidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. São Paulo: Edição do Autor, 2013.

[8] SCHEFFER, G. K. Animal abuse: a close relationship with domestic violence. Derecho Animal (Forum of Animal Law Studies), 10/2 (2019). DOI: https://doi.org/10.5565/rev/da.425. Acesso em: 17 jul. 2023.

[9] TJDFT, Autos PJE 0719723-51.2021.8.07.0003, manifestação do MPDFT em 17/02/2022.

[10] TJ-RS, 2ª Vara Criminal de Montenegro, Autos E-PROC Inquérito Policial 5002735-02.2023.8.21.0018, juiz de Direito Ademar Eleutério Junior, assinada em 20/7/2023.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor da Faculdade de Direito da UFPR, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • é juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, especializado em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná / Universidade Internacional - PR, co-fundador do Curso Direito Animal - Aspectos Teóricos e Práticos, ministrado na Escola Superior da Advocacia do Distrito Federal e exerceu as funções de promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Goiás.

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