Opinião

Primeira sentença a conceder indenização a animais vítimas de maus-tratos

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Gean Lucas Carvalho

    é advogado especialista em Direito Processual Civil Centro Universitário do Vale do Iguaçu (UGV) e especialista em Neurociência Aplicada ao Direito e Comportamento Humano pela Escola de Magistratura Federal (Esmafe) e graduado em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Iguaçu (UGV).

27 de outubro de 2023, 21h34

Sendo o Direito Animal o ramo jurídico no qual animais são sujeitos de direitos não bens, nem coisas , falar em judicialização do Direito Animal é falar no fenômeno em que os próprios animais vão a juízo para reivindicar seus direitos.

Como sujeitos de direitos materiais, os animais também passam a ser sujeitos de direitos processuais, dentre os quais, o direito de ação, como decorrência lógica fundamental da garantia do acesso à justiça, atribuída a todos os sujeitos de direitos tenham ou não personalidade jurídica , conforme o artigo 5º, XXXV, da Constituição.

Reprodução
Trata-se, inequivocamente, de judicialização, uma vez que ainda há resistência legal e prática à atribuição plena do status jurídico de sujeitos a todos os animais, de forma a realizar a universalidade de proteção prometida pela própria Constituição (artigo 225, § 1º, VII).

A judicialização do Direito Animal significa, em última análise, a inclusão dos animais não-humanos em nossa comunidade moral por meio do direito e do processo.

É possível, no entanto, sistematizar três fases ou momentos históricos da judicialização do Direito Animal [1]: a) Judicialização primária: é a fase primordial ou embrionária da judicialização, na qual os animais são defendidos como bens ambientais. Não se trata, propriamente, de judicialização do Direito Animal, dado que, ainda, os animais não são considerados sujeitos de direitos, mas apenas elementos da fauna e da biodiversidade, relevantes apenas pela sua função ecológica; b) Judicialização secundária: é a fase intermediária na qual os animais passam a ser defendidos em juízo como indivíduos conscientes, porém, por meio de ações titularizadas pelos seus responsáveis humanos, como nas ações contra condomínios ou em ações de Direito das Famílias [2], além do recente fenômeno das ações em que se pleiteia o transporte aéreo de animais de estimação na cabine dos aviões, junto com seus pais humanos [3]; c) Judicialização terciária ou judicialização estrita do Direito Animal: é a judicialização do Direito Animal, propriamente dita, por meio da qual os animais defendem seus direitos em juízo, representados na forma do artigo 2º, § 3º do Decreto 24.645/1934.

A judicialização terciária do Direito Animal é novíssima, iniciada em 2020, com animais não-humanos, notadamente cães e gatos, propondo demandas de reparação civil, perante a justiça dos estados, representados, na forma do Decreto 24.645/1934, por seus pais humanos ou por entidades privadas de proteção animal. As primeiras demandas foram propostas, em janeiro de 2020, perante as comarcas de Salvador (BA) e de Cascavel/PR [4].

Hoje é possível encontrar ações de judicialização terciária, com animais demandando em nome próprio, em vários Estados da Federação brasileira [5].

Momento importante da história da judicialização do Direito Animal foi o primeiro julgado de Tribunal de Justiça admitindo a capacidade processual dos animais, em setembro de 2021, produzido no caso Spike & Rambo, assim ementado:

"Recurso de agravo de instrumento. Ação de reparação de danos. Decisão que julgou extinta a ação, sem resolução de mérito, em relação aos cães
Rambo e Spike, ao fundamento de que estes não detêm capacidade para figurarem no polo ativo da demanda. Pleito de manutenção dos litisconsortes no polo ativo da ação. Acolhido. Animais que, pela natureza de seres sencientes, ostentam capacidade de ser parte (personalidade judiciária). Inteligência dos artigos 5º, XXXV, e 225, § 1º, VII, ambos da Constituição Federal de 1988, c/c art. 2º, §3º, do Decreto-Lei nº 24.645/1934. Precedentes do Direito Comparado (Argentina e Colômbia). Decisões no sistema jurídico brasileiro reconhecendo a possibilidade de os animais constarem no polo ativo das demandas, desde que devidamente representados.
Vigência d Decreto-Lei nº 24.645/1934. Aplicabilidade recente das disposições previstas no referido decreto pelos tribunais superiores (STJ e STF). Decisão reformada. Recurso conhecido e provido"
 
[6].

Mas, certamente, o momento culminante de todo esse percurso histórico acaba de acontecer: foi publicada, em setembro de 2023, a primeira sentença de mérito de procedência, em ação de responsabilidade civil, proposta por animais.

Trata-se da primeira vez que o Poder Judiciário reconhece o direito animal à reparação de danos morais (ou danos animais [7]).

É o caso Tom & Pretinha, a seguir sumariado.

No dia 26/5/2021, por volta das 18 h, uma terça de superlua cheia, o tutor dos animais resolveu fazer uma fotografia time-lapse do evento astronômico e aproveitou a ocasião para levar os seus companheiros caninos para um passeio: a cadela Pretinha, sem raça definida, e um labrador caramelo conhecido por Tom.

Chegando no local o tutor retirou os animais da guia, permitindo que eles explorassem o ambiente, o qual, diga-se de passagem, era um terreno baldio, frequentado por muitos moradores. Passados alguns minutos, um homem, portando uma arma de fogo, efetuou vários disparos, sem nenhum motivo aparente, contra os cães. Imediatamente a Polícia Militar foi acionada, a qual socorreu os cães e os encaminhou ao atendimento médico veterinário.

Constatou-se que o cão Tom foi atingido por um disparo em uma das patas, gerando a fratura do osso olecrano. Já a cadela Pretinha foi alvejada com dois tiros, um no abdômen e outro na pata direita traseira. Os tiros supostamente foram deflagrados por uma pistola modelo G2C, calibre 9 milímetros.

Como o autor dos disparos não forneceu nenhum tipo de assistência às vítimas caninas, elas ajuizaram, representadas pelo tutor e em litisconsórcio com ele, ação de responsabilidade civil, pleiteando a reparação pelos danos morais, estéticos e materiais sofridos, perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Porto União/SC, sob o n° 5002956-64.2021.8.24.0052.

O juízo estadual, em sua primeira decisão, afirmou que os animais são coisas, pois eram propriedades do seu tutor, mas não houve exclusão de Tom e Pretinha do polo ativo da demanda. Foi realizada a citação do réu, sendo designada a audiência de conciliação ou de mediação do artigo 334 do CPC, a qual restou infrutífera.

Em contestação, o réu alegou, preliminarmente, que Tom e Pretinha não possuíam "legitimidade ativa" (rectius: capacidade de ser parte), pois eles não são pessoas naturais, violando a regra insculpida no artigo 70 do CPC. No mérito, disse, em síntese, que agiu em legítima defesa, pois os dois cães teriam um comportamento violento, os quais foram instigados a atacar um terceiro cão, chamado Colt, que estava sob os cuidados do réu, pelo que realizou os disparos com a finalidade de repelir um eventual ataque.

Na decisão de saneamento, o juízo mostrou sinais de mudança de entendimento, reconhecendo que os animais são sujeitos de direito. Foi realizada audiência de instrução, com a inquirição das partes e de testemunhas. Houve manifestação do Ministério Público, como custos iuris, o qual, no curso do seu parecer, em interpretação bastante conservadora, afirmou que os animais "embora sejam seres dotados de sensibilidade e protegidos de qualquer forma de crueldade, os aspectos que lhes envolvem dizem respeito ao direito de propriedade, especificamente o direito das coisas".

Com esse breve sumário do processado pelo juízo cível, adveio a sentença de mérito, julgando parcialmente procedentes os pedidos.

Ao contrário do que defendeu o réu na contestação e do que entendeu o Ministério Público em primeiro grau, a sentença afirmou a legitimidade dos animais para pleitear os seus direitos em juízo, tomando, como base, o já referido julgado da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no caso Spike & Rambo.

Quanto ao mérito, o juízo a quo afastou a tese da legítima defesa alegada pelo réu, reconhecendo as lesões sofridas pelos autores não-humanos, com base nos documentos juntados nos autos. O réu foi condenado ao pagamento de indenização pelos danos materiais sofridos pelo tutor com as despesas veterinárias e ao pagamento de indenização pelos danos morais dos animais, esta última no importe de R$ 1.000 para cada um dos cães.

Importante salientar que a sentença deixou claro que o valor da indenização por danos morais pertence aos animais, pelo que deverá ser usufruído em benefício exclusivo deles próprios.

A sentença assim registrou: "Pelas suas condições, de animais, referido valor de indenização deverá ser usufruído pelos autores (se ainda vivos), através de tratamentos dedicados exclusivamente a eles, como por exemplo, banho, tosa, massagem, tratamento estético, petiscos, alimentação etc, que deverá ser pago pelo requerido à clínica ou profissional que fornecer os serviços, à escolha do dono".

Não obstante, ainda que a sentença tenha sido correta e adequada no reconhecimento da capacidade de ser parte dos animais e do seu direito à reparação civil por danos morais, ela foi, no mínimo, curiosa, em relação à negativa de indenização por danos estéticos, argumentando que "(…) a fixação do dano estético em favor dos animais não é possível, considerando que são simples animais domésticos, não voltados a desfiles, exposições, fotografias para comerciais ou publicações e não dotados de especial beleza estética como se vê das fotografias apresentadas".

Nesse ponto, a sentença acabou criando uma espécie de discriminação negativa, ao fundamentar que apenas aqueles que obtêm lucro com a sua imagem é que merecem a tutela jurisdicional quanto aos danos estéticos sofridos, ou seja, Tom e Pretinha precisariam ser tal como, "celebridades caninas" para ter o direito à proteção das suas características estéticas (avaliadas subjetivamente pelo julgador).

Os autores recorreram da decisão, pleiteando a reforma parcial da sentença, mediante a majoração das indenizações por danos materiais e morais, além da concessão da indenização pelos danos estéticos.

Ainda que possa ser criticável a parte da sentença que negou a indenização por danos estéticos aos animais vitimados pela conduta do réu, é certo que a decisão marcou a história do Direito Animal, como a primeira sentença de mérito de procedência da fase de judicialização terciária, a admitir a reparabilidade civil dos danos morais sofridos por animais.

No célebre caso Spike & Rambo, que originou o primeiro julgado de Tribunal de Justiça admitido a capacidade processual dos animais, a sentença de primeiro grau foi de improcedência quanto à reparabilidade civil por danos morais aos animais, já tendo transitado em julgado [8].

A sentença do caso Tom & Pretinha já estipulou os caminhos que deverão ser adotados na fase de cumprimento de sentença, determinando que o proveito econômico seja revertido em prol do bem-estar dos animais, mediante procedimento por ela mesma definido.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina terá a oportunidade de ladear a vanguarda aberta pelo Tribunal do Paraná, reafirmando a capacidade processual dos animais e, indo além, decidindo sobre a extensão dos danos sofridos por Tom e Pretinha, inclusive no que tange à reparabilidade dos danos estéticos sofridos pelos animais.

Tom e Pretinha são protagonistas da atual fase de judicialização do Direito Animal, prenunciando mudanças no senso comum teórico dos juristas brasileiros e a efetivação de uma real justiça interespécies.

Mais uma vez vale lembrar aqui a célebre frase do grande escrito russo, Fiódor Dostoiévski: "Quantas ideias já houve na Terra, na história humana, que ainda uma década antes eram inconcebíveis, mas de repente chegou sua hora misteriosa e elas se manifestaram e se espalharam por toda a Terra?" [9]

 


[1] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p. 345-348.

[2] Para uma análise da jurisprudência no âmbito estadual, consultar, RODRIGUES, Nina Tricia Disconzi; FLAIN, Valdirene Silveira; GEISSLER, Ana Cristina Jardim. O animal de estimação sob a perspectiva da tutela jurisdicional: análise das decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 11, n. 22, p. 83-119, mai./ago. 2016.

[3] Esse assunto tem trazido muita preocupação, especialmente considerando os casos de animais que morreram ou se perderam quando transportados nos bagageiros dos aviões, como se notabilizou, na mídia, o desaparecimento da cadela Pandora (ver, https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/10/nao-me-ajudaram-em-nada-diz-tutor-da-cachorra-pandora-desaparecida-em-guarulhos-sobre-companhia-aerea.ghtml. Acesso em: 16 jan. 2022).

[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil, cit., p. 348.

[5] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil, cit., p. 348-351.

[6] TJ-PR, 7ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 0059204-56.2020.8.16.0000, Relator Juiz MARCEL GUIMARÃES ROTOLI DE MACEDO, unânime, julgado em 14/9/2021, disponibilizado em 23/9/2021.

[7] Na terminologia adotada por GONÇALVES, Monique Mosca. Dano animal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[9] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. 3. ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2021, v. 1, p. 430.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor da Faculdade de Direito da UFPR, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • é advogado, especialista em Direito Processual Civil Centro Universitário do Vale do Iguaçu (UGV) e especialista em Neurociência Aplicada ao Direito e Comportamento Humano pela Escola de Magistratura Federal (Esmafe) e graduado em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Iguaçu (UGV).

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