Opinião

Previdência Social como mecanismo de consolidação dos direitos sociais

Autor

  • Elizabeth Duarte de França

    é pós-graduada em Direito Público: Constitucional Administrativo e Tributário pela PUC-RS graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá e em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro servidora pública federal do INSS há 14 anos ex-coordenadora da área de Reabilitação Profissional ex-gerente executiva substituta atualmente na chefia da área de demandas judiciais do INSS em Duque de Caxias advogada e fundadora do Eliza Duarte Advocacia e Consultoria Jurídica.

26 de janeiro de 2024, 17h16

Na esteira da garantia dos direitos fundamentais, o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade pela promoção do bem-estar coletivo. Logo, constitui a sua pedra de torque a adoção de uma agenda pública voltada ao desenvolvimento de políticas que promovam o bem-estar social, a redução das desigualdades e comprometida com o aprofundamento de mecanismos de valorização do ser humano, consagrada no preâmbulo da CRFB/1988.

Num contexto de fortalecimento da dignidade da pessoa humana, por meio da construção de uma sociedade justa e solidária, comprometida com a erradicação da pobreza e com a redução das desigualdades sociais e regionais, o Estado brasileiro avoca para si a responsabilidade do processo de consolidação e fortalecimento das políticas sociais centradas na garantia dos direitos fundamentais.

Assim é que a Seguridade Social enquanto política de Estado, chancelada pela Constituição de 1988, ganhou lugar de proeminência enquanto política pública de garantia de direitos fundamentais, eis que assentada nos seguintes pilares:

  1. Direito de proteção à vida, por meio da consolidação da saúde pública e universal;
  2. Garantia de um mínimo existencial a todos os brasileiros, a partir da consolidação de uma política assistencial voltada à população em situação de vulnerabilidade ou risco social;
  3. Consolidação de uma política de previdência social, contributiva, participativa e solidária, capaz de prover benefícios que resguardem a subsistência digna a todos os seus segurados e dependentes, nos momentos de doença ou outro contingente que o deixe incapaz para o trabalho, assim como uma provisão na velhice ou em caso de morte etc.

Ineficiência do INSS
Embora a CRFB/1988 consagre a política de previdência social como um dos mecanismos essenciais à efetivação de direitos sociais, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tem sido ineficiente para atender o volume de requerimentos previdenciários e assistenciais, deixando milhares de brasileiros sem uma renda mínima para o seu sustento.

Desde o ano de 2013, os órgãos de controle externo [1] vêm exortando o poder público sobre a falta de infraestrutura, precarização na qualidade dos atendimentos e escassez da força de trabalho qualificada, caracterizando em mora generalizada e risco de descontinuidade na prestação deste serviço público fundamental, a exemplo do IC n° 1.16.000.000126/2017-15.

Assim, a controvérsia jurídica exposta se concentra na relação entre a garantia do mínimo existencial enquanto perspectiva de concretização da dignidade humana, vértice do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, e a reserva do possível, instituto alemão adotado pelo direito público brasileiro com novas feições, a fim de revestir de legitimidade jurídica a omissão contumaz na implementação de uma agenda estatal efetiva na concretização de direitos sociais fundamentais e, no que tange os direitos previdenciários, impõe-se alguns questionamentos:

  1. Até que medida é juridicamente legítimo à administração pública se valer do instituto da reserva do possível para se eximir de seus deveres precípuos de garantia do mínimo existencial?
  2. Quais interesses o Estado brasileiro tem atendido? quais interesses têm sido desprezados e por quê?
  3. Por que a notória desobediência constitucional relativa ao pacto social firmado em 1988 é tolerada por diversos setores da sociedade?
  4. Qual cultura político-administrativa tem sido cultivada pelo Estado brasileiro?
  5. Trata-se de uma política de governo ou de uma política de Estado cujo valor do serviço público não é relevante quando se trata de garantias de direitos fundamentais dirigidos às camadas mais carentes da sociedade.

Desenvolvimento
A finalidade da Previdência Social enquanto política pública é assegurar aos sujeitos e suas famílias um recurso financeiro mínimo, capaz de prover as suas subsistências em momentos de vulnerabilidade social. Portanto, inegável a sua vinculação ao princípio fundamental da dignidade humana, justamente por se tratar de um direito que visa a garantir aos cidadãos um padrão mínimo de vida adequado.

Trata-se de política pública protetiva, legitimada pelos objetivos de uma República democrática fundada nos valores da solidariedade e da fraternidade, conforme se extrai da interpretação sistemática do artigo 1°, Inciso II e Inciso III C/C artigo 194, ambos da CRFB/1988.

Com base na função finalística da estrutura jurídico-normativa vigente, é indubitável que a política de previdência social tem papel crucial no processo de consolidação de determinados direitos fundamentais, compreendidos como prerrogativas que assegurem o pleno desenvolvimento humano. Porém, o Estado brasileiro, apesar de assumir o compromisso de efetivar tais objetivos fundamentais, tem adotado uma agenda político-administrativa imediatista que cria embargos ao planejamento e à implementação de políticas públicas de longo prazo.

Omissão do poder público
Escorando-se no instituto da reserva do possível, o poder público tem sido omisso no que tange à realização de um planejamento financeiro-orçamentário eficiente quanto à garantia de serviços públicos essenciais que promovam desenvolvimento social e humano, o que evidencia a negligência do Estado em relação ao seu fundamento republicano e aos princípios da razoabilidade e da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

Em relação ao INSS, há décadas esta autarquia sofre com a falta de recursos que lhe permita prestar um serviço público eficiente e de qualidade. Este gigante, responsável pela garantia de renda mínima a milhares de famílias brasileiras, corre o risco de paralisar suas atividades, a exemplo do déficit de servidores que dificulta a prestação de serviços à população.

Com o processo de transformação digital tardia e sem o adequado investimento em insumos tecnológicos para aparelhar as unidades e dar condições mínimas aos servidores para desempenharem suas funções, a autarquia convive com a ocorrências de incidentes cibernéticos que abrem caminho para fraudes previdenciárias e colocam em risco a segurança dos dados pessoais dos segurados.

Precarização do INSS
Conclui-se que o INSS tem sido alvo de um modelo de gestão pública que o torna incapaz de imprimir eficiência no cumprimento de sua missão pública institucional. Assim, a pergunta que se coloca é: a precarização do INSS é deliberada ou fruto da incapacidade administrativa do Estado?

Além disso, a autarquia também ficou vários anos sem reposição da força de trabalho e, relatório produzido pelo TCU no Acórdão n° 1795/2014, apontou, entre outros, os seguintes achados:

  1. Profunda disparidade entre o quantitativo de servidores e o nível de produção, com base na análise da relação entre demanda, produtividade e lotação;
  2. Indicadores e metas concentrados na avaliação da eficácia em detrimento da eficiência da utilização dos recursos humanos disponíveis;
  3. Identificação de 26% do efetivo da autarquia apto a se aposentar imediatamente, com previsão de aumento percentual para 46% até 2017;
  4. Carência da força de trabalho responsável pela análise dos requerimentos, tendo em vista que 18% do total de 32.391 servidores foi responsável pela concessão de 80% do total de 1.480.694 benefícios entre junho/2012 e maio/2013.

A auditoria do TCU revelou, em 2013, que a realidade já representava um grande risco ao cumprimento dos “objetivos do INSS, tanto pelo aspecto das limitações ao controle como pelo impacto que eventual afastamento desses servidores possa provocar nas unidades” [2].

Esta crise institucional ameaça a garantia de direitos sociais duramente conquistados, os quais, de per si, são expressão e consolidação do Estado Democrático de Direitos. E, para garantir a continuidade do serviço, o MPF instaurou diversos inquéritos civis, com destaque para os IC n° 1.30.001.005434/2016-77 e 1.16.000.000126/2017-15 que deram azo ao ajuizamento de diversas ações civis públicas, em especial a ACP n° 5029390-91.2019.4.02.5101 [3].

Poder público justifica sua omissão
Apesar da realidade de extrema vulnerabilidade da camada da população mais empobrecida, o poder público faz uso indiscriminado do instituto da reserva do possível para justificar sua omissão em setores essenciais ao cumprimento da função social do Estado, mesmo que a manipulação de sua atividade financeira e político-administrativa configure ilícito administrativo, já que inviabiliza o estabelecimento de condições materiais mínimas de existência a todos os cidadãos e contraria os preceitos democráticos constitucionais eivados de “essencial fundamentalidade” (ministro Celso de Mello) [4].

Diante deste quadro, a judicialização de acesso aos serviços e benefícios oferecidos pelo INSS tornou-se regra. Além das tutelas coletivas supracitadas, dados extraídos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que a busca pela tutela individual tem aumentado sobremaneira, caracterizando o instituto como o maior réu do país com mais de 2.555.000 processos judiciais, segundo levantamento do ano de 2022 [5], o que valida a tese de que o aumento da judicialização dos direitos previdenciários não é um fato isolado, mas passou a integrar a rotina da autarquia.

Trata-se, pois, de uma inércia proposital do Poder Público quanto à necessária prestação de uma previdência social que atenda adequadamente os segurados do regime geral, face ser um direito social de envergadura fundamental-humana, consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seus artigo 21.2; artigo 22 e artigo 25, e firmados pela CRFB/1988, artigo 1°, Inciso III C/C artigo 6°; artigo 3°, Inciso I e III C/C artigo 194 e artigo 201?

Considerações finais
É possível afirmar que a realização de investimentos consistentes nas áreas de infraestrutura, tecnologia, segurança cibernética e realização de concurso público com frequência são alternativas mais eficientes do uso do dinheiro público, tendo em vista em vista o custo que a autarquia vem assumindo com:

  1. Vultosas indenizações decorrentes do alto número ações previdenciárias suportadas;
  2. Recursos públicos gastos em ações paliativas e superficiais, que não resultam em entregas substanciais em favor da sociedade;
  3. Implementação de ações emergenciais de caráter superficial, limitadas a apresentar resultados apenas no plano imediato, impondo-se o seguinte questionamento: tais ações são suficientes para resolver o problema de fundo da crise do INSS?
  4. Prejuízos decorrentes dos elevados índices de fraudes previdenciárias.

Os órgãos de controle externo vêm cobrando do poder público a adoção de medidas urgentes para superar a crise do INSS. Mesmo após dez anos das recomendações apresentadas pelo TCU (Termo Circunstanciado n° 016.601/2013-0), é evidente um cenário de mudanças pouco efetivas, culminando com o Tema n° 1.066 (RE n° 1.171.152/SC), do qual decorreu a homologação de um acordo judicial que, entre outras medidas, determinou a realização de concurso público para recompor o seu efetivo. Contudo, o edital publicado em 2022 previu apenas 1.000 vagas para preenchimento imediato em que pese, em 2021, o déficit ser de 23.000 servidores.

A crise do INSS é um problema grave que afeta milhões de brasileiros. A inércia do poder público tem sido um dos principais fatores que contribuem para essa crise. Investimentos profundos e consistentes nas áreas de infraestrutura, tecnologia da informação, segurança cibernética e na realização de concurso público de forma sistemática são fundamentais para superá-la e garantir a prestação de serviços de qualidade aos segurados. No entanto, é preciso também que haja uma mudança substancial na forma como o poder público vem atuando, com a criação de mecanismos eficientes e efetivos de participação ampliada da sociedade.


Referências

 BRASIL. Acórdão TCU n° 1795/2014, Relator Ministro Aroldo Cedraz, de 09 de julho de 2014. Secretaria de Controle Externo da Previdência, do Trabalho e da Assistência Social. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-na-lotacao-de-pessoal-do-inss.htm. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

BRASIL. STF. RE n° 1171152 RG/SC – Santa Catarina. Repercussão Geral – admissibilidade (Tema n° 1066). Ministro relator Alexandre de Moraes. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Julgamento em 03/10/2019. Publicação: 10/10/2019.

CASAL JUNIOR, M. Fila da Previdência tem 1,8 milhão de segurados à espera de atendimento. Diário do Comércio, 24 fev. 2023. Disponível em: <https://diariodocomercio.com.br/economia/fila-da-previdencia-tem-18-milhao-de-segurados-a-espera-de-atendimento/#gref>. Acesso em: [2023].

COSTA MOURA, E. A. A função democrática das políticas públicas e o papel de reforço da cidadania do controle do poder judiciário: um critério de jusfundamentalidade para implementação judicial dos direitos sociais. História debates e tendências, Passo Fundo, v. 22, n. 2, p.20-39, 2022. Disponível em: <https://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/13516>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

LIMA DE OLIVEIRA, R. S.; GARCEZ CALIL, M. L. Reserva do possível, natureza jurídica e mínimo existencial: paradigmas para uma definição. [20-?], p. 3721-3744 [Brasília?], Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_369.pdf>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

SARLET, I. W.; TIMM, L.  B. (org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2008. p. 11-53. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5498700/mod_folder/content/0/9.P.5%20SARLET%3B%20FIGUEIREDO.%20Reserva%20do%20Possivel.pdf?forcedownload=1>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

SOUZA, I. F; VIEIRA, R. S. (org.). Direitos Fundamentais e Estado. Políticas Públicas e Práticas Democráticas. Tomo I. Criciúma: UNESC, 2011.E-book. 492 p. ISBN 978-85-88390-69-0. Disponível em: <http://www.bib.unesc.net/pergamum/biblioteca/index.php>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

[1] Acórdão TCU n° 1795/2014, Relator Ministro Aroldo Cedraz, de 09 de julho de 2014. Secretaria de Controle Externo da Previdência, do Trabalho e da Assistência Social. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-na-lotacao-de-pessoal-do-inss.htm>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

[2] Acórdão TCU n° 1795/2014, Relator Ministro Aroldo Cedraz, de 09 de julho de 2014. Secretaria de Controle Externo da Previdência, do Trabalho e da Assistência Social. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-na-lotacao-de-pessoal-do-inss.htm>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

[3] ACP n° 50143278920204025101; 5025934-65.2021.4.02.5101; 5082693-15.2022.4.02.5101; 5093270-52.2022.4.02.5101; 1021150-73.2019.4.01.3400

[4] RE n° 1171152, julgado em 03/10/2019. Tema n° 1066. Ministro Relator Alexandre de Moraes. Fonte: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/repercussao-geral10782/false>. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

[5] Fontes de pesquisa: <https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/>; https://www.cnj.jus.br/sistemas/datajud/. Acesso em: [entre 2022 e 2023].

Autores

  • é pós-graduada em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pela PUC-RS, graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá e em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, servidora pública federal do INSS há 14 anos, ex-coordenadora da área de Reabilitação Profissional, ex-gerente executiva substituta, atualmente na chefia da área de demandas judiciais do INSS em Duque de Caxias, advogada e fundadora do Eliza Duarte Advocacia e Consultoria Jurídica.

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