Opinião

A desistência recursal no âmbito do STF: ponderações e um convite à rediscussão

Autores

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

  • Marcelo Mazzola

    é advogado doutor e mestre em Direito Processual pela Uerj. Coordenador de Processo Civil da ESA/RJ e da ABPI.

23 de janeiro de 2024, 9h12

Em nosso processo civil, é comum a afirmação de que os recursos são marcados pela voluntariedade e pela consequente liberdade de disposição [1]. Em linhas gerais, predominaria a seguinte lógica: (1) como o recurso decorre de ato de vontade exclusivo da parte recorrente; (2) seria conferida a ela a prerrogativa de, unilateralmente, desistir da sua apreciação.

Dentro dessa compreensão, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15), mantendo opção já trazida no regime de 1973, conferiu natureza elástica aos eventuais limites temporais inerentes a essa desistência. Assim, ratificou que “o recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso” (artigo 988, caput). Por outro lado, compreendendo a atual feição dos tribunais superiores [2], acrescentou um tempero especial a esse caldo, indicando que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos” (artigo 988, parágrafo único). O mesmo raciocínio se aplica ao IRDR, já que a “desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente” (artigo 976, § 1º).

As balizas, em princípio, confeririam tratamento claro e suficiente à matéria. Contudo, segue vigorando entendimento parcialmente contrário no âmbito das Cortes Supremas. Isso, especialmente, em uma situação fática específica: quando o pedido de desistência é feito após o início do julgamento do recurso.

De um modo geral, é correto afirmar que tanto STJ quanto STF admitem, como regra, a desistência do recurso antes de iniciada a votação (vide, por exemplo, AgInt nos EDcl no REsp 1.750.451-MT). A propósito, também o Regimento Interno do STJ (artigos, 21-E e 34, IX) e o Regimento Interno do STF (artigos 8º, § 3º, 21, VIII) autorizam o relator/Plenário a homologar a desistência de recursos [3].

A questão, contudo, torna-se mais nebulosa quando o pedido de desistência é feito após o início do julgamento, com algum voto já computado.

Particularmente no âmbito do STF, quando a votação está em curso, vigora entendimento bastante restritivo quanto à possibilidade de desistência [4]. Em síntese, o posicionamento do órgão é regularmente posto nos seguintes termos:

Na esteira da Jurisprudência desta Suprema Corte, é incabível o pedido de desistência formulado após o início do julgamento do feito por esta Corte. Nesse sentido: ‘QUESTÃO DE ORDEM. RECLAMAÇÃO. PEDIDO DE DESISTÊNCIA. PROCESSO DE JULGAMENTO COLEGIADO INICIADO. COMPETÊNCIA DO PLENÁRIO. HOMOLOGAÇÃO INDEFERIDA. I – Não é admissível o pedido de desistência de feitos cujo julgamento já tenha sido iniciado. II – Preservação da unicidade do julgamento. III – Homologação indeferida” (RCL nº 1.503/DF-QO, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 5/6/2009). Relator(a): min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 23/09/2019 Publicação: 02/10/2019

Com isso, após a proclamação do voto do relator (e mesmo que haja pedido de vista), o interessado não pode exercer a potestade de desistir de sua pretensão recursal.

Que motivos, porém, orientam esse raciocínio? Quais as justificativas para tal mitigação da disponibilidade recursal, atenuando, também, o espaço para autorregramento da vontade?

A resposta a essas indagações recomenda o exame dos pronunciamentos da corte que acabaram alicerçando essa leitura. Desses julgados – proferidos há algumas décadas sob a égide do CPC/73 – extraímos duas razões centrais para a mencionada restrição: (1) primeiramente, sustenta-se que a desistência superveniente à manifestação de voto do relator poderia consolidar uma pura estratégia processual, permitindo que a parte agisse após antever um potencial resultado prejudicial ao seu interesse; e (2) complementarmente, argumenta-se que a ideia de unicidade do julgamento impediria a desistência após a manifestação de voto, equiparando-se o ato a uma espécie de interrupção do magistrado no próprio momento em que profere a sentença.

Analisando o tema em perspectiva, consideramos que existem importantes argumentos e parâmetros capazes de justificar sua rediscussão pelo STF, providos de bases mais contemporâneas e consentâneas com as transformações do processo civil.

Em razão das atuais limitações editorais, apresentamos cada um deles de modo breve e didático, sem prejuízo de seu aprofundamento em outra oportunidade:

(1) “de início, quanto ao fato de a conduta representar eventual estratégia processual, consideramos, respeitosamente, inexistir aí qualquer problema ou novidade. Na realidade, o que causaria surpresa seria o oposto: uma conduta adotada no processo que não fosse permeada de estratégia. Esse elemento é imanente à estrutura do litígio, o que não deve ser confundido com inobservância da lhaneza e da boa-fé (que se presume) [5]. Nesse ponto, é ainda pertinente notar como o processo civil brasileiro, em situações análogas àquela aqui posta, não se mostra avesso ou intolerante à conduta tática do litigante. Por exemplo, não se questiona o fato de o apelante, após se deparar com recurso adesivo capaz de lhe gerar sensível gravame, poder desistir do recurso principal para inibir a apreciação do adesivo.”

(2) “um segundo elemento inserido nesse palco diz respeito ao próprio leque de interesses que permeia o recurso. Em poucas palavras, acreditamos que o entendimento ainda vigente no STF traz consigo a compreensão de que a sua decisão pode ter efeitos catalisadores para outros processos. Porém, vale lembrar que o CPC/15 incorporou medidas suficientes para equalizar o problema. Como se sabe, em hipóteses de julgamento provido de imediata transcendência, positivou-se a regra no sentido de que a desistência do recurso não impedirá o pronunciamento ligado ao mérito litigioso. Isso, seja em sede de julgamento de recursos repetitivos, seja no contexto da técnica de julgamento por repercussão geral. Partindo desse ângulo, é possível conciliar o interesse particular do recorrente-desistente e o eventual interesse público ou coletivo no pronunciamento judicial. Para hipóteses que não se amoldam a essas situações, impedir a desistência poderia consolidar uma limitação injustificada ao autorregramento da vontade” [6].

(3) “ainda, um terceiro aspecto a ser sublinhado diz respeito ao fato de que, atualmente, a noção de unicidade do julgamento merece uma releitura temperada pela realidade. Isso torna a analogia entre a desistência após um eventual pedido de vista e a interrupção de um julgador no instante em que profere a decisão, em alguma medida, esvaziada. Explica-se: é comum que sessões de julgamento no âmbito do STF se arrastem por período bastante substancial de tempo. Nesse ínterim, inúmeros eventos fáticos podem conduzir a um interesse efetivo na desistência. Não parece correto, por isso, supor que o pedido de desistência possa ser equiparado a interromper o julgador tão-somente para evitar que ele exponha sua (previsível) conclusão. Pelo contrário: admitir a desistência seria chancelar que a alteração da realidade pertinente ao processo possa também nele reverberar.”

(4) “por último [7], um quarto fator a ser indicado é que, caso entenda-se que os recursos excepcionais direcionados ao STF não dispõem de efeito translativo [8], sequer haveria aí um eventual prejudicado pela desistência. A partir desse ângulo, a vedação da reformatio in pejus faria com que o recorrente-desistente não pudesse ter sua situação fática agravada pelo julgamento do recurso. Como consequência, desistir de sua apreciação seria uma conduta que nem mesmo em hipótese o beneficiaria em relação ao mérito litigioso” [9].

Finalizando, consideramos valiosa uma reflexão derradeira: em um contexto de tragédia de nossos tribunais superiores, caracterizado pelo esgotamento de sua estrutura [10], é funcionalmente adequado impedir que menos um processo seja posto à sua apreciação? Essa vedação não conflita com a tentativa de otimização dos trabalhos da Corte Suprema – cuja necessidade é hoje defendida –, e com vetores como a duração razoável do processo e a eficiência [11]?

Em nossa visão, os argumentos apresentados são um convite à reflexão, podendo, em alguma medida, contribuir para uma releitura do tema no âmbito do STF. Afinal, o que está em jogo é a própria racionalização da prestação jurisdicional e a garantia dos direitos fundamentais.

 


[1] Ver, sobre o tema, OSNA, Gustavo. Recursos no processo civil: teoria e prática. São Paulo: Ed. RT, 2023. p.16 e ss.

[2] Sobre o tema, ver, ALMEIDA, Luciana Robles de. Entre Corte Superior e Corte Suprema: notas sobre o papel do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça à luz do Código de Processo Civil de 2015. In. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal. v.9. São Paulo: Ed. RT, 2019.  Ainda, amplamente, MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente. 2 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014.

[3] Isso, por mais que referida prerrogativa não seja preservada em medidas como a representação e as ações de controle concentrado, tendo em vista seu objeto e sua função.

[4] Perceba-se, porém, que há hipóteses procedimentais (como o Mandado de Segurança) em que a desistência é autorizada.

[5] No ponto, cabe lembrar que, conforme já afirmado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, “a presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova” (Tema Repetitivo 243).

[6] Lembra-se que, conforme Fredie Didier Jr., “o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo visa, enfim, à obtenção de um ambiente processual em que o direito fundamental de autorregular-se possa ser exercido pelas partes sem restrições irrazoáveis ou injustificadas.  De modo mais simples, esse princípio visa tornar o processo jurisdicional um espaço propício para o exercício da liberdade. O direito de a parte, ora sozinha, ora com a outra, ora com a outra e com o órgão jurisdicional, disciplinar juridicamente as suas condutas processuais é garantido por um conjunto de normas, subprincípios ou regras, espalhadas ao longo de todo o Código de Processo Civil. A vontade das partes é relevante e merece respeito”. DIDIER JR., Fredie. Princípio do Respeito ao Autorregramento da Vontade no Processo Civil. In. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. v.57. Rio de Janeiro: MPRJ, 2015. p. 170.

[7] A ponderação trazida neste ponto foi apresentada aos autores por Felipe Barreto Marçal e Alexandre Câmara, após a leitura de versão preliminar do presente ensaio.

[8] A leitura é hoje predominante em jurisprudência, como posto em OSNA, Gustavo. Recursos no processo civil: teoria e prática. São Paulo: Ed. RT, 2023. p. 279-280.

[9] Situação peculiar, cuja investigação excede os limites da atual análise, é a hipótese em que o pedido de desistência é formulado após a apresentação de voto que comina multa à parte recorrente. O tema possui carga valorativa própria, demandando, por isso, exame igualmente específico.

[10] Ver, OSNA, Gustavo. Recursos no processo civil: teoria e prática. São Paulo: Ed. RT, 2023. p.253 e ss. Ainda, nas palavras de Erik Navarro Wolkart, “quando o cenário de tragédia se instaura nas instâncias superiores, a capacidade desses tribunais de julgar com maior precisão diminui drasticamente (…) compare-se, por exemplo, a capacidade de precisão de um juiz de primeiro grau que lida com 5.000 processos a de um ministro do STJ que solucionou, em média, 10.350 processos no ano de 2015”. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. p. 631.

[11] De algum modo, aliás, pode-se dizer que o legislador, preocupado com o estoque de processos judiciais, inclusive estimula a desistência. Por exemplo, quando se trata de demanda envolvendo tema repetitivo, o código autoriza a desistência da ação independentemente da concordância do réu (ainda que apresentada contestação). E se essa desistência for apresentada antes da contestação, o réu fica isento de custas e honorários (art. 1.040, CPC). Sobre o ponto ver, MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil: previsão legal, estipulação convencional e proposta de sistematização para sua fixação judicial. São Paulo: JusPodivm, 2022. No mesmo sentido, merecem menção o Enunciado 352 do FPPC (“É permitida a desistência do recurso de revista repetitivo, mesmo quando eleito como representativo da controvérsia, sem necessidade de anuência da parte adversa ou dos litisconsortes; a desistência, contudo, não impede a análise da questão jurídica objeto de julgamento do recurso repetitivo. (arts. 998, caput e parágrafo único, e 15)”) e o Enunciado 65 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF (“A desistência do recurso pela parte não impede a análise da questão objeto do incidente de assunção de competência”).

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR, doutor e mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado e parecerista.

  • é pós-doutor, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Uerj, professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e advogado.

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