Direito Civil Atual

A natureza jurídica da cláusula take or pay

Autores

  • João Pedro Kostin Felipe de Natividade

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e mestre em Direito das Relações Sociais pela Faculdade de Direito da UFPR.

  • Luis Felipe Rasmuss de Almeida

    é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); graduado em Direito pela Universidade de São Paulo; membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e editor adjunto da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

22 de janeiro de 2024, 13h47

A cláusula take or pay, em linhas gerais, corresponde a uma disposição contratual na qual o comprador assume a obrigação de pagar o preço equivalente a uma quantidade mínima e pré-fixada de determinado bem ou serviço, em face de sua mera disponibilização, pelo vendedor (fornecedor), ainda que o consumo não ocorra, seja de modo integral ou parcial. Por ocasião do julgamento do REsp nº 1.984.655/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou uma das temáticas mais controvertidas na doutrina a respeito de referida cláusula: sua natureza jurídica [1].

Origem
A cláusula take or pay remonta à década de 1960 nos Estados Unidos, época em que os produtores de gás enfrentavam, de um lado, verdadeira inconstância na demanda por tal insumo, e de outro, as limitações impostas por contratos de compra e venda mercantil (ditos contratos de distribuição) com cláusulas de exclusividade.

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Nesse cenário, quando a demanda era alta, especialmente no inverno, toda a produção era comprada e consumida. Em períodos de baixa demanda, como o verão e a primavera, a exclusividade presente nos contratos, no entanto, impedia os produtores de venderem o gás no mercado, o que dificultava a recuperação de seus custos e a operação da infraestrutura.

A cláusula take or pay, no âmbito de tais contratos, tem por escopo o de estabelecer um melhor equilíbrio de riscos entre as partes, já que confere ao produtor do insumo o direito ao percebimento de um valor mínimo, independentemente da quantidade efetivamente consumida, ao passo que garante aos compradores a oferta constante do insumo.

No Brasil, o mercado de gás natural começou a ser estruturado na década de 1990, na esteira dos investimentos realizados pela Petrobras. Marco desse processo é o Gasoduto Brasil-Bolívia, denominado “Gasbol”, projeto de infraestrutura de grande porte, que teve como suporte jurídico a celebração de contratos de distribuição entre a empresa boliviana YFFB e a Petrobras, pelo qual a primeira assumiu a obrigação de vender, e a Petrobras, de comprar, volumes pré-definidos de gás natural – típico regime de take or pay.

A Lei 10.132/2001, que versa sobre a “incidência das Contribuições para o PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social nas operações de venda de gás natural e de carvão mineral”, veio inclusive a fornecer conceito específico para esse regime, conforme se verifica de seu artigo 1º, §4º: “Entende-se por cláusula take or pay a disposição contratual segundo a qual a pessoa jurídica vendedora compromete-se a fornecer, e o comprador compromete-se a adquirir, uma quantidade determinada de gás natural canalizado, sendo este obrigado a pagar pela quantidade de gás que se compromete a adquirir, mesmo que não a utilize”.

Atualmente, o regime take or pay é amplamente difundido no mercado de distribuição de gases, sendo considerado uma prática usual na indústria. A doutrina afirma, até mesmo, “[…] a existência de significado socialmente típico para a cláusula de take or pay, a partir da redação comumente determinada para cláusulas com essa nomenclatura e da sua função socialmente atribuída” [2].

Dinâmica
O funcionamento da cláusula take or pay é elementar. Trata-se de uma cláusula cuja eficácia é sujeita à ocorrência de evento futuro e incerto, a saber, o consumo inferior ao mínimo previsto em contrato. Assim, se o volume consumido pelo comprador for idêntico ou inferior à quantidade mínima estabelecida no contrato para o período de apuração, a cláusula não surtirá efeitos, e o preço pago pelo adquirente corresponderá ao consumo efetivo. Caso, entretanto, não se verifique o consumo, ou a quota mínima deste não seja atingida, o comprador deverá efetuar o pagamento do valor previsto na cláusula take or pay.

Há ainda uma certa maleabilidade no regime de take or pay. Podem as partes convencionar, por exemplo, que na hipótese de o consumo mínimo não ser atingido durante o período de apuração, o comprador adquirirá o direito de, futuramente, dispor dos volumes pagos e não utilizados (os chamados “make-up rights”). Igualmente, compete às partes, dentro de sua esfera de autonomia, definir quais os períodos de apuração aplicáveis e pactuar o modelo de cobrança aplicável para o regime de take or pay.

Natureza jurídica
A principal discussão presente em doutrina sobre a cláusula take or pay diz respeito à sua natureza jurídica. Parte minoritária da literatura enxerga na cláusula take or pay espécie de cláusula penal, correspondendo a uma penalização pela inocorrência do consumo nos quantitativos mínimos previstos no contrato [3].

A consequência desse raciocínio é a sujeição do take or pay ao regime jurídico estabelecido nos artigos 408-416 do Código Civil para as cláusulas penais. Por sua vez, tal raciocínio igualmente reconduziria à aplicação do artigo 413, possibilitando, em tese, que o julgador procedesse a uma redução equitativa dos valores devidos em razão da cláusula take or pay, e consequentemente, modificando a alocação originária de riscos realizada pelas partes.

Parcela majoritária da doutrina, todavia, considera que a cláusula estabelece uma obrigação contratual propriamente dita, consistente no pagamento de uma contraprestação pela disponibilização da capacidade de fornecimento de bens ou serviços quando o comprador não utiliza os quantitativos mínimos previstos em contrato [4].

A decisão do STJ
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.984.655/SP [5], filou-se a este segundo entendimento, de que a cláusula take or pay, acertadamente, não é cláusula penal.

O voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, demonstrou que a cláusula penal é o pacto acessório, de natureza pessoal, pelo qual as partes convencionam antecipadamente um montante a ser pago na hipótese de inadimplemento absoluto (cláusula penal compensatória) ou mora (cláusula penal moratória).

A cláusula take or pay, diferentemente, seria componente da própria obrigação contratual, apenas dispondo sobre o preço devido pelo comprador na hipótese de não haver consumo, sem caráter ressarcitório ou punitivo.

O voto também consignou que o inadimplemento contratual (absoluto ou relativo) é pressuposto para a eficácia da cláusula penal, ao passo que a sazonalidade do consumo é algo inerente à execução do contrato, mas que nada tem a ver com o seu descumprimento, razão pela qual não acarreta a aplicação de qualquer sanção à parte.

A 3ª Turma aproveitou a oportunidade do julgamento do REsp 2.048.957/MG e reafirmou sua recente jurisprudência, esclarecendo ainda que a cobrança do volume mínimo pactuado na cláusula take or pay não confere ao devedor o direito ao recebimento do produto correspondente como uma contrapartida, o que não afasta, de modo algum, a convenção de flexibilizações pelas partes [6].

Ambas as decisões são importantes para conferir às partes segurança jurídica nos contratos de distribuição contendo cláusulas de take or pay, em particular no mercado de comercialização de gás, no qual o take or pay tem sido amplamente utilizado.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] A decisão foi objeto de comentário de jurisprudência no último volume da Revista de Direito Civil Contemporâneo: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de Natividade; RASMUSS DE ALMEIDA, Luís Felipe. RESP 1.984.655/SP: A natureza jurídica da cláusula take or pay. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 37, n. 10. p. 459-469, out./dez. 2023.

[2]VIEIRA, Vitor Silveira. A cláusula take or pay no direito privado brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 101, p. 101-150, out.-dez. 2020. [versão digital]

[3] MARQUEZ, Rafael Batista. Cláusula take or pay em contratos de longo prazo. Dissertação (Mestrado) – Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2018.

[4] Nesse sentido: BALERONI, Rafael Baptista. Aspectos econômicos e jurídicos das cláusulas de ship-or-pay e take-or-pay nos contratos de transporte e fornecimento de gás natural. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 27, p. 247-264, jul.-set. 2006; FONTOURA COSTA, José Augusto; LEOPOLDINO, Lucy Helaine. Noções e características das cláusulas take or pay na jurisprudência brasileira. Revista de Direito Empresarial, ano 16, n. 1, p. 195-217, jan.-abr. 2019; MEDEIROS, Pedro Lins Conceição de. A (não) incidência do regime jurídico das cláusulas penais compensatórias às obrigações de take-or-pay: uma análise à luz dos direitos inglês e nacional. Revista de Direito Privado, v. 98, p. 189-225, mar.-abr., 2019; MELO, Leonardo de Campos. Cláusula de take or pay: natureza jurídica. Disponível em: [https://www.academia.edu/43024513/Cl%C3%A1usula_Take_or_Pay_Natureza_Jur%C3%ADdica]; SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020; VIEIRA, Vitor Silveira. A cláusula take or pay no direito privado brasileiro. Revista de Direito Privado, v. 101, p. 101-150, out.-dez. 2020; ANDRADE, Fábio Siebeneichler de; GREGOL, Sogia. Reflexões sobre o enquadramento da cláusula take or pay no direito privado brasileiro. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 9, n. 2, p. 710-739, 2023.

[5] STJ, REsp n. 1.984.655/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 29.11.2022, DJe 01.12.2022.

[6] STJ, REsp 2.048.957/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 18.04.2023, DJe 20.04.2023.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito das Relações Sociais pela Faculdade de Direito da UFPR e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

  • é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, graduado em Direito pela USP, membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e assistente editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

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