Opinião

A quem aproveitam os 3% retidos na fonte no momento do pagamento do precatório cedido?

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18 de janeiro de 2024, 6h32

A questão que inaugura este breve artigo precisa ser contextualizada para ser bem compreendida — ao menos para aqueles que até aqui não tiveram a oportunidade de se deparar com esse intrigante tema.

Os precatórios — ou as requisições de pagamento, de modo mais amplo — consistem em um mecanismo constitucional de viabilização do pagamento das dívidas da Fazenda Pública decorrentes de sentenças judiciais: “[o]s pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios” (artigo 100 da CF).

Em termos singelos, pois, tratam-se de requisições (ou pedidos, solicitações) enviadas pelos diversos tribunais aos órgãos do Poder Legislativo de cada ente devedor, no sentido de que, ao elaborarem a lei orçamentária anual do exercício seguinte, reservem valores para o pagamento dos créditos de determinados litigantes que obtiveram êxito em demandas judiciais contra a Fazenda Pública. Trata-se, nas precisas palavras do professor Régis Fernandes de Oliveira, de um instrumento de planejamento financeiro do Estado [1].

Nessa linha, vale destacar que, muito embora cada um desses créditos devidos pela Fazenda Pública se sujeite ao particularíssimo regime das requisições de pagamento, esse fator acidental não descaracteriza o fato de que, na vasta maioria dos casos [2], esses pagamentos implicarão a configuração, in concreto, de um signo presuntivo de riqueza [3] — e implicarão, por conseguinte, a incidência da regra matriz de incidência dos tributos correlatos. É dizer, o fato de um crédito se sujeitar ao regime de precatórios não implica o afastamento do correspondente regime tributário.

Isso significa que “[a] cessão de crédito desse precatório não tem o condão de alterar a tributação do Imposto de Renda, que deve considerar a origem do crédito e o próprio sujeito passivo originariamente favorecido pelo precatório, ou seja, o cedente, sendo desinfluente a ocorrência de cessão de crédito anterior e a condição pessoal do cessionário para fins de tributação” [4]. Dito de outra forma, o tratamento tributário dado ao precatório no momento do seu pagamento será aquele que é próprio à natureza do crédito, segundo a sua origem, e aos aspectos subjetivos do titular originário — o que não deverá ser modificado na hipótese de cessão desses créditos.

Nesse sentido — e aqui começa a se desenhar o contexto normativo do questionamento que dá nome a este texto —, interessa notar que, nos termos dos artigos 738 e 739 do Regulamento do Imposto sobre a Renda (Decreto nº 9.580/2018), preveem que os rendimentos pagos em cumprimento de decisão judicial — aqui se insere o caso dos precatórios — ficarão sujeitos à retenção na fonte de 5% [5] ou de 3% (no caso dos rendimentos decorrentes de decisões da Justiça Federal) no momento em que o precatório for pago [6].

E acrescentam: “[o] imposto sobre a renda descontado na forma prevista neste artigo será deduzido do imposto sobre a renda devido no encerramento do período de apuração” (artigo 739, § 2º, I, do RIR) e “[o] imposto sobre a renda será retido na data do pagamento ou do crédito e será considerado […] antecipação do imposto sobre a renda devido, quando o beneficiário for pessoa jurídica tributada com base no lucro real” (artigo 738, parágrafo único, I, do RIR — destaque acrescido).

Assim, vale a pergunta: a quem aproveitam os 3% (ou 5%) retidos na fonte no momento do pagamento do precatório se o crédito for cedido? É dizer: o cessionário poderá deduzir, ao encerramento do período de apuração, o montante retido na fonte ao momento do pagamento do crédito que adquiriu como cessionário (ou poderá considera-lo como antecipação do imposto de renda devido, se for pessoa jurídica do lucro real)? Ou essa faculdade permanece na esfera jurídica do cedente?

A Receita Federal do Brasil (RFB), no documento “Perguntas e respostas — IRPF 2023” [7], afirma que “[o] cessionário subroga-se no crédito do cedente, que para aquele transfere todos os direitos, inclusive os acessórios do crédito”. Em socorro dessa opinião, milita o artigo 287 do Código Civil, segundo o qual, “[s]alvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios”.

Ora, sendo o direito a utilizar o imposto sobre a renda retido na fonte para fins de dedução ou como antecipação do imposto devido ao final do período de apuração da pessoa jurídica um acessório do crédito principal, a cessão implica a transmissão do crédito acessório ao cessionário do crédito principal.

Ocorre que, no mesmo documento, linhas adiante, a RFB consigna que, “[e]m virtude da transação efetuada, o imposto sobre a renda retido na fonte não constitui ônus do cessionário nem do cedente, não integrando a base de cálculo do ganho de capital e não sendo passível de compensação ou dedução na Declaração de Ajuste Anual” [8].

Esse entendimento parece não ser acertado. Não apenas pela ausência de previsão legal nesse sentido, mas, sobretudo, pelo fato de que, conforme verificado anteriormente, “[a] cessão de crédito desse precatório não tem o condão de alterar a tributação do Imposto de Renda, que deve considerar a origem do crédito e o próprio sujeito passivo originariamente favorecido pelo precatório, ou seja, o cedente, sendo desinfluente a ocorrência de cessão de crédito anterior e a condição pessoal do cessionário para fins de tributação” [9].

Vale ressaltar que esse entendimento, assimilado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, foi, na origem, concebido pela própria Receita Federal do Brasil, no âmbito do Parecer SRF/Cosit n.º 26/2000: “[e]m função da natureza jurídica do crédito cedido, ocorrerá a incidência de imposto de renda retido na fonte, quando cabível, no momento do pagamento do precatório”.

Assim sendo, se a cessão não tem o condão de modificar a natureza jurídica do crédito cedido, tampouco teria a aptidão para afastar a incidência da norma que prevê a possibilidade de dedução do imposto retido na fonte por ocasião do pagamento do precatório.

Uma segunda baliza, portanto, a nortear o exame da questão aqui colocada parece ser a titularidade do crédito. Bem verificado, portanto, quem é o titular da parcela cedida, será possível identificar, também, a quem devem aproveitar os 3% (ou 5%) retidos na fonte por ocasião do pagamento do precatório — e para bem identificar o titular do crédito, muito importa identificar o valor disponível para cessão.

A respeito desse ponto, porém — i. e., da definição do valor disponível —, há balizas normativas que apontam em sentidos opostos.

A Resolução CNJ nº 303/2019, em seu artigo 42, caput, define como valor disponível o “valor líquido após incidência de contribuição social, contribuição para o FGTS, honorários advocatícios, penhora registrada, parcela superpreferencial já paga, compensação parcial e cessão anterior, se houver”.

Note-se que o dispositivo não faz qualquer menção expressa acerca do imposto sobre a renda; apesar disso, o § 4º do mesmo artigo 42 da Resolução CNJ 303/2019 prescreve, quanto ao imposto sobre a renda, que, em caso de cessão, “se incidente sobre a parcela cedida, será de responsabilidade do cedente, nos termos da legislação que lhe for aplicável”.

Essa disposição foi recentemente introduzida na referida Resolução por meio da Resolução CNJ nº 482, aos 19 de dezembro de 2022, e pareceu dar solução à questão em debate; ocorre, porém, que essa disposição não parece guardar conformidade com a legislação tributária vigente [10], na medida em que, por um lado, supõe a possibilidade de cessão da parcela referente ao imposto sobre a renda e, por outro, atribui ao cedente a responsabilidade por essa mesma parcela, independentemente da mudança ou não da sua titularidade.

Dito de outra forma, o citado dispositivo prevê que, se o imposto incidir sobre a parcela cedida (que, apesar de sofrer alteração em sua titularidade, não tem sua natureza jurídico-tributária modificada), essa parcela continua a ser de responsabilidade do cedente.

Diversamente, a Resolução CJF nº 822/2023 define que o valor disponível do crédito (i. e., o valor suscetível de cessão) consistirá no “valor líquido após incidência de contribuição para o PSS, provisão do imposto de renda, penhora, cessão anterior, destaque de honorários contratuais e outras deduções, se houver” (artigo 21).

Aqui, verifica-se que a parcela referente à provisão do imposto de renda não compõe o valor disponível — onde se conclui que o referido valor não deve, a princípio, ser objeto de cessão. Nesse caso, não havendo mudança de titularidade da parcela, tampouco deverá haver mudança em relação ao sujeito legitimado, materialmente, a deduzir a parcela retida da base de cálculo do seu imposto sobre a renda.

Todavia, nos casos em que não se fizer presente essa vedação, podem, em tese, as partes cedente e cessionária transacionarem acerca da parcela provisionada para fins de pagamento do imposto sobre a renda — e, havendo cessão da parcela, parece ser acertada a opinião de que o novo titular, cessionário do crédito, poderá aproveitá-la no abatimento ou na dedução do imposto sobre a renda.

Vale pontuar, ainda, possível inconstitucionalidade formal das referidas resoluções na parte em que se veda a cessão da parcela provisionada para fins de pagamento do imposto sobre a renda (no caso da Resolução CJF nº 822/2023) ou na parte em que se proíbe a cessão da parcela destinada ao pagamento de contribuições previdenciárias e de outras parcelas de titularidade do cedente (no caso da Resolução CNJ nº 303/2019).

Na medida em que os referidos dispositivos vedam a cessão de créditos que são de titularidade do cedente, que parecer que as referidas resoluções introduzem inovação no ordenamento jurídico acerca de matérias relacionadas à cessão de crédito (tópico da parte geral do Direito Civil), limitando a faculdade de dispor de certo direito — matéria sujeita ao tratamento por meio de lei (artigo 21, I, da CF), e não de instrumento infralegal.

De todo modo, presumida a constitucionalidade dos referidos dispositivos infralegais (não declarados inconstitucionais pela Suprema Corte até o momento em que este artigo é publicado), o que se tem no panorama normativo vigente, em síntese, é que as parcelas referentes à provisão do imposto sobre a renda são de responsabilidade do cedente (tanto no âmbito das cessões disciplinadas pela Resolução CNJ nº 303/2019, quanto no campo das cessões regidas pela Resolução CJF nº 822/2023).

Assim, nos casos em que, pelas mais diversas razões, também a parcela referente à provisão do imposto sobre a renda tiver sido objeto de cessão, a conduta mais adequada parece ser a consulta ao profissional especializado para adotar as medidas necessárias à tutela do crédito do cessionário.

 


[1] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 669.

[2] Algumas célebres exceções a essa regra podem ser encontradas no caso dos pagamentos referentes a indenizações, como é o caso das repetições de indébitos tributários (Ato Declaratório Interpretativo da Secretaria da Receita Federa – ADI/SRF n.º 25/2003, art. 1º) e das compensações por danos morais (Súmula n.º 498/STJ).

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 325.

[4] REsp n. 1.405.296/AL, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 19/9/2017, DJe de 28/9/2017  – destacou-se.

[5] Vale observar que, no caso da retenção de cinco por cento, o art. 738 do RIR/2018 é específico quanto à natureza desses rendimentos: “juros e de indenizações por lucros cessantes, decorrentes de sentença judicial”.

[6] No caso das pessoas físicas que recebam rendimentos recebidos acumuladamente, a tributação será realizada no momento do pagamento do crédito, de acordo com a tabela progressiva do imposto de renda, podendo o montante retido compor a base de cálculo do imposto de renda por ocasião do ajuste anual, por opção irretratável do contribuinte (arts. 702 e 703 do RIR).

[7] Disponível em: <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2023/view>. Acesso em: 4 set 2023.

[8] Idem, ibidem – negritos acrescidos.

[9] REsp n. 1.405.296/AL, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 19/9/2017, DJe de 28/9/2017  – destacou-se.

[10] Analisar arts. 96 e 100, I e II, do CTN com o Parecer SRF/Cosit n.º 26/2000.

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