Escritos de Mulher

O protocolo federal Não é Não e os desafios para sua implementação

Autores

  • Ana Luiza de Sá

    é doutora em Direito Penal e professora convidada em cursos de pós-graduação da FGV-RJ e PUC-RJ certificada pela SCCE em CCEP-I .

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

17 de janeiro de 2024, 10h12

Nos últimos dias de 2023, o governo federal promulgou a Lei nº 14.786, instituindo o protocolo Não é Não para combater o constrangimento e a violência contra mulheres, além de criar o selo Não é Não – Mulheres Seguras. Ela estabelece deveres para casas noturnas, boates, espetáculos musicais e shows com venda de bebidas alcoólicas, visando proteger os direitos da mulher contra violência e constrangimento.

Embora a iniciativa seja louvável, causa perplexidade o fato de o protocolo ter excluído cultos e eventos religiosos, vinculando a proteção à mulher apenas a situações envolvendo bebidas alcoólicas. Casos diários de importunação sexual, perseguição e danos emocionais ocorrem em diversos espaços, como templos religiosos, academias e shoppings, nem sempre associados ao consumo de álcool.

Spacca

A verdade é que a Lei nº 14.786/23 somente reforçou uma postura que já vinha surgindo no Brasil por demanda da própria sociedade, e acatada por alguns estados e municípios que atribuíram uma série de deveres a alguns tipos de estabelecimentos ao menos desde os primeiros meses de 2023. Leis, decretos e cartilhas mais detalhados e abrangentes que a própria legislação federal vêm ganhando força, ainda mais com a repercussão na mídia sobre casos como o do jogador de futebol brasileiro Daniel Alves, acusado da prática de estupro nas dependências de uma casa noturna na Espanha que havia aderido ao protocolo “No Callem”, em vigor na cidade de Barcelona desde 2018.

Provavelmente inspirados pelas diretrizes que compõem aquele protocolo estrangeiro, no Brasil passou-se a dar maior relevância para políticas públicas voltadas à preservação do direito ao consentimento por parte da mulher, criando-se protocolos e selos que transferiram ao setor privado uma obrigação de agir pela assunção de uma parcela da responsabilidade por evitar abusos e agressões ao público feminino. Em caso de descumprimento, será avaliada a aplicação de multas e sanções administrativas, além da possibilidade, ainda que não expressa, de que os funcionários e responsáveis pelos estabelecimentos obrigados possam vir a encarar as consequências criminais de sua omissão.

Os exemplos englobam desde cidades com menor número de habitantes até estados que detêm as maiores regiões metropolitanas do Brasil, líderes de formação em opinião pública.

Em Ipatinga (MG), desde janeiro de 2023, a Lei nº 4.509 [1]  estabelece a obrigação de bares, restaurantes e casas noturnas adotarem medidas de auxílio às mulheres em situação de risco, o que foi complementado pela Lei nº 4.618, de junho de 2023, criando um protocolo de segurança para diversos estabelecimentos e o Selo Não é Não – Mulheres Seguras.

No estado de São Paulo, as leis 17.621 [2] e 17.635 [3] exigem desde fevereiro medidas de auxílio a mulheres em bares, boates, casas de espetáculos, restaurantes, casas noturnas e de eventos, com ênfase na capacitação anual dos funcionários para prestar auxílio à mulher que se encontre em situação de risco. Em agosto de 2023, também foi editado o Decreto nº 67.856 [4], instituindo o protocolo Não se Cale e criando o selo Estabelecimento Amigo da Mulher.

No município do Rio de Janeiro, a Lei nº 8.186, de novembro de 2023 [5], criou o protocolo Sem Consentimento é Violência, voltado a estabelecimentos de lazer como bares, casas de shows, casas de eventos, boates, restaurantes, equipamentos desportivos e estabelecimentos similares.

Muitas outras iniciativas semelhantes antecederam a lei federal, como o Protocolo Violeta [6], do município de Recife, o selo Não é Não – Mulheres Seguras [7], do município de Araguaína (TO), o protocolo Não é Não e o selo Mulheres Seguras [8], de Porto Alegre, e o protocolo Sem Consentimento é Violência e o selo Aqui Consentimento é Lei, da cidade de Cabo Frio (RJ), apenas para citar alguns.

O diferencial desses normativos reside em seu âmbito de abrangência, aplicando-se não apenas a bares e casas noturnas – onde o consumo do álcool poderia ser um diferencial para deixar a mulher em situação de vulnerabilidade – mas prevendo medidas de ação também a cinemas, academias, motéis e hotéis. Todos destacam a importância de haver pelo menos um funcionário capacitado, com previsão de treinamento periódico, priorizando o atendimento imediato às necessidades da mulher diante de constrangimento ou violência, independentemente das repercussões em eventual processo penal.

E é nesse ponto que talvez os estabelecimentos demandem mais orientação por parte de profissionais especializados, conduzindo treinamentos não apenas operacionais, mas também sobre temas específicos como saber identificar onde termina a paquera e onde podem começar a se caracterizar condutas como assédio, importunação sexual ou estupro, além de auxiliar na estruturação de normas de conduta que permitam entender os limites de sua atuação, enquanto integrantes de um setor privado desprovido de qualquer poder de polícia.

Afinal de contas, para além de sua responsabilidade perante a Lei do Consumidor, os sócios, proprietários, diretores, gerentes etc., de cada um daqueles empreendimentos também podem vir a assumir a posição de agentes garantidores sobre eventuais atos ilícitos praticados em suas dependências, inclusive no que diz respeito a alegações de excessos que possam ser praticados por seus funcionários no intuito de preservar a mulher vítima.

Por outro lado, algumas medidas de precaução também podem ser tomadas, como a divisão de funções, o registro das situações com data, horário e nome dos envolvidos e eventuais testemunhas, e a criação de uma rede de apoio, como o diálogo prévio com os hospitais públicos, delegacias de polícia, batalhões da Polícia Militar e outros órgãos públicos de determinada localidade, que sejam responsáveis por atender as futuras ocorrências e para onde a vítima possa vir a ser encaminhada.

Um grande desafio já poderá ser enfrentado com as iminentes celebrações das festas de Carnaval, quando imensos blocos e bailes tomam as ruas das cidades de todo o país e reduzem em muito a capacidade dos estabelecimentos comerciais de controlar seus frequentadores, demandando uma equipe treinada sobre os métodos que poderão ser utilizados quando chamados a atuar em situações em que a mulher esteja vulnerável a constrangimentos e violência, seja para não adotar comportamentos de revitimização, seja para evitar a inversão de papéis de protetores para agressores.

Apesar de a Lei nº 14.786/2023 conceder um prazo de 180 dias para que o protocolo Não é Não venha a ser efetivamente exigido e fiscalizado, o governo federal já sinalizou a veiculação de campanhas como a Brasil sem Misoginia para o Carnaval [9], fruto de discussões entre os Ministérios do Turismo e das Mulheres, atraindo lideranças do setor de turismo para que desde já segmentos como hotéis, pousadas, bares, restaurantes e casas noturnas apoiem uma maior rapidez na implementação do protocolo, o que por certo demandará também um esforço de adequação por parte de organizadores de eventos como bailes carnavalescos e as famosas feijoadas em quadras de escola de samba.

Com certeza mais um passo foi tomado em prol da defesa dos direitos da mulher, mas para que as leis sejam efetivas será preciso regulamentar a forma de fiscalização por parte de funcionários públicos devidamente capacitados, para que aí sim se possa pensar em contribuir para a mudança de cultura da nossa sociedade, desde que atentos aos limites inerentes à atuação do setor privado.


[1] https://camaraipatinga.mg.gov.br/normas-juridicas/15505?slug=dispoe-sobre-o-dever-de-bares-restaurantes-e-casas-noturnas-situados-no-municipio-de-ipatinga-adotarem-medidas-de-auxilio-a-mulher-que-se-encontre-em-situacao-de-risco-em-suas-dependencias

[2] https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2023/compilacao-lei-17621-03.02.2023.html#:~:text=Obriga%20bares%2C%20restaurantes%2C%20casas%20noturnas,sinta%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20risco

[3] https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2023/compilacao-lei-17635-17.02.2023.html#:~:text=Artigo%201%C2%B0%20%2D%20A%20empresa,cultura%20do%20estupro%20praticados%20contra

[4] https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2023/decreto-67856-01.08.2023.html#:~:text=Artigo%201%C2%B0%20%2D%20Este%20decreto,nos%20estabelecimentos%20indicados%20neste%20decreto.

[5] https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/2ed241833abd7a5b8325787100687ecc/a53873b7a8a4006c03258a74005c2287?OpenDocument

[6] https://leismunicipais.com.br/a/pe/r/recife/decreto/2023/3716/37164/decreto-n-37164-2023-regulamenta-a-lei-municipal-n%C2%BA-19061-de-17-de-maio-de-2023-que-institui-o-protocolo-violeta-no-municipio-do-recife

[7] https://araguaina.to.leg.br/wp-content/uploads/2023/12/Diario-Oficial-ed-191-23-11.pdf

[8] https://leismunicipais.com.br/a/rs/p/porto-alegre/lei-ordinaria/2023/1358/13577/lei-ordinaria-n-13577-2023-institui-o-protocolo-nao-e-nao-destinado-a-garantir-a-protecao-e-o-atendimento-as-mulheres-vitimas-de-violencia-e-assedio-sexual-em-bares-restaurantes-discotecas-estabelecimentos-noturnos-estadios-de-futebol-cinemas-e-empresas-promotoras-de-eventos-festivos-e-esportivos-tais-como-bailes-espetaculos-shows-ou-qualquer-outro-estabelecimento-com-grande-circulacao-de-pessoas-e-institui-o-selo-mulheres-seguras-destinado-a-promocao-do-combate-a-violencia-e-ao-assedio-sexual-nos-termos-em-que-especifica

[9] https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202401/ministerios-do-turismo-e-das-mulheres-alinham-acoes-para-protecao-das-mulheres-durante-o-carnaval

Autores

  • é doutora em Direito Penal e professora convidada em cursos de pós-graduação da FGV-RJ e PUC-RJ, certificada pela SCCE em CCEP-I .

  • é advogada criminal, sócia do Maíra Fernandes Advocacia, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em direitos humanos pela mesma instituição e professora convidada da FGV Rio, da Universidade Cândido Mendes e de diversos cursos de pós-graduação.

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