Opinião

SAF Botafogo: o que os mecanismos de combate à crise financeira podem ensinar

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10 de janeiro de 2024, 19h38

Às vésperas do recesso forense, no último dia 20 de dezembro, o Botafogo de Futebol e Regatas ingressou com pedido de recuperação extrajudicial na 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, aceito anteontem pela Justiça fluminense. [1] Poucos meses antes, o mesmo clube já havia virado notícia após a homologação de acordo milionário pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. [2] Nesse contexto, afigura-se relevante a análise acerca da estruturação societária adotada pelo alvinegro e dos instrumentos jurídicos utilizados para a quitação de suas dívidas.

No início de 2022, o Botafogo constituiu uma SAF, em paralelo com a associação civil pré-existente, tendo sido realizado um grande investimento por parte de John Textor, que assumiu a posição de acionista controlador. Desde então, a sociedade anônima e a associação coexistem, operando-se a migração dos ativos relativos à atividade futebolística desta para aquela.

Vítor Silva/Botafogo
Botafogo torcida

A esse respeito, cabe destacar que, com a entrada em vigência da Lei 14.193, de 2021, foi instituída a figura da Sociedade Anônima de Futebol (SAF), modalidade societária destinada a companhias cujo objeto principal corresponda à prática do futebol, feminino e masculino, de forma profissional. Antes disso, tradicionalmente, os clubes de futebol adotavam o modelo associativo tradicional ou, a partir da década de 1990, com o advento da Lei Zico e da Lei Pelé, a estrutura de clube-empresa.

Seguindo a tendência do mercado futebolístico europeu, a Lei da SAF inovou ao dispor acerca do caráter mercantil da atividade esportiva desenvolvida. Assim, criou-se um microssistema sujeito a normas específicas a respeito de governança, administração e publicidade, como alternativa ao ambiente predominante de cartolismo, clubismo e falta de transparência.[3]

Uma das vantagens verificadas no regime jurídico aplicável trazido pela Lei da SAF diz respeito justamente aos mecanismos de quitação de dívidas pré-existentes. Nesse sentido, em seu artigo 13, há a previsão de duas modalidades, sendo elas o regime centralizado de execuções (RCE), próprio da Lei da SAF, e a recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei 11.101, de 2005.

No caso do Botafogo, antes mesmo da constituição da SAF, em 2021, o cenário financeiro já era preocupante, com o acúmulo de uma dívida total superior a R$ 860 milhões, atribuindo-lhe a classificação de quinto clube mais endividado do país. [4] Devido ao contexto de aumento da taxa de juros que sucedeu, com a Selic atingindo o patamar de 13,75% ao ano, a quitação das dívidas tornou-se ainda mais difícil.

O Alvinegro já conseguiu utilizar o RCE para estabelecer um plano de pagamento em relação a parte de suas dívidas. Por meio desse mecanismo, há a centralização de todas as execuções existentes em um único processo, à semelhança da vis attractiva do juízo falimentar, o estabelecimento de um plano de pagamentos aos seus credores, mediante a observância de uma ordem de preferência legal e a suspensão de execuções.

O RCE é semelhante ao ato trabalhista, instituído no TRT a partir do Provimento GP-CR 2/2016, em diversos aspectos, na medida em que estabelece renegociações, mas, no caso da SAF, ele se estende também ao âmbito cível, de modo a abranger contratos com empresários e fornecedores, por exemplo, não havendo a limitação em relação à matéria trabalhista.

Contudo, o cumprimento do plano do RCE mostra-se desafiador, pois exige a destinação de 20% das receitas correntes mensais da SAF ao seu cumprimento e possui um prazo máximo de dez anos, de forma que o clube restou inadimplente em relação a algumas parcelas devidas por certo tempo. Além disso, há diversas discussões permeando a interpretação da Lei da SAF, existindo controvérsias, por exemplo, se a venda de jogadores estaria inclusa no conceito de receitas correntes mensais.

Portanto, apesar de o RCE ser atrativo para a proteção patrimonial dos clubes de futebol que possuem dívidas vultuosas, evidencia-se a existência de certas dificuldades práticas típicas de institutos jurídicos ainda recentes e pouco consolidados. Essencialmente devido à ausência de uma jurisprudência estabelecida, há um cenário de insegurança jurídica.

Por sua vez, com relação à recuperação extrajudicial, no processo ajuizado pela associação e pela companhia que administra o estádio Nilton Santos, [5] busca-se a quitação de uma dívida superior a R$ 400 milhões perante 340 credores — dentre eles, a Vale, a Telefônica (sucessora da Vivo), a Novonor (sucessora da Odebrecht), a TAM, e, até mesmo, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Ressalta-se, nesse ponto, que, além de as próprias SAFs estarem submetidas à lei falimentar, por conta de seu regime societário, a Lei da SAF dispôs expressamente, em seu artigo 25, acerca da legitimidade dos clubes esportivos originais para requererem a sua recuperação judicial ou extrajudicial, conforme já havia sido reconhecido nos tribunais — a exemplo do caso do Figueirense, na qualidade de associação civil, que foi considerado legitimado para pleitear sua recuperação extrajudicial em 2021. [6]

Em seu plano, o Botafogo pretende equacionar as suas dívidas de natureza quirografária, sendo propostas três modalidades de pagamento:  pagamento à vista, com deságio de 90%; pagamento em até 156 parcelas mensais, com deságio de 40%; e pagamento em parcela única, limitada a 20 mil reais, com renúncia a eventuais saldos excedentes.

Apesar de possuir critérios ousados, culminando em cortes significativos no montante total das dívidas, o clube assinalou que um número significativo de credores já aderiu à proposta, o que aponta para a potencial homologação do plano em juízo. Após a repactuação do RCE, a homologação da recuperação extrajudicial caracterizaria mais uma etapa importante na reconsolidação do clube.

Em que pese a Lei da SAF ainda tenha grande espaço para aprimoramentos — a exemplo do PL 2.978, de 2023, de autoria de Rodrigo Pacheco — e a jurisprudência seja incipiente, entre vitórias e derrotas, esse novo modelo societário veio para ficar. Dos 20 times que compunham a Série A do Brasileirão em 2023, sete haviam constituído uma SAF (Atlético Mineiro, Bahia, Botafogo, Coritiba, Cruzeiro, Cuiabá e Vasco), e esse número tende a aumentar ainda mais.

Nesse sentido, a Lei da SAF efetivamente busca profissionalizar o futebol brasileiro e reconhece a necessidade de olhar-se para o passado e sanear os impasses financeiros por meio de soluções criativas e combinadas, pois, somente dessa forma, afigura-se possível a reestruturação dos clubes e o usufruto de seu potencial lucrativo.

 


[1] ROSAS, Rafael. Botafogo entra com pedido de recuperação extrajudicial, relativa a dívida de R$ 404,9 milhões. VALOR ECONÔMICO, 21 de dezembro de 2023. Disponível em: < https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/12/21/botafogo-entra-com-pedido-de-recuperacao-extrajudicial-relativa-a-divida-de-r-4049-milhoes.ghtml>. Acesso em 27 de dezembro de 2023.

[2] BOTAFOGO acerta novo acordo no RCE e prevê dívida trabalhista quitada em até 10 anos. O GLOBO, 17 de novembro de 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/botafogo/noticia/2023/11/17/botafogo-acerta-novo-acordo-no-rce-e-preve-divida-trabalhista-quitada-em-ate-10-anos.ghtml>. Acesso em 27 de dezembro de 2023.

[3] MONTEIRO DE CASTRO, Rodrigo (coord). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol – Lei 14.193/2021. São Paulo. Editora Quartier Latin. 2021.

[4] FINANÇAS TOP 20 clubes brasileiros 2021. SPORTSVALUE. Disponível em: < http://www.sportsvalue.com.br/wp-content/uploads/2022/05/Finanças-clubes-2021-e-Estratégias-disruptivas-Maio-2022.pdf>. Acesso em 27 de dezembro de 2023.

[5] TJRJ. Processo n. 0968417-69.2023.8.19.0001.

[6] BÁRIL, Daniel; SILVA, Yan Viegas; BERTHIER, Fernanda Magni. A recuperação judicial de clubes de futebol e as sociedades anônimas de futebol como ferramenta de cura do complexo de vira-lata. MIGALHAS, 3 de junho de 2022. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/367248/a-recuperacao-judicial-de-clubes-de-futebol-e-as-sociedades-anonimas>. Acesso em 27 de dezembro de 2023.

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