Opinião

Criminalização da infidelidade patrimonial: velha novidade (parte 3)

Autores

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

  • Adriano Teixeira

    é professor da FGV-SP doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

10 de janeiro de 2024, 6h33

Continuação da parte 1
Continuação da parte 2

Na primeira parte deste estudo, buscamos contextualizar o debate sobre a criminalização da infidelidade patrimonial no Brasil, açulado pelo relatório da “CPI das Americanas”; confrontamos a rica e, em alguns países, já longa experiência internacional com a incipiente, porém promissora discussão científica entre nós. Na segunda parte, apresentamos, com brevidade, os principais problemas dogmáticos que envolvem a infidelidade patrimonial e que devem ser forçosamente levados em conta nos debates da reforma legislativa que se precipitam; sem consenso no essencial, é imprudente legislar. Criticamos, na altura, qualquer gesto experimental nesse complexo setor, de enorme impacto jurídico e econômico.

Alaor Leite

A inequívoca necessidade de reforma e a vontade legiferante que agora começa a se formar impõem que a terceira parte deva estar dedicada ao oferecimento, ainda que modesto, de caminhos, de lege lata et ferenda. O quase infindável manancial teórico-jurisprudencial existente no debate internacional certamente nos fornece algumas pistas e instrumentos para resolução alguns problemas do nosso direito posto, além de descortinar perspectivas para o direito do porvir.

Sugestões de lege lata
O injusto da infidelidade, em sua enganosa e atrapalhada ubiquidade, manifesta-se parcialmente em vários e, ao mesmo tempo, integralmente em nenhum tipo penal de nosso direito positivo. Havíamos nos referido, no estudo de 2017, à existência espectral do injusto da infidelidade. É possível, todavia, extrair consequências positivas desse estado de coisas, levando a sério a estrutura (quase) ontológica da infidelidade na interpretação dos tipos penais que constituem manifestações fragmentárias desse injusto. Por exemplo, abre-se a possibilidade de interpretar restritivamente o crime de gestão temerária (art. 4º, parágrafo único L. 7.492/86), identificando-o como crime perigo abstrato contra bens jurídicos individuais, a saber, o patrimônio dos acionistas e da instituição financeira, limitando assim o espectro de ações violadoras do dever que ex ante possam colocar em risco esse patrimônio – em sentido próximo destacam-se os esforços de Cavali [1], Bitencourt/Breda [2] e Ferreira da Silva [3]; menciona-se ainda, embora de outro viés, a interessante reconstrução do crime de gestão temerária sob o cânone do “risco sistêmico” proposta por Feldens [4]; há pouco, R. Fragoso avançou nova tentativa [5].

A apropriação indébita (artigo 168, CP), interpretada de maneira elástica por nossos tribunais, deve reduzir-se ao campo de incidência permitido pelo sentido literal possível dos termos do tipo penal: apenas coisas móveis (como no furto) são objeto do crime [6] — aliás, em razão da confusão histórica entre apropriação indébita e infidelidade, não se aconselha que topograficamente o novo tipo se acomode sob a mesma numeração, como consta do Relatório da CPI. É possível, ainda, enriquecer a intepretação do peculato-desvio (art. 312, CP, caput, parte final), decompondo o verbo típico “desviar” em duas partes (e exigindo na prática a demonstração de ambas): a ação infiel de desvio e o prejuízo para o patrimônio público decorrente dessa ação. A lista poderia continuar.

Sugestões de lege ferenda
Com olhos voltados ao futuro, tal aparição desordenada e incongruente do injusto da infidelidade patrimonial em nosso ordenamento, somada à existência de outros delitos patrimoniais e financeiros que desfilam dentro e fora do Código Penal, conduz-nos a duas considerações, aparentemente contraditórias. A primeira, já enunciada pelos subscritores deste artigo em suas primeiras partes e no mencionado estudo de 2017, é a necessidade de reforma integral dos crimes patrimoniais e econômicos no Brasil, que inclui a (mas não se esgota na) introdução do crime (ou dos crimes) de infidelidade patrimonial.

A segunda é que não existe inescapável lacuna de punibilidade que devesse ser colmatada por açodada reforma. Aliás, se em vigência ainda estiver algum senso de responsabilidade, sequer se pode dizer que há verdadeiro e insuportável hiato punitivo no caso que deu azo à mencionada CPI, em face da apuração ainda em curso. Não cabe adiantar qualquer juízo definitivo sobre os fatos subjacentes, mas seria igualmente desonesto descartar de saída a possível incidência de qualquer tipo penal, como, por exemplo, crimes contra o mercado de capitais, crimes de falsidade, crimes fiscais etc.; tal análise requer escrutínio do material processual. Um eventual novo tipo penal de infidelidade não significaria automaticamente — embora possa significar, após análise esmerada — completa irrelevância jurídico-penal do passado; quem assim pensa, pensa mal, ou adere muito rapidamente à malsã e lamentavelmente proverbial ciência sob medida.

Seja como for, não se aconselha desperdiçar a inestimável oportunidade legislativa lançada, que nos oferece ocasião para concretizar as legítimas aspirações de mudança legislativa, já reclamadas pela doutrina nacional – sobretudo por de Grandis e por estes subscritores — e acolhidas pelo deputado federal Orlando Silva [7]. Escusado será dizer que toda reforma se insere em uma urdidura histórica que a possibilita e limita em um só golpe; encontrar o equilíbrio entre o correto e o possível será sempre missão delicada. Diante desse cenário, divisamos, sem pretensão de completude, três soluções: uma ótima, uma recomendável e uma minimalista.

A solução ótima
A solução ótima seria a construção de uma espécie de teoria (ou de sistematização) da parte especial do direito penal patrimonial e econômico, que, seguramente, implicaria em ampla descriminalização e readequação de tipos penais existentes, para, a partir de uma concepção geral, cogitar-se da criação de um tipo penal de infidelidade patrimonial. No que respeita o aspecto negativo, ou saneador, da empreitada, os principais alvos da reforma seriam, no setor privado, os já mencionados crimes da Lei 7.492/86, e, no setor público, o de peculato e emprego irregular de verbas públicas (eventualmente também os crimes licitatórios). Em relação ao aspecto de genuína criação legislativa, seria de se pensar, quem sabe, em duas ou três espécies de infidelidade, com pressupostos estritos, de modo a evitar os cediços problemas de determinação com que convive o direito alemão nesse setor. Seria de se cogitar, como ponto de partida da reflexão, uma infidelidade geral, uma infidelidade societária e infidelidade no setor público.

A infidelidade patrimonial geral — ao estilo alemão e espanhol — valeria para qualquer relação de tutela do patrimônio alheio, como entre pessoas naturais (consultor financeiro, advogados com seus clientes, contadores etc.). O modelo de incriminação geral português, como se sabe, é nitidamente mais restrito que os que lhes serviram de inspiração, ao se exigir que a violação do dever de tutela do patrimônio seja grave e demandar para a tipicidade subjetiva a intenção de causar prejuízo patrimonial relevante, excluindo-se o dolo eventual (cf. a parte 2 deste texto).

A infidelidade patrimonial societária — que existe na Itália, já existiu na Espanha até 2015 e, no passado mais remoto, também se discutia na Alemanha —, com requisitos eventualmente próprios e estritos, a princípio deveria destinar-se a qualquer sociedade empresária. Privilegiar o patrimônio, por exemplo, apenas de sociedades anônimas, deixando desprotegidas sociedade limitadas e demais dotadas de outras formas societárias, afigurar-se-ia como fricção ao princípio da igualdade: decidido que essa agressão interna merece pena, por que o patrimônio de quem investe em um fundo ou em uma sociedade limitada não mereceria proteção contra idêntica forma de agressão? É claro que algumas espécies de sociedades apresentam especificidades, como as instituições financeiras (em que deveres de outras naturezas também iluminam a ação do administrador) e as companhias abertas, que aprofundam a separação entre titularidade do patrimônio e sua administração e, em maior escala, envolvem patrimônio pulverizado de terceiros; uma eventual dimensão “sistêmica” adicional pode ser prevista como qualificadora, se assim se entender.

A incriminação da infidelidade no setor público é medida em princípio bem-vinda, mas trata-se tema de grande sensibilidade, a exigir redobrada cautela. Essa modalidade de infidelidade possui características bastante específicas, especialmente ligadas à menor ou ausência de liberdade de disposição do patrimônio que se atribui ao gestor. Além disso, essa tipificação teria que se acomodar a um sistema coerente de proteção penal do patrimônio e das contratações, do qual ainda não dispomos.

A solução recomendável
Sabe-se que o tempo da política desafia os ponteiros. É natural que a louvável oportunidade de diálogo com o legislativo, aberta pelo Deputado Orlando Silva, embora não justifique atropelo e pressa, seja incompatível com a solução ótima acima apresentada, que demandaria significativo tempo de elaboração e discussão. Diante desse cenário, é possível vislumbrar uma solução menos ambiciosa, mais factível, mas ainda assim responsável, e, por isso, recomendável no atual contexto.

A proposta seria a introdução de um delito geral de infidelidade patrimonial, com previsão de aumento de pena para companhias abertas, além de alterações pontuais na Lei 7.492/86, para evitar descompassos e sobreposições desnecessários com os crimes de gestão temerária e gestão fraudulenta. O PLS 312/2016, de autoria do Senador José Aníbal, com foco nas entidades fechadas de previdência complementar — os fundos de pensão —, mas que também introduz sensíveis mudanças nos crimes de gestão fraudulenta e temerária, bem como o PL 586/2020, de autoria do Deputado Eduardo Cury e originário de proposta elaborada por grupo qualificado de juristas (Estellita, Bottini, Salomão e de Grandis), podem e devem ser aproveitados.

A solução minimalista
Por fim, a solução minimalista consistiria em simplesmente adicionar ao ordenamento jurídico-penal brasileiro insular crime de infidelidade patrimonial geral ou societária, desacompanhada de qualquer alteração. Tal saída gerará inevitáveis problemas de convivência, sobretudo com a Lei 7.492/86, além de apostar em estratégia fracassada. Importante será, de toda forma, não reproduzir criticável desenvolvimento do direito penal econômico moderno experimentado por alguns países, de que é exemplo o Subventionsbetrug (estelionato de subvenção) alemão ou a fraude na obtenção de crédito portuguesa, que absolutizam alegados “riscos sistêmicos” e antecipam a punibilidade para estágios prévios à lesão ao bem jurídico [8]; aliás, esse é o modelo da gestão temerária. Por essa razão é que deve ser descartada, em qualquer hipótese, a extensão da gestão temerária e fraudulenta para todas as sociedades: seja porque a primeira hipótese é consabidamente infeliz — e erros não devem ser emulados, mas expungidos —, seja porque a fraude não esgota o espectro de ações infiéis, cujo injusto repousa precisamente na desnecessidade de fraudes para causar danos patrimoniais.

Conclusão
Uma importante reforma no coração do direito penal econômico-patrimonial se insinua e se anuncia. A correta decisão político-criminal de criminalizar a infidelidade patrimonial deve ser antecedida de uma compreensão de todos os problemas dogmáticos que envolvem o tema, capaz de produzir consensos técnicos mínimos, e de uma acurada avaliação dos impactos jurídicos e econômicos dessa introdução; um tipo penal com essas características pode, como se sabe, produzir enormes consequências, e o corpo pode rejeitar o órgão transplantado. Não deixa de ser raro privilégio o fato de podermos observar as experiências estrangeiras, em suas venturas e desventuras, antes de construímos nosso caminho.

Essa oportuna reflexão legislativa, de toda forma, deve ser inserida em nosso contexto muito específico que, se desaconselha experimentalismos individuais, sugere algum pragmatismo. Daí termos ofertado soluções que se deixam adaptar às circunstâncias: uma ótima, outra recomendável e uma última minimalista (que algum arguto leitor desconfie ser um eufemismo em ação). O fato de a solução ótima assumir forma quase quimérica não é motivo para não a enunciar ao lado daquelas soluções que parecem ser mais factíveis; assim como não se deve negar alguma resignação com a terceira solução, que aposta em fórmula reformista fracassada, qual seja a de multiplicar e sobrepor tipos penais.

Se não ofertamos, ainda, uma redação própria para eventual tipo penal — embora tenhamos deixado entrever, nas três partes deste estudo, o que deve (e o que não deve) guiar a construção de eventual tipo —, tal se deve à compreensão de que esse é um empreendimento por demais sério e de índole coletiva, que pressupõe ainda algum debate. Afinal, uma nova lei penal não pode ser produto de epifanias individuais; o mofino espaço, é claro, também contribui para tal autocontenção.

Com a solução ótima no horizonte, cumpre agora à ciência e ao legislador a incumbência de construir, irmanados em virtuosa coautoria e com alguma velocidade que a ocasião impõe, uma redação precisa para a infidelidade patrimonial, esta velha novidade que, ainda que bem resolvida e segura de si, parece fazer jus ao rótulo de “mais obscuro capítulo da parte especial do direito penal” [9]. Que a nossa reforme lance luz.

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[1] Cavali, Gestão fraudulenta: tutela de um bem jurídico difuso por meio de um crime de perigo abstrato. Tipicidade e imputação objetiva. In: Silveira/Rassi (Org.). Estudos em homenagem a Vicente Greco Filho, São Paulo, 2014, p. 375 e ss.

[2] Bitencourt/Breda, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e contra o Mercado de Capitais, 3. ed. São Paulo, 2014, p. 84 e ss.

[3] Ferreira da Silva, Gestão temerária de instituição financeira: Uma contribuição para a interpretação da elementar típica “temerária” prevista no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, Dissertação de mestrado FGV Direito SP, São Paulo, 2021.

[4] Feldens, Gestão fraudulenta e temerária de instituição Financeira: contornos identificadores do tipo. In: Vilardi et al (coord), Direito Penal Econômico: crimes financeiros e correlatos, São Paulo, 2011, p. 80 e ss.

[5] R. Fragoso, O crime de gestão temerária de instituição financeira, Tese USP, São Paulo, 2023, p. 196 e ss.

[6] Leite, Interpretação, analogia e sentido literal possível: O exemplo da apropriação indébita de valores ou numerários (ou: Réquiem a Nélson Hungria), em: Busato/Placha Sá/Scandelari (org.), Perspectivas das ciências criminais, 2016, p. 250 e ss.

[7] Relatório Final da “CPI das Americanas”, p. 309 e p. 323 e ss., acessível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2334799&filename=REL-A%201/2023%20CPIAMERI; cf. também https://www.cartacapital.com.br/opiniao/caso-americanas-a-necessaria-tipificacao-do-crime-de-infidelidade-patrimonial/.

[8] Com diversas referências Ceffinato, in: Münchner Kommentar Strafgesetzbuch, 4ª ed., Munique, 2022, § 264 Nm. 17.

[9] Schünemann, in: Leipiziger Kommentar StGB, 2014, § 266 Nm. 1.

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