Opinião

A criminalização da infidelidade patrimonial: uma velha novidade (parte 2)

Autores

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

  • Adriano Teixeira

    é professor da FGV-SP doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

14 de novembro de 2023, 14h26

Continuação da parte 1

Na primeira parte deste artigo [1], anotamos que a criminalização da infidelidade patrimonial se tornou objeto de tardia, mas oportuna discussão entre nós. Cuida-se de tema delicado, que desaconselha açodamento e experimentalismos. Tal delicadeza se deve sobretudo a duas razões fundamentais. A primeira, de natureza universal, diz respeito à inescapável complexidade desse crime, que suscita sensíveis (e ainda não totalmente solucionados) problemas dogmáticos. A segunda razão, de caráter mais local, guarda conexão com o estado da arte do caótico sistema de proteção penal do patrimônio no ordenamento jurídico brasileiro [2]. A relatoria do deputado federal Orlando Silva é, nesse sentido, garantia de lucidez legiferante.

A segunda razão terá de ficar para uma terceira parte. Cuidaremos, aqui, dos problemas dogmáticos que envolvem o tema. Afinal, antes de arriscar qualquer proposta, é aconselhável inventariar os aspectos que devem ser levados em consideração, de modo a criar alguns consensos técnicos sem os quais o debate legislativo ficaria prejudicado. Nesse tema, de enormes impactos jurídicos e econômicos que transcendem o direito penal, a prudência sugere a adoção de um imperativo de contenção: a bem-vinda reforma não pode, em nenhuma hipótese, piorar o já defeituoso sistema de proteção penal do patrimônio contra agressões internas, que se funda em paradoxo denunciado em outro estudo: quanto mais tipos, mais lacunas [3]. Bem ou mal, vivemos até aqui sem esse tipo penal.

Spacca
Alaor Leite

Problemas dogmáticos do crime de infidelidade patrimonial
Não é missão do direito penal proteger o patrimônio de maneira global. Prejuízos patrimoniais são decorrências dos riscos inerentes às dinâmicas de qualquer economia de mercado. Significa dizer que o patrimônio merece proteção penal apenas diante de determinadas formas de agressão. Também por isso é que os tipos penais nesse setor são equipados por diversos e cumulativos requisitos típicos, cada um deles encerrando complexidade própria – como a exuberante dogmática do estelionato comprova. Com a infidelidade patrimonial, não é diferente. A seguir, mencionaremos topicamente os mais tormentosos problemas dogmáticos desse delito marcado por uma união entre parte geral e especial.

a) Estrutura típica e violação do dever de tutela e acessoriedade
Questão fundamental diz respeito à sua estrutura típica básica. Descortinam-se, no mínimo, duas possibilidades. A primeira consiste em ancorar o tipo penal no abuso de um dever de tutela de um patrimônio alheio baseado na prerrogativa de disposição desse patrimônio decorrente de mandato público ou negócio jurídico — o chamado Missbrauchtatbestand. A segunda possibilidade, de maior amplitude, localiza o injusto na violação de um dever de tutela do patrimônio fundado numa relação fiduciária originada por lei, munus público ou negócio jurídico — o chamado Treubruchtatbestand. Há ainda a possibilidade combinar ambas as possibilidades, tal como fez o legislador alemão de 1933 — a despeito das divergentes interpretações que conferem acento ora a um, ora a outro formato típico [4].

Seja como for, o elemento central do delito de infidelidade patrimonial é inegavelmente a violação do dever de tutela do patrimônio; a infidelidade não se esgota em abuso de mandato. São inúmeros os desafios que envolvem a tarefa de conferir substância e contornos claros à elementar da violação do dever de tutela. Neste espaço, cumpre-nos apenas mencionar uma discussão relevante para o atual contexto brasileiro. Trata-se de decidir se, para a configuração do crime, se deve exigir que a violação do dever de tutela seja grave, nos moldes, do regramento português (art. 224, CP), que adota essa exigência de gradação construída pela jurisprudência alemã. Esse debate guarda relevância em especial para os grupos de casos dos negócios de risco [5]; aqui põe-se a complicada questão da acessoriedade: é legítimo criminalizar a mera violação de deveres extrapenais? O desatendimento à chamada business judgment rule implica automaticamente em violação do dever em sentido jurídico-penal?[6] O sentido da discussão, que se insere na chamada “procedimentalização do direito penal econômico”[7], é estabelecer uma espécie de “check-list” que confira ao administrador um porto seguro para tomar decisões arriscadas. Há muitas críticas em relação a essa exigência de gravidade.

b) Consentimento
Em crimes aos quais estruturalmente subjaz um “conflito de agência”, como a infidelidade patrimonial e a corrupção privada [8], coloca-se a questão da relevância e da eficácia do consentimento do titular do patrimônio em relação à conduta causadora do prejuízo.[9] Voltemos aos negócios de risco:  as ações arriscadas de um administrador não são per se proibidas, pois é o dono do patrimônio que decide a margem de riscos que está disposto a correr, podendo repassar ao administrador tudo aquilo que ele próprio poderia fazer com o seu patrimônio. Se o administrador recebe carta-branca para atuar de maneira arriscada, há um consentimento com efeitos excludentes já da tipicidade[10]. Os casos de consentimento podem tornar-se complexos em grandes companhias, na medida em que a vontade do titular do patrimônio não é expressa individualmente e de maneira unívoca, mas por via de Conselhos ou Assembleias, de modo que podem surgir vários casos de difícil resolução.

d) Tipo subjetivo — dolo, erro e elemento subjetivo especial
Com o mesmo propósito de evitar a punição de meras transações ruinosas, incautas ou inoportunas, discute-se doutrinariamente exigir para a tipicidade subjetiva um grau mais elevado de dolo, como a intenção, deixando de fora o dolo eventual. Novamente, foi a opção dos legisladores português (“causar…intencionalmente..prejuízo patrimonial”, artigo 224, CP) e italiano (“cagionando intenzionalmente”, artigo 2634 Codice Civile).

Como já adiantamos na primeira parte, a adição de um elemento subjetivo especial (fim de obter vantagem), tal como sugere a proposta veiculada no Relatório da “CPI das Americanas”, não é apenas despicienda, mas também equivocada, pois, ao nosso ver, teria o condão de simplesmente desnaturar o injusto da infidelidade patrimonial[11]. Afinal, as finalidades últimas daquele que, possuindo controle fático e margem de liberdade em sua atuação, viola o seu dever de tutela e danifica dolosamente (ou intencionalmente) o patrimônio alheio são irrelevantes. O ânimo de assenhoramento, de enriquecimento próprio ou de terceiro, são elementos que dizem respeito ou à figura da apropriação indébita, em que não há a mencionada margem de liberdade na atuação que possui o administrador, ou de delitos de transferência de patrimônio, como é o caso do estelionato, em que ação anterior granjeia acesso ao patrimônio alheio. Acreditamos que a citada norma italiana, que exige esse “dolo específico”, funda-se em incompreensão. Não é à toa que as demais incriminações (Portugal, Alemanha, Espanha etc.) não contêm tal elemento subjetivo.

Ainda no âmbito da tipicidade subjetiva, convém apontar brevemente para o terreno movediço que é a categoria do erro no âmbito da infidelidade patrimonial; tais situações são muito comuns, pois nem sempre há clareza quanto ao conteúdo do dever de tutela — que pode amalgamar a proteção do patrimônio contra riscos internos e o dever de tomar boas decisões (por vezes arriscadas) que aumentem o patrimônio. Discute-se, nesse contexto, a respeito da natureza do erro sobre o a elementar do dever de tutela — erro de tipo ou erro de proibição? A consequências práticas são imensas; em outro estudo, constatou-se ser o dever de tutela um elemento complexo (ora elemento em branco, ora elemento da valoração global do fato)[12].

e) Prejuízo patrimonial
A infidelidade patrimonial é um crime de resultado e de lesão, que se consubstancia em um prejuízo patrimonial para o titular do patrimônio decorrente da violação do dever de tutela. O prejuízo patrimonial é o “ponto-arquimédico do tipo penal [13]. Há uma longa e controvertida história dogmática em torno desse conceito. Concorrem, até os dias atuais, os conceitos pessoal e econômico (ou mais modernamente: jurídico-econômico) de dano patrimonial, tendendo a doutrina a aferrar-se mais ao último do que ao primeiro.

Em casos notórios, como o de “caixa-dois” em empresas e em partidos políticos,  o BGH alemão valeu-se do conceito de dano de perigo (Gefährdungsschaden), que dispensa o exaurimento do prejuízo para a afirmação da presença da elementar típica. [14] De modo a amainar a insegurança (natural, em certa medida, em vista da complexidade das modernas transações comerciais) que vigora em torno do conceito de dano patrimonial, aliada à intrínseca amplitude e indeterminação do tipo penal, o Tribunal Constitucional alemão, postulou um “imperativo de quantificação”. Segundo este, para afirmar a presença do dano patrimonial para fins do crime de infidelidade patrimonial, o juiz deve indicar numericamente o montante do prejuízo, não basta mera declamação ou vaga estimativa. [15]

A complexidade da matéria recomenda redobrada parcimônia ao legislador. Idealmente, como sói ocorrer na maioria das ordens jurídicas, deve-se relegar à doutrina e à jurisprudência a tarefa de estabelecer os contornos do conceito de prejuízo ou dano patrimonial; tal conceito não é estranho ao ordenamento jurídico brasileiro, como o revela o tipo de estelionato, que, no entanto, acertadamente não o define. Arriscar definição seria precipitado, em face da ausência de maturação do debate nacional.

f) Tentativa
Uma última questão dogmática é a punibilidade da tentativa. No direito comparado, observam-se as duas tendências opostas: na Alemanha, não se pune a tentativa, diferente, por exemplo, do que ocorre em Portugal. É decisão da mais alta relevância político-criminal.

Conclusão intermediária
Aqui chegados, renovamos, em mesma dosagem, tanto o entusiasmo com a necessária introdução da infidelidade patrimonial entre nós quanto a preocupação com experimentalismos em torno de um tema que, até ontem, nem sequer integrava o léxico da doutrina nacional. A ciência jurídico-penal brasileira está, hoje, em boas condições de auxiliar o legislador no mister de reformar o sistema de proteção do patrimônio contra agressões internas. Já contamos com uma primeira monografia dedicada apenas a esse tema, de de Grandis [16]; em vista, temos as teses doutorais de R. Fragoso [17], Caruso [18] e Sanseverino [19]. Os difíceis problemas dogmáticos aqui inventariados sugerem a necessidade de um debate coletivo, que entregue ao legislador linhas mestras claras para a construção de um tipo penal. A terceira parte avançará nesse debate.

 O atraso, de quando em vez, lança-nos uma oportunidade. Quem resolve acolher uma velha novidade possui o inestimável privilégio de aprender com os erros e de recolher os acertos das ordens jurídicas que já incorporaram tal incriminação — o que, aliás, foi tematizado em profícuo debate ocorrido no último dia 7 de novembro, na FGV-SP [20]. Essa privilegiada e ampla visão sobre a experiência alheia serve para que, após, em introspectivo exercício de autoconhecimento, olhemos para dentro de nós mesmos, para nosso sistema de proteção do patrimônio, animados pela possibilidade histórica de fazer algo nosso, novo e melhor. Introduzir pura e simplesmente um tipo penal de infidelidade, sem ajustes mais estruturantes e com insondável açodamento, seria uma lacrimosa perda de oportunidade. A despeito das dificuldades, cremos ser possível, com alguma rapidez — que é coisa diversa de pressa, assim como oportunidade é coisa diversa de oportunismo — chegar a um modelo satisfatório, que represente verdadeira melhora na proteção do patrimônio contra agressões internas, sem produzir ainda mais insegurança jurídica nesse setor e sem criminalizar a desventura negocial. Sorte histórica, já o dissemos, que o debate parlamentar seja conduzido na Câmara dos Deputados por Orlando Silva.

Afinal, é verdade que o tema não é, em si, novo; mas um novo tipo penal não precisa nascer prematuro e velho.


[1] https://www.conjur.com.br/2023-nov-03/leite-teixeira-criminalizacao-infidelidade-patrimonial.

[2] Salvador Netto, Direito Penal e propriedade privada, São Paulo, 2014: “casuísmo caótico” nesse setor (p. 28).

[3] Leite, Interpretação, analogia e sentido literal possível: O exemplo da apropriação indébita de valores ou numerários (ou: Réquiem a Nélson Hungria), em: Busato/Placha Sá/Scandelari (org.), Perspectivas das ciências criminais, 2016, p. 250 e ss.

[4] Por todos, com diversas referências, Schünemann, in: Leipiziger Kommentar StGB, 2014, § 266 Nm. 6 e ss.

[5] Leite, Dolo e erro nos delitos de infidelidade patrimonial e administração danosa, in: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, Coimbra, 2017, p. 759 e ss.

[6] Coca Vila, La business judgment rule ante la determinación del riesgo permitido en el delito de administración desleal, Revista do Instituto de Ciências Penais, v. 4, 2019, p. 83 e ss.

[7] Cf. Leite, Prozeduralisierung oder Rechtsgüterschutz bei der Untreue?, GA 2018, p. 580 e ss., que descreve essa discussão.

[8] Teixeira, Zur Frage der Strafbarkeit von „entschleierten Schmiergeldern“ – Abschied von der Korkengeld-Entscheidung? Zugleich Besprechung von BGH, Beschl. v. 28.7.2021 – 1 StR 506/20 , Goltdammer´s Archiv (GA), 2022, p. 393 e ss.

[9] Coca Vila, El consentimento en el derecho penal económico. Un estudio a propósito de los delitos de admnistración desleal (art. 252 CP) y corrupción en los negócios, in: Ragués i Vallès/Robles Planas (dir.), Delito y empresa, Barcelona, 2018, p. 193 e ss.

[10] Dierlamm/Becker, in: Münchner Kommentar zum StGB, 4ª ed., Munique, 2022, § 266 Nm. 146.

[11] Ver Salvador Netto, Direito Penal e propriedade privada…cit., p. 118 e ss.

[12] Leite, Dolo e erro nos delitos de infidelidade patrimonial e administração danosa…cit, p. 759 e ss.

[13] Schünemann, Der Begriff des Vermögensschadens als archimedischer Punkt des Untreuetatbestandes, Part. 1, StraFo 2010, p. 1, 3.

[14] BGHSt 15, 27. A respeito, Leite/Teixeira, Caixa dois como crime contra o patrimônio? Breves notas sobre o crime de infidelidade patrimonial, em: Leite/Teixeira (org.), Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito, São Paulo, 2017, p. 224.

[15] BVerfGE 126, 170, Nm. 112.

[16] De Grandis, O delito de infidelidade patrimonial e o direito penal brasileiro, São Paulo, 2022.

[17] R. Fragoso, O crime de gestão temerária de instituição financeira, USP, São Paulo, 2023.

[18] Caruso, Imputação objetiva no direito penal econômico: o desvalor jurídico-penal dos negócios empresariais de risco, PUC-SP, São Paulo, 2023.

[19] Sanseverino, O conflito de interesses dos administradores de sociedades comerciais e o direito penal, FDUL, Lisboa, 2023.

[20] Participantes: Deputado Orlando Silva, Viviane Muller Prado, Heloisa Estellita, Adriano Teixeira, Marcelo Costenaro Cavali, Juliano Breda, Felipe Campana, Everton Zanella e Leonardo de Almeida Máximo.

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