Opinião

Mitigação de riscos de acidente de trabalho atípico por culpa de terceiro

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2 de janeiro de 2024, 15h15

O renomado pesquisador Gustavo Vieira Cerqueira, em artigo publicado na Revista de Direito Internacional, na defesa da necessidade de adaptação do Direito às sensibilidades da contemporaneidade, leciona que a Academia Francesa conceitua o termo “modernizar” como uma forma de organizar, de modo a adaptá-lo aos gostos ou às necessidades de nosso tempo [1].

Nesse aspecto, a era da Indústria 4.0 dita a forma como se produzem e se organizam os dados gerados pelas empresas [2]. Considerando a evolução tecnológica que domina a contemporaneidade, não se pode olvidar acerca da normatização relativa à gestão documental de arquivos digitais em matéria trabalhista, em especial para utilização em perícias para investigação de acidentes de trabalho atípicos.

Nesse contexto, entra em cena a governança corporativa para estabelecer um bom sistema de controle de gestão, inevitável no tratamento dos riscos empresariais. Ou seja, é preciso estar atento a eventos futuros e incertos que podem influenciar, de forma significativa, o cumprimento das metas. Para uma boa governança corporativa dentro da empresa, é importante a implantação de técnica, avaliação e controle de risco, frisa-se, eficazes [3].

A governança corporativa aplica três categorias de objetivos nesse intento, quais sejam: administrar as operações empresariais de maneira eficaz; preparar demonstrações financeiras de forma confiável; e verificar o cumprimento de regras. Isso mostra o alinhamento das ações da governança corporativa com o controle interno e deixa transparecer a importância da teoria dentro das empresas.

Tudo isso justificado pelo extenso arcabouço legislativo e normativo em matéria de saúde ocupacional e engenharia de segurança do trabalho, composto por disposições da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituição responsável pela formulação e pela aplicação das normas internacionais do trabalho — convenções e recomendações — que possuem caráter vinculantes. Embora vise à merecida proteção ao trabalhador, não se desvencilha das plausíveis críticas pela ratificação de novas normas internacionais, sem consulta prévia ou participação ativa da parte a quem são atribuídas obrigações, por vezes, impraticáveis, e que inviabilizam a atividade empresarial. Dentre elas, destaca-se a NR 155, e seus artigos nº 2, 5, 11, 14, 16, 19, 20, sobre as medidas que empregadores e empregados devem observar sobre o tema saúde ocupacional e engenharia de segurança do trabalho, preventivos aos acidentes de trabalho.

O artigo 21, incisos I, II, alínea “c”, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, dispõe que acidentes de trabalho atípicos são aqueles semelhantes aos acidentes de trabalho, mas que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado. Ainda, aquele decorrente de ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho. Segundo dados do último Anuário Estatístico da Previdência Social (Aeps), referente ao período 2019-2021, publicado com a colaboração do Ministério da Previdência Social (MPS) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 2021 houve um aumento de 19,89% no número de mortes no trabalho, totalizando 2.556 óbitos em 2021, contra 2.132 em 2020 [4] [5].

Oportunamente, lembra-se que uma boa perícia deverá, além da avaliação exposta de forma clara, objetiva, inteligível dos fatos, também proceder à análise aprofundada, devendo estar apoiada em referências técnicas, normas, bibliografia, projetos, especificações, memoriais, regulamentos, manuais, legislação, contratos, cronogramas, orçamentos, pareceres especializados, ensaios, ou seja, uma imersão no acervo documental em matéria de saúde ocupacional (SO) e engenharia de segurança do trabalho (EST) da empresa.

Em relação a SO e EST, é vasto o acervo documental da empresa, sendo composto por documentos de valor administrativo e legal, como o relatório de acidente de trabalho, registros de segurança, documentação de treinamento, registro de empregado, espelho de ponto, contratos e termos de emprego, normas e regulamentos internos, ordem de serviço dos equipamentos de proteção individual (EPI) e de proteção coletiva (EPC), formulário ordem de serviço, contendo as atividades desenvolvidas e os riscos inerentes ao seu exercício. Ainda, EPIs obrigatórios, medidas preventivas, normas internas, treinamentos necessários, procedimentos em casos de acidente de trabalho, caracterização da exposição a agentes insalubres, termo de responsabilidade com assinatura do empregado e engenheiro técnico de segurança do trabalho, comunicações internas, laudo técnico de condições de ambiente de trabalho, avaliação das exposições e atividades e operações perigosas, atestado de saúde ocupacional do empregado, admissional e periódico, de acordo com a atividade obreira.

Por seu turno, o mais importante de todos, a comunicação de acidente de trabalho (CAT), que é um documento emitido para reconhecer tanto um acidente de trabalho, ou de trajeto, bem como uma doença ocupacional. Cabe destacar, que se a empresa não emitir o CAT, isso pode endossar tese contrária do reclamante de má-fé da empresa em furtar-se do seu dever de tal expedição, gerando um passivo trabalhista indenizatório. Sabe-se que se CAT for emitida pelo empregador, o INSS concede o benefício “auxílio-doença acidentário” (B91). Mas se a CAT for formalizada pelo próprio acidentado e ou pelas demais pessoas e ou entidades autorizadas, o benefício que poderá ser e ou não concedido pelo órgão previdenciário, é apenas o auxílio-doença (B32).

Compliance e governança corporativa de dados como instrumentos de controle de riscos
Os modelos de controle interno definem uma nova corrente de pensamento, que amplia a gama de conceitos em auditoria, exigindo cada vez mais a participação ativa de diretores, gerentes e colaboradores.

A guinada de rumo de melhores práticas empresariais, aqui apresentadas como aplicáveis ao Direito do Trabalho, veio com o advento do tema compliance como mecanismo de controle interno para apurar condutas contrárias aos regulamentos e código de ética internos, atualmente disciplinado pela Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 (Lei Anticorrupção), que regulamentou o artigo 1º, do Decreto nº 8.420/15, e que resultou no reconhecimento da responsabilidade objetiva das empresas.

Um dos pilares do programa de compliance é a detecção, onde são analisadas possíveis falhas que possam implicar em violações sistemáticas ao programa de compliance implantado, em especial, determinações, regras inseridas em códigos de obras ou regulamentos sanitários dos estados ou municípios em que se situem os estabelecimentos das empresas, bem como daquelas oriundas de convenções coletivas de trabalho, quanto às regras de segurança e medicina do trabalho, tal qual como disposto no artigo 154 da CLT [6]. Para tanto, a empresa poderá disponibilizar: canais de denúncias; realização de investigações (internas e externas); monitoramento; e auditoria de compliance.

Por essa razão, é fundamental que o programa de compliance seja criado com fundamento em pilares que guardem relação com a atividade obreira, adoção de código de conduta, processos e procedimentos adequados, mas, em especial, com o apoio dos líderes e da alta direção da companhia, sem olvidar-se em hipótese alguma da necessidade de melhoria contínua do programa.

Toma relevo, com a presente argumentação, o poder diretivo do empregador, que nada mais é do que uma prerrogativa associada à subordinação, oriunda do vínculo empregatício, com autonomia para exercê-lo em três instâncias, a saber: de organização; de controle; e disciplinar. Cabível salientar, obviamente, que o poder de direção dado ao empregador não pode ser utilizado de forma irrestrita, limitando-se aos preceitos determinados na legislação vigente no país, sendo que o abuso no exercício desse poder, poderá se reverter em obrigação em indenizar o ofendido, razão pela qual, sugere-se, por cautela, que no contrato de trabalho, termo ou política, conste o caráter profissional dos canais oficiais eletrônicos passíveis de monitoramento contínuo.

Insta salientar, ainda que, sob o olhar do compliance, é recomendável que esses procedimentos internos sejam levados ao conhecimento dos empregados, tal como disposto nos incisos do artigo 42 do Decreto 8.420/2015, que preconiza que a empresa deve fazer sua autorregulamentação por meio do código de ética e politicas e/ou procedimentos internos. Em especial, acerca do procedimento investigatório interno, estabelecendo, por exemplo, as fases da investigação — recebimento da manifestação, informação do caso ao comitê interno, oitiva de testemunhas —, assuntos que serão tratados internamente, ou com auxílio de escritório externo, prazos para cada etapa e, por fim, prazo máximo para conclusão da investigação.

Outrossim, é importante que os empregados selecionados a compor o comitê interno tenham ciência dos limites que a legislação trabalhista apresenta para a investigação, mitigando o risco de que a empresa realize procedimentos inadequados, ou juízo de valor equivocado de condutas de seus empregados, expondo-a a futuras reclamações trabalhistas, com vultosos pleitos de danos morais, e reversões de justas causas, por inadequação dos procedimentos adotados [7].

Nesse sentido, é inconteste que ao empregador não é lícito violar correspondências e/ou explorar documentos, arquivos, fotografias, por exemplo, de propriedade pessoal dos empregados, ainda que estejam armazenados em um computador da empresa, em respeito à Lei nº 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Destaca-se, entrementes, que aqui se deve ter como premissa, que apenas os equipamentos, documentos e arquivos pertencentes à empresa sejam analisados em investigações internas para apurações de sinistros, dado que se forem executados em sentido contrário aos fins concebidos, os resultados perderão credibilidade, ocasionando enormes prejuízos ao empregador [8].

Veja-se que, independente do sistema de reporte de preocupações/denúncias dos colaboradores empregados, para que seja utilizado de forma adequada, é importante deixar claro nos treinamentos ministrados, que todos são guardiões das normas de compliance.

Caso o objeto da investigação necessite de análise documental, se faz imperioso que a empresa preserve a documentação com o intuito de resguardar-se, tanto na investigação, quanto em um possível processo judicial ingressado pelos dependentes.

Veja-se ainda que esse novo paradigma só poderá ser concretizado pela iniciativa privada, se em compasso com o avanço na adoção de políticas públicas envolvendo governança de dados, considerando inovações trazidas, por exemplo, pelo blockchain que, basicamente, envolve a automatização dos processos para validação de transações, comumente utilizada pela área de supply para rastreamento de mercadorias internacionais, para evitar a taxação dupla ou fraudes de não taxação sobre produtos, atualmente em tratativas para regulação e possível aplicação no Mercado Comum Europeu [9].

Registre-se, por fim, que com o crescimento do volume de dados, as empresas precisarão ter um olhar mais acurado em direção aos seus problemas potenciais. A esse fator, agrega-se a amplificação dos riscos e das consequências tecnológicas e gerenciais que chegarão com o desembarque de outras tendências apontadas, como Big Data, a Internet das Coisas (IoT) e inteligência artificial, que, para muitos tipos de negócios, já têm alterado a escala dos dados e as dimensões dos problemas e soluções por eles gerados [10].

Considerações finais
Do todo o exposto, resta evidente que as empresas devem se preocupar com a criação de programas de compliance efetivos e baseados, em especial, nos pilares da detecção e proteção, que poderão fomentar suas defesas em perícias para apuração de acidente de trabalho atípico. Nesse sentido, é imperioso que elas elaborem seu código de ética e políticas e procedimentos sobre o tema, dando ampla ciência ao seu público interno e externo, inclusive quanto ao encaminhamento da CAT em tempo hábil, bem como no acompanhamento interno das causas do sinistro.

Percebe-se também como essa temática se entrelaça com aspectos de governo e Estado, seus órgãos de transparência e de controle, de modo a se pensar na Indústria 4.0, como instrumento de aperfeiçoar a criação de novas obrigações trabalhistas, sem antes de conceder aos destinatários a devida participação e interlocução de pensar antes, o chamado Compliance by Design, recebendo as críticas e sugestões da iniciativa privada para definir o processo de validação dessas normas perante seus órgãos de controle em perícias trabalhistas, para só então passar à fase de implantação e execução.

Nesse sentido, verificado que a empresa adotou procedimentos de controle e mitigação de riscos internos, bem como a consideração na aplicação das sanções, deve ter maior peso a favor dos empregadores em respeito ao direito constitucional de ampla defesa e contraditório, desde que provado a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, e a não aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.

Por fim, o procedimento de investigação e a perícia se conectam em seus fins, em especial para gerar provas que atestem ou que contestem os fatos apresentados. Dessa forma, ambos não podem se distanciar de sua finalidade, qual seja, a de esclarecer pontos, mediante exaustiva análise de elementos que possam não ter sido totalmente esclarecidas a partir da apresentação de documentos técnicos e/ou técnico-médicos.


[1] CERQUEIRA, Gustavo. Comparação jurídica e ideias de modernização do direito no início do Século XXI. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 17, n. 1, p. 7-23, 2020.

[2] BONFADA, Elton. et al.; Gestão de serviços jurídicos. Porto Alegre: SAGAH, 2018. pg. 309 – 310. Recurso eletrônico.

[3] BARBIERI, Carlos. Governança de Dados: Práticas, conceitos e novos caminhos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020. Pgs. 276 – 277. Recurso eletrônico.

[4] BRASIL. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasil, 2013. Disponível em 31.4 – Quantidade de acidentes do trabalho, por situação do registro e motivo, segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) – 2019/2021 — Ministério da Previdência Social (www.gov.br). Acessado em 27/07/2023.

[5] CARDOSO, Maria. Previdência Social Divulga as últimas estatísticas de acidentes de trabalho. Revista eletrônica Proteção. Publicado em 09 de fev. 2023. Disponível em Previdência Social divulga as últimas estatísticas de acidentes de trabalho – Revista Proteção (protecao.com.br). Acessado em 19//08/2023.

[6] MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social – Direito Previdenciário. 41. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023. pg. 267. Recurso eletrônico.

[7] KLEIDIENST, Ana Cristina; COSTA, Beatriz Angela Gimenez. Grandes Temas do Direito Brasileiro: compliance. Capítulo “Investigações Internas de Compliance e seus Limites pela Ótica Trabalhista”. São Paulo: Almedina Brasil, 2019. Vários autores. pgs. 15-26. Recurso eletrônico.

[8] LIMA, Adrianne; ALCASSA, Flavia; PAPPERT, Milena. LGPD no Direito do Trabalho. São Paulo: Expressa, 2022. pg 11. Recurso eletrônico.

[9] LUI, Lizandro. A Política de Dados no Brasil. Webinars da Escola de Políticas Públicas e Governo (EPPG) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). 03 de nov. de 2021. Disponível em Webinar | A política de governança de dados no Brasil – YouTube. Acesso em 0708/2023.

[10] BARBIERI, Carlos. Governança de Dados: Práticas, conceitos e novos caminhos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020. pg. 57. Recurso eletrônico.

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