Opinião

Desafios legais na cobrança de serviços médico-hospitalares além dos prazos contratuais

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28 de fevereiro de 2024, 19h15

É praxe que os contratos de prestação de serviços celebrados pelos planos de saúde com clínicas ou hospitais privados contenham cláusulas com previsão de prazo para apresentação de contas e para a entrega de faturas dos atendimentos realizados pelos prestadores aos beneficiários do plano em questão.

Apesar de o serviço ter sido efetivamente autorizado e prestado, não raras vezes as operadoras de planos de saúde recusam-se a efetuar os respectivos pagamentos, sob o argumento de que o prazo contratual para a apresentação das contas hospitalares foi descumprido e, portanto, teria decaído o direito de cobrança.

Contudo, não há como sustentar que a inobservância do prazo contratual para apresentação das contas para pagamento gere a decadência (perda) do direito de cobrar tais valores.

Direito potestativo x direito subjetivo
A decadência ocorre com relação a direitos potestativos, ou seja, somente com relação aos direitos que são poderes ou faculdades do seu titular e que não admitem qualquer contestação:

“Estes [direitos potestativos] nada mais são do que poderes ou faculdades do sujeito de direito de provocar a alteração de alguma situação jurídica. Neles não se verifica a contraposição de uma obrigação do sujeito passivo a realizar certa prestação em favor do titular do direito. A contraparte simplesmente está sujeita a sofrer as consequências da inovação jurídica. Por isso, não cabe aplicar aos direitos potestativos a prescrição: não há pretensão a ser extinta, separadamente do direito subjetivo; é o próprio direito potestativo que desaparece, por completo, ao término do prazo marcado para seu exercício” [1].

Ocorre que a estrutura contratual utilizada como regra permite verificar que a apresentação das contas para pagamento pelo plano de saúde não é um direito potestativo, mas sim um direito subjetivo decorrente da própria essência do negócio.

Isso porque a apresentação das contas pelo prestador do serviço não gera automaticamente o direito ao recebimento dos valores lá mencionados, já que dependerá de avaliação do plano de saúde. Ou seja, o direito do prestador de serviços não é automático e admite contestação por parte do plano de saúde.

Assim, não há como sustentar que o direito de cobrar os valores decorrentes dos serviços médico-hospitalares prestados é decadencial, mas sim prescritível. E sendo prescritível o direito subjetivo, não se pode falar em alteração do prazo previsto em lei diante da expressa vedação legal do artigo 192, Código Civil.

Supremacia da ordem pública
A existência de vedação legal à alteração do prazo prescricional torna-a norma de ordem pública (que busca preservar a segurança jurídica), prevalecendo sobre o interesse das partes e constituindo uma limitação à autonomia da vontade dos contratantes em observância ao princípio da Supremacia da Ordem Pública.

Se a lei expressamente veda a convenção das partes sobre a prescrição, não há qualquer dúvida que se trata de norma de ordem pública. O mesmo se aplica ao contrato que tenha por objeto a compra e venda de um órgão do corpo humano, por exemplo. Em ambos os casos, há vedação legal expressa.

No caso dos contratos de prestação de serviços celebrados por prestadores de serviços médicos e hospitalares com planos de saúde, pouco importará a redação da cláusula ou mesmo se houve a expressa exclusão do dever de efetuar o pagamento se as contas não forem apresentadas no prazo. É necessário que se tenha em mente a natureza do direito (subjetivo e, portanto, prescritível), evitando que se burle as normas de ordem pública trazidas pela codificação aplicável.

Julgados
Observa-se que situações como a aqui analisada já foram levadas à apreciação do Poder Judiciário, reconhecendo o Tribunal de Justiça de São Paulo que eventual convenção contratual não resulta em quitação automática de débitos e obrigações, e, principalmente, não obsta a realização da cobrança de valores pela via judicial:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. HONORÁRIOS PROFISSIONAIS DECORRENTES DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS REALIZADA PELOS MÉDICOS COOPERADOS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DOS DEMANDANTES.    REQUERIMENTO PARA AFASTAR A NORMA REGIMENTAL ENVOLVENDO ALEGADA DECADÊNCIA CONVENCIONAL. VIABILIDADE. COBRANÇA DE HONORÁRIOS PROFISSIONAIS QUE NÃO ABARCA DIREITO POTESTATIVO. EXERCÍCIO DA AÇÃO REGULADO POR PRAZO PRESCRICIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 192 DO CÓDIGO CIVIL.    AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO QUANTO AOS SERVIÇOS E VALORES INFORMADOS NA INICIAL. PEDIDO DE COBRANÇA ACOLHIDO.   RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.   O prazo para cobrança de honorários profissionais decorrentes da atividade médica em favor de hospitais ou cooperativa de prestação de serviços é quinquenal, regulado pelo art. 206, § 5º, inc. II, do Código Civil, contado de cada atendimento e/ou procedimento executado [2].

Prestação de serviços. Ação monitória baseada em nota fiscal. Possibilidade. Negativa de pagamento em função de glosa administrativa. Decadência convencional. Direito de acesso à justiça. Vedação legal à redução de prazos prescricionais (art. 192, CC). Sentença mantida. Honorários advocatícios majorados. Recurso improvido [3].

Apelação. Demanda ordinária de cobrança. Sentença de procedência. Decisão mantida. Lei 8.078/90 que não se aplica na espécie, por não se tratar de relação de consumo. Decadência convencional. Hipótese de tentativa de redução de prazo prescricional. Inadmissibilidade. Ônus da prova. Fatos extintivos e modificativos alegados pela ré, porém não demonstrados. Recurso desprovido” [4].

Neste último acórdão, fundamenta-se que “tampouco é possível admitir que o escoamento do prazo avençado implique quitação irrestrita e irrevogável, pois isso significaria ofensa à norma de ordem pública que veda alteração de prazo prescricional.” O relator ainda menciona que “não é possível invocar o aludido dispositivo contratual para impedir que a dívida seja cobrada na presente demanda. Quando muito, essa cláusula poderia servir para nortear procedimento para que as partes apurassem extrajudicialmente diferenças relativas às transações celebradas.”

Outros tribunais também já se posicionaram sobre o tema, reconhecendo que eventuais inconsistências administrativas não eximem o devedor de cumprir com a obrigação do pagamento pelos serviços contratados e efetivamente prestados em razão de contrato firmado entre as partes:

“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. DIREITO DO AUTOR. FATO EXTINTIVO, MODIFICATIVO OU IMPEDITIVO. APRESENTAÇÃO DE PROVAS. ÔNUS DO RÉU. MERAS INCONSISTÊNCIAS TÉCNICAS. LEVANTAMENTO DA OBRIGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTOS FISCAIS. EXIBIÇÃO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. 1. Enquanto incumbe ao autor a demonstração dos fatos constitutivos do seu direito, recai sobre o réu a obrigação de exibição de algum fato extintivo, modificativo ou impeditivo capaz de neutralizar o pleito estampado na inicial, conforme preceitua o art. 373 do Código de Processo Civil. 2. A mera alegação de inconsistências técnicas, tais como a falta de encaminhamento da documentação devida, o errôneo lançamento de códigos de identificação das despesas, dentre outras, não são aptas a eximir a operadora de planos de saúde demandada da obrigação contratual de adimplemento das despesas assumidas pelo instituto hospitalar credenciado. 3. Devidamente apresentados os documentos fiscais hábeis a lastrear a pretensão de ressarcimento assentada em ação monitória, a manutenção do decisório de rejeição dos embargos opostos e de condenação da ré ao custeio dos dispêndios inadimplidos é medida que se impõe. 4. Recurso desprovido [5].

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE COBRANÇA – INTERESSE RECURSAL – AUSÊNCIA PARCIAL – COOPERATIVA DOS PROFISSIONAIS DA ÁREA DE SAÚDE – MÉDICO COOPERADO – LEGITIMIDADE ATIVA – CONFIGURAÇÃO – DECADÊNCIA CONVENCIONAL – AUSÊNCIA – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES – CONTRAPRESTAÇÃO – OBRIGAÇÃO DE PAGAR – PROFISSIONAL DETENTOR DE ESPECIALIDADE PARA A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – COMPROVAÇÃO. […] Ao autor da ação incumbe fazer prova acerca dos fatos alegados como fundamento do invocado direito, assim como ao réu, a prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito. As partes podem convencionar a decadência do direito objeto da relação jurídica que celebram, hipótese esta que depende de pactuação. Em conformidade com o princípio da inafastabilidade da jurisdição ( CF, art. 5º, XXXV), é desnecessária a provocação da esfera administrativa para que a parte se socorra ao Poder Judiciário com a finalidade de efetivar os seus direitos. Uma vez prestado o serviço médico-hospitalar na forma contratada, o contratante fica obrigado a pagar ao profissional prestador do serviço o valor correspondente. Comprovado que o serviço médico-hospitalar prestado concerne a área de atuação afeta à especialidade do profissional prestador, nos termos regulamentados pelos dos órgãos competentes – ANVISA e Conselho Federal de Medicina (CRM), há que se reconhecer a aptidão do profissional para a realização da atividade” [6].

Violação à boa-fé objetiva
Acrescenta-se a isso que, nos casos em que a autorização prévia é fornecida pelo plano de saúde para a prestação dos serviços, a posterior negativa ao pagamento baseada na mera alegação de intempestividade da apresentação de contas e entrega de faturas configura violação ao princípio da Boa-Fé Objetiva e seus deveres anexos, principalmente o dever de “non venire contra factum proprium”. Há clara contradição na conduta do plano de saúde entre autorizar o atendimento e, posteriormente, negar o pagamento, sem falar do seu enriquecimento ilícito.

Também deve-se pontuar que, apesar da eventual inobservância do prazo para apresentação dos documentos, a prévia prestação do serviço (autorizado) configura adimplemento substancial da obrigação, de modo que não pode ser utilizada a exceção do contrato não cumprido para negar o pagamento quando se está diante de obrigação acessória e “pequena” frente à obrigação maior, qual seja, a de prestar atendimento médico e/ou hospitalar.

Considerações finais
Ao arremate e a depender da casuística, pode-se ainda estar diante de um contrato de adesão, em que eventual cláusula que retira a obrigação de pagamento pelo serviço prestado caracteriza renúncia antecipada a direito decorrente da própria essência do contrato (isto é, renuncia ao direito de cobrar valores decorrentes da prestação de serviços muitos antes do implemento do prazo prescricional), sendo, portanto, nula tal disposição, nos termos do artigo 424 do Código Civil.

Eventual não observância do prazo previsto em contrato pode, no máximo, afastar a mora do plano de saúde. Não pode, entretanto, afastar o direito do prestador de serviços de receber os valores pelos serviços efetivamente autorizados e prestados.

Todavia, é necessário ponderar que a nulidade da cláusula contratual com prazo para apresentação das contas hospitalares não gera o dever automático do plano de saúde de efetuar o pagamento de todas as contas hospitalares a serem apresentadas, apresentadas ou em aberto.

Isso porque é imprescindível que as contas hospitalares passem pela auditoria técnica para verificar se a sua cobrança está de acordo com o contrato ou com a necessidade do atendimento hospitalar autorizado.

Assim, eventual ação judicial com pedido de cobrança de todas as contas hospitalares negadas por apresentação fora do prazo pode não ser julgada totalmente procedente, porque, na medida em que as contas hospitalares não foram auditadas (a negativa ocorre antes disso), pode haver procedimentos não cobertos, o que levaria à uma procedência de glosa e, consequentemente, inexistência do direito de cobrar por aqueles valores. O eventual pedido de cobrança poderá exigir a realização de uma perícia técnica.

Portanto, conclui-se que é possível exigir que os planos de saúde analisem normalmente as contas hospitalares apresentadas fora do prazo previsto em contrato, estando sujeito o seu pagamento à glosa exclusivamente técnica.

 


[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. dos atos ilícitos. da prescrição e da decadência. da prova.. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. P. 348.

[2] TJSC, Apelação Cível n. 2011.025835-1, de Joaçaba, rel. Jorge Luis Costa Beber, Quarta Câmara de Direito Civil, j. 16-05-2013

[3] TJSP;  Apelação Cível 1012175-09.2017.8.26.0068; Relator (a): Nestor Duarte; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/08/2018; Data de Registro: 27/08/2018

[4] TJSP;  Apelação Cível 1091121-59.2018.8.26.0100; Relator (a): Campos Mello; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 35ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/02/2020; Data de Registro: 05/02/2020

[5] TJ-DF 07187701220208070007 1413134, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 31/03/2022, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: 12/04/2022

[6] TJ-MG – AC: 10024122976335004 MG, Relator: Leite Praça, Data de Julgamento: 23/06/2016, Data de Publicação: 05/07/2016

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