Opinião

O debate sobre cursos de medicina no STF: afinal, o que é modulação?

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24 de fevereiro de 2024, 6h35

O ministro Gilmar Mendes concedeu, em agosto de 2023, medida cautelar nas ADC 81 e ADI 8.178. Dada a fundamentação, tem-se uma decisão quase definitiva.

No mérito, reconheceu que o artigo 3º, da Lei 12.871/2013 é constitucional, reconhecendo a constitucionalidade do chamamento público para cursos de medicina. Mediante a técnica da interpretação conforme decidiu que os chamamentos não são compatíveis com a criação de novos cursos por outras vias.

Registrou e constatou que os investimentos e expectativas criadas justificavam a modulação do voto [1], garantindo a tramitação de parte dos processos administrativos existentes, bem como a validade dos cursos iniciados e com portarias já publicadas. Os demais votantes, até o momento são cinco ministros, concordaram em modular, ainda que alguns fixaram modulações mais restritivas e reticentes.

Afinal, o que é modulação? A chamada “modulação temporal dos efeitos da decisão” é uma técnica usada para abrandar os efeitos de decisões judiciais sobre constitucionalidade ou modificação de precedentes que afetem significativa e pesadamente a vida do jurisdicionado.

Quando o STF decide que uma norma é inconstitucional, por exemplo, o efeito deveria alcançar todos os atos praticados sob fundamento daquela norma, ou seja, deveriam ser efeitos retroativos. A decisão retrocederia para desfazer todos os atos considerados lícitos com base no entendimento anterior. Uma retroatividade que pode resultar em efeitos devastadores.

No caso concreto, abertura de cursos de medicina, os efeitos negativos da provável declaração de constitucionalidade dos chamamentos, como fórmula única e excludente, resultam na perda dos investimentos, a par de impactos para as comunidades locais que aguardam ansiosamente a instalação desses cursos. Nas palavras do relator:

“Há inegável interesse social na adoção de solução que contemple as faculdades instaladas…” e “…essas razões se aplicam aos cursos que estão em fase de análise perante o Ministério da Educação….”, “porque esses pedidos (…) constituem projetos minimamente viáveis” (trechos da primeira medida cautelar).

É necessária a modulação. O fundamento está contido no artigo 27 da Lei 9.868/1999. Além disso, considerando o contexto, poderia ainda ser aplicado o CPC/ 2015, nos termos do disposto no artigo 927. No primeiro caso, a modulação seria em função de uma técnica de controle da constitucionalidade. No segundo, em virtude da alteração de entendimento do Poder Judiciário em mais de uma centena de ações analisadas em primeira e segunda instâncias.

Quais as bases das modulações feitas pelo STF?
O ministro Gilmar Mendes, nos embargos da ADI 5.882/SC, explicitou que: “…o instituto busca evitar que a decisão proferida por esta Corte afete, de forma negativa e relevante, importantes valores sociais, especialmente os princípios da boa-fé́ e da confiança legítima…”.

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No caso do debate em torno dos cursos de medicina a complexidade de pormenores exige atenção. Prova disso é a existência de mais de 200 processos com liminares e sentenças em favor de entidades interessadas na abertura de cursos, ainda que submetidas aos rigores de outras normas.

Nas ADC 81 e ADI 8178, ações de controle concentrado (ou ações “diretas”), caberia a modulação do Art. 27, da Lei 9.868/1999. A jurisprudência da Suprema Corte respalda a modulação de efeitos da decisão sobre o chamamento público para abertura de cursos de medicina.

É necessário quórum especial para modular?
O artigo 27 da Lei de 9.868/1999 exige quórum de “maioria de dois terços de seus membros” para aplicação de modulação. Hoje, todos os seis votos proferidos são a favor do ajuste de efeitos na decisão e faltariam, pelo critério acima, apenas dois votos para garantir a modulação. O STF é composto de onze ministros; dois terços de seus membros equivalem a oito.

Importante ressaltar que não importa que existam teses diferentes quanto aos efeitos modulados da decisão. Uma vez tomada a decisão de modular, os ministros que assim votaram deverão encontrar uma solução única.

Esta posição foi adotada em 2023, por ocasião da decisão dos embargos da ADC 49/RN, quando o ministro Marques Nunes afastou a antiga tese do voto médio e afirmou: “Atingimos quórum para modular, e a maioria simples se encarrega de resolver “. Essa decisão é sábia, pragmática, prospectiva.

Por outro lado, caso a modulação pode ser feita com base no CPC, onde não há quórum mínimo, bastando a maioria simples dos votos para garantir o ajuste dos efeitos decisórios. Sendo essa a opção, já está garantida a modulação, pois, como dito, todos os seis votos proferidos até o momento propõem modular a decisão final do plenário.

E qual seria a modulação mais justa para os cursos de medicina?
Nos processos mencionados há duas propostas sobre a extensão da modulação. A primeira sugere validar as portarias já emitidas, permitindo o andamento dos processos minimamente viáveis. A segunda propõe validar apenas os cursos que já começaram e têm a portaria publicada, sendo uma modulação mais restritiva.

A modulação restritiva não é a mais adequada, o que inclusive se extrai de parecer de autoria de Daniel Sarmento, juntado nos autos dessa ADC, é que ela cria excessiva constrição de direitos sem apresentar vantagens para a defesa da política pública. E hoje, dado o transcurso de seis meses da primeira cautelar e a inegável situação de resistência ilegal do MEC em concluir os processos administrativos já em estágio final, seria agora ainda mais injusto e contraproducente diferenciar os cursos com portaria daqueles que só não a tem por omissão do órgão regulador.

O tempo tornaria mais evidente, também, que a argumentação de que as instituições de ensino assumiram riscos diferenciados merece ser revista. Neste caso, todas as instituições, com ou sem Portaria, assumiram riscos iguais, sendo seus destinos diferenciados apenas pela conduta omissiva do Poder Executivo, principalmente após a decisão do STF.

Portanto, o transcurso do tempo comprova que algumas propostas de modulação podem ser revistas. Elas poderiam analisar o quadro como um todo, observar que não há risco para a Política Pública, como afirmou Daniel Sarmento em robusto parecer. Deve-se constatar que não há diferença quanto à assunção de riscos. Na verdade, hoje, a diferença — curso com ou curso sem Portaria — é induzida apenas pela desobediência do MEC.

Em face dessa desobediência reiterada, por parte do MEC, a mudança nos votos de modulação teria ainda um efeito pedagógico. O MEC perceberia que não logrou êxito em sua omissão, contrária a cautelar vigente e nitidamente sem punição até o momento.

A modulação dos efeitos da decisão sobre a abertura de cursos de medicina no STF é estupendo exemplo de como pode ser bem usado este instituto, com dinamismo,  atento à realidade e garantidor da segurança jurídica e da confiança do particular no Estado.

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[1] O Min. Gilmar Mendes não usa o termo “modulação” em seus votos, mas o Min Edson Fachin se refere as medidas adotadas usando o termo. Diz o Min. Fachin em seu voto: “Há que se colmatar as premissas irretocavelmente expostas pelo Eminente Relator com a modulação em menor extensão” (grifamos) e o Min. André Mendonça também usa o termo. Provavelmente, o relator não usa o termo porque suas decisões ainda são cautelares e não há constitucionalidade ou inconstitucionalidade declarada ainda.

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