Opinião

Novos órgãos federais de promoção dos direitos animais

Autor

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

4 de fevereiro de 2023, 17h04

Entrou em vigor no último dia 24 (cf. artigo 5º), o Decreto 11.349, de 1º da janeiro de 2023, assinado pelo atual presidente da República e publicado no mesmo dia da assinatura, que "aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e remaneja cargos em comissão e funções de confiança".

A novidade de destaque é a criação da nova Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, vinculado à qual estará o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais, como órgãos específicos singulares da estrutura organizacional do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Quer parecer, pela denominação atribuída aos novos órgãos federais e, especialmente, pelas novas competências a eles destinadas, que o Direito Animal, como ramo jurídico autônomo que disciplina os direitos animais, passa a contar com expresso reconhecimento por parte da administração pública federal.

Parece um pouco mais do que evidente que, se existe um Direito Animal positivado no Brasil — inclusive no estrato constitucional do ordenamento jurídico — [1], impondo ao poder público a promoção dos direitos animais, tornava-se absolutamente necessária criar as estruturas administrativas necessárias para tanto, sem o que tais direitos careceriam da efetiva implementação prática e concreta.

Pela primeira vez na história brasileira, dois órgãos executivos federais têm propósitos expressos na promoção de direitos animais, servindo de base e de exemplo para a estruturação administrativa de estados, do Distrito Federal e dos municípios no mesmo sentido, dado que todos esses entes federativos têm competência material para a proteção dos animais (artigo 23, VII, CF).

Segundo o artigo 2º, inciso II, alínea a, item 2 do anexo I do Decreto 11.349/2023, a estrutura organizacional do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima passa a contar, dentre seus órgãos específicos singulares, com a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, dentro da qual se encontra o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais (ao lado dos Departamentos de Florestas, de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade e de Áreas Protegidas).

Dentre as novas competências da Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais está a de propor políticas e normas e definir estratégias, considerados os diversos biomas brasileiros, nos temas relacionados, dentre outros, a promoção da proteção, defesa, bem-estar e direitos animais (artigo 18, I, g).

Para tanto, também poderá propor, coordenar e implementar programas e projetos na sua área de competência (artigo 18, II); acompanhar e avaliar tecnicamente a execução de projetos na sua área de atuação (artigo 18, III); promover a cooperação técnica e científica com entidades nacionais e internacionais na área de sua competência (artigo 18, VI); coordenar e executar as políticas públicas decorrentes dos acordos e das convenções internacionais ratificadas pelo País em sua área de competência (artigo 18, VII); e subsidiar, assessorar e participar, em articulação com a Assessoria Especial de Assuntos Internacionais e com o Ministério das Relações Exteriores, de negociações e de eventos internacionais relacionados aos temas de sua competência (artigo 18, VIII).

No interior dessa nova Secretaria funcionará o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais, ao qual foram atribuídas às seguintes competências (artigo 20):

"Art. 20. Ao Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais compete:
I – elaborar, propor, acompanhar, analisar e avaliar políticas, elaborar e implementar programas e projetos destinados à proteção, à defesa, ao bem-estar e aos direitos animais;
II – articular com órgãos e entidades do Poder Público federal, com a sociedade civil e promover a interlocução com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nos temas de sua competência;
III – coordenar a interlocução do Poder Público federal com as organizações internacionais e com as organizações da sociedade civil que atuem nos temas de sua competência;
IV – coordenar a definição de diretrizes e acompanhar o desenvolvimento, no âmbito do Poder Público federal, das iniciativas relacionadas à proteção da fauna e das ações executadas por órgãos e entidades envolvidos na proteção e defesa e na promoção dos direitos animais;
V – subsidiar tecnicamente a negociação e a implementação de compromissos e de acordos internacionais dos quais o País seja signatário em temas da proteção, da defesa e do bem-estar animal;
VI – identificar e apoiar a disseminação de boas práticas em temas de defesa da fauna doméstica, domesticada e selvagem e de garantia dos direitos animais;
VII – apoiar o planejamento, a organização e o acompanhamento da agenda ministerial, no âmbito de suas competências;
VIII – assistir tecnicamente aos órgãos colegiados na sua área de atuação;
IX – apoiar a mobilização das entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de políticas de proteção, defesa e direitos animais;
X – apoiar e subsidiar a criação de medidas protetivas da fauna doméstica, domesticada, selvagem e silvestre em situações de desastres naturais e grandes calamidades, com vistas ao resgate e à adequada alocação dos animais em situação de perigo e vulnerabilidade;
XI – promover a cultura de proteção, defesa e direitos animais;
XII – promover a educação e a prevenção para proteção e defesa de animais domésticos e domesticados e para a preservação da fauna nativa;
XIII – estabelecer medidas preventivas de defesa, proteção, bem-estar e direitos animais;
XIV – estimular a capacitação de recursos humanos para as ações de proteção, defesa, bem-estar e direitos animais;
XV – apoiar ações necessárias à prevenção e ao controle de espécies exóticas invasoras que colocam em risco a conservação da biodiversidade nativa;
XVI – apoiar órgãos públicos competentes na elaboração e implementação de políticas, programas ou projetos para promover o controle populacional ético de cães e gatos; e
XVII – propor normas relativas a:
a) bem-estar, proteção, defesa e direitos animais; e
b) implementação nacional dos acordos internacionais relativos aos assuntos de bem-estar, proteção e direitos animais."

Articulando as competências administrativas desses dois novos órgãos federais, pode-se concluir que as suas tarefas, no âmbito da promoção dos direitos animais, se consolidam de acordo com as seguintes funções:

(1) Função normativa: compete a esses órgãos elaborar as bases — no âmbito do Poder Executivo federal — da Política Nacional de Promoção dos Direitos Animais, propondo os textos dos atos normativos necessários para tanto, seja para o âmbito dos órgãos públicos federais (como Ibama, ICMBio, Conama, etc.), seja para o âmbito do Poder Legislativo federal, responsável por editar as leis federais correspondentes (cf. arts. 18, I, g e 20, I e XVII, alínea a). Isso significa que esses órgãos — especialmente o Departamento, que detém a competência específica para tanto — passam a se constituir como o principal centro de gestação das normas jurídicas de Direito Animal no Brasil, articulando-se para que a produção dessas normas jurídicas alcance certa unidade e coerência, dada a competência expressa para a promoção do diálogo interinstitucional e transfederativo para a construção de conjunto harmônico de atos normativos (cf. artigos 18, VI e 20, II, III, IV, VII, VIII e XVI), inclusive no plano internacional (cf. arts. 18, VI, VII e VIII e 20, III, V e XVII, alínea b).

Note-se que, demonstrando essa articulação integrada entre os novos órgãos públicos federais ambientais, objeto do Decreto 11.349/2023, competirá ao Departamento de Oceano e Gestão Costeira "promover programas de monitoramento do estado de conservação dos ecossistemas costeiros, em cooperação com a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais" (artigo 30, VI) e competirá ao Departamento de Gestão Compartilhada de Recursos Pesqueiros "elaborar políticas de gestão ambiental da atividade pesqueira, observados princípios e subsídios produzidos pela Secretaria de Biodiversidade, Florestas e Direito de Animais para a proteção dos ecossistemas, para a manutenção do equilíbrio ecológico e para a preservação da biodiversidade" (artigo 33, VI).

Desse feita, competirá ao Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais proceder ao diagnóstico e à revisão imediatos de toda a normativa federal infralegal que diga respeito, direta ou indiretamente, aos direitos animais, propondo manutenções, aperfeiçoamentos e revogações, tendo por parâmetros a regra constitucional da proibição da crueldade contra animais e os princípios do Direito Animal.

Dado o caráter transversal do Direito Animal e as competências expressas do Departamento para "elaborar, propor, acompanhar, analisar e avaliar políticas, elaborar e implementar programas e projetos destinados à proteção, à defesa, ao bem-estar e aos direitos animais" (artigo 20, I), para "apoiar o planejamento, a organização e o acompanhamento da agenda ministerial, no âmbito de suas competências" (artigo 20, VII) e para "assistir tecnicamente aos órgãos colegiados na sua área de atuação" (artigo 20, VIII), essa revisão geral dos atos normativos federais que afetem direitos animais deverá incluir as normativas produzidas por outros órgãos federais, para além do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, como, especialmente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Ainda dentro dessa atividade normativa revisora e retrospectiva, os novos órgãos federais animalistas deverão proceder ao levantamento dos projetos de lei, em tramitação no Congresso Nacional, que possam afetar, direta ou indiretamente, o estatuto de direitos animais, propondo a rejeição ou a aprovação de cada qual, sem que isso represente qualquer afronta à separação dos poderes. É importante que os parlamentares federais — senadores e deputados — tenham bem clara a posição dos órgãos federais incumbidos da elaboração e promoção da Política Nacional dos Direitos Animais. A posição desses órgãos é a posição do Poder Executivo federal, o que é relevante para o debate político respectivo.

Evidentemente, também uma atividade normativa prospectiva deverá ser gradualmente efetivada, com a proposição de novos atos normativos federais (no âmbito dos diversos órgãos que afetem animais, não apenas no Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática) e de novos projetos de lei federal, cogitando-se, nessa última seara, da elaboração de um Estatuto dos Animais, que possa uniformizar, em todo o território nacional, o regime jurídico dos direitos animais, trazendo segurança jurídica para a defesa dos animais em juízo.

Ainda dentro dessa função normativa dos novos órgãos federais, deve-se destacar, uma vez mais, a possibilidade de interlocução com os estados, o Distrito Federal e os municípios para que a produção normativa nesses entes federais observe as diretrizes gerais da Política Nacional dos Direitos Animais, na qual, expressamente, conterá o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos (cf. arts. 18, I, g e 20, I e XI).

(2) Função executiva: além de rever e propor normas jurídicas de Direito Animal, compete aos novos órgãos promover e realizar os direitos animais, efetivando, na prática, tais direitos. Para essa imprescindível tarefa são necessários os projetos, os programas e as demais medidas executivas referidos no arts. 18, II e III (no âmbito da Secretaria) e 20, I, IV, IX, X, XIII, XV e XVI (no âmbito do Departamento) do Decreto 11.349/2023.

Esses programas e projetos não precisam ser realizados exclusivamente pelos novos órgãos federais, podendo ser articulados com outros órgãos públicos federais, estaduais, distritais ou municipais, bem como com as entidades da sociedade civil que promovam a proteção e defesa dos direitos animais (cf. artigos 18, VI e 20, II, III, IV, V, IX, X e XVI), realizando o princípio da participação comunitária como princípio compartilhado do Direito Animal.

Nessa função executiva também se inclui a fiscalização e o controle da atividade dos outros órgãos públicos (em todos os âmbitos federativos, inclusive no próprio Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática) e das entidades da sociedade civil que afetem direitos animais, dado a expressa atribuição de competência avaliativa de políticas, programas e projetos, conforme artigos 18, III e 20, I do Decreto 11.349/2023.

(3) Função social e educativa: revela-se nítida a incorporação, pelo Decreto 11.349/2023, do princípio da educação animalista (ou animalitária), princípio típico do Direito Animal, ao prever uma série de competências educativas para a promoção da ética animal e do respeito aos direitos animais, além da formação de uma cultura pós-humanista de inclusão dos animais em nossa comunidade moral, como ferramenta de combate à violência e à opressão contra os animais.

Assim, o Departamento promove educação animalista ao "identificar e apoiar a disseminação de boas práticas em temas de defesa da fauna doméstica, domesticada e selvagem e de garantia dos direitos animais" (artigo 20, VI), ao "apoiar a mobilização das entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de políticas de proteção, defesa e direitos animais" (artigo 20, IX), ao "promover a cultura de proteção, defesa e direitos animais" (artigo 20, XI); ao "promover a educação e a prevenção para proteção e defesa de animais domésticos e domesticados e para a preservação da fauna nativa" (artigo 20, XII); ao "estabelecer medidas preventivas de defesa, proteção, bem-estar e direitos animais" (artigo 20, XIII); ao "estimular a capacitação de recursos humanos para as ações de proteção, defesa, bem-estar e direitos animais" (artigo 20, XIV); ao "apoiar ações necessárias à prevenção e ao controle de espécies exóticas invasoras que colocam em risco a conservação da biodiversidade nativa" (artigo 20, XV); e ao "apoiar órgãos públicos competentes na elaboração e implementação de políticas, programas ou projetos para promover o controle populacional ético de cães e gatos" (artigo 20, XVI).

4. Essas três funções principais — normativa, executiva e social/educativa, dos novos órgãos federais animalistas, que compõem a estrutura organizacional do novo Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, caso bem compreendidas e efetivadas, propiciarão, certamente, não apenas a consolidação definitiva do Direito Animal no Brasil (dada as consequências normativas, executivas e sociais das suas ações), mas, também, a formação de uma nova cultura de ética e respeito aos animais como sujeitos de direitos fundamentais e o progressivo melhoramento da qualidade de vida das diversas espécies animais, inclusive das ainda submetidas à exploração pecuária, pesqueira e científica.

 


[1] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor da Faculdade de Direito da UFPR, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

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