Opinião

Prescrição trabalhista da pretensão de parcelas de trato sucessivo não garantidas por lei

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17 de fevereiro de 2024, 7h16

Devido à natureza continuada do contrato de trabalho, a maioria das parcelas trabalhistas postuladas em juízo é de trato sucessivo. Esse tipo de parcela carrega um intrincado problema relativo à prescrição. O inadimplemento de uma parcela coloca o devedor à mercê da cobrança até quando? Até quando o devedor deve suportar a espada de Dâmocles?

O Tribunal Superior do Trabalho pacificou a controvérsia por meio da sua Súmula nº 294:

“PRESCRIÇÃO. ALTERAÇÃO CONTRATUAL. TRABALHADOR URBANO.
Tratando-se de ação que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei.”

A premissa da qual partiu o TST foi diferenciar duas situações: a alteração do pactuado e o seu descumprimento.

Casos
No primeiro caso, alteração do pactuado, a violação ao direito nasce por ato único do empregador. Se o empregador altera o ajuste, de modo a excluir um direito do trabalhador, aí, no entendimento do TST, nasce a pretensão. E, logo, é daí que se conta o prazo prescricional. Expirado o prazo no momento do ajuizamento da ação, o crédito estará prescrito.

No segundo caso, descumprimento, não há um ato único do empregador, mas sucessivos atos de inadimplemento, pois o ajuste entre as partes impõe o pagamento de parcela que o empregador sonega. Neste caso, a prescrição conta-se a partir de cada mês em que o empregador deixar de adimplir a parcela.

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Todo esse raciocínio pressupõe, como a parte final da Súmula deixa ver, que a parcela postulada em juízo não esteja assegurada por preceito de lei.

Assim, se o empregador deixa de pagar uma bonificação prevista em um regulamento interno da empresa — anuênios, por exemplo — que não tenha previsão legal, então é preciso perguntar-se: esse inadimplemento decorreu de uma alteração do pactuado ou de um puro e simples descumprimento?

Diferente seria o caso se a parcela em questão estivesse, também, assegurada em preceito de lei. Assim, se o empregador deixa de pagar horas extras ou adicional de insalubridade, por exemplo, pouco importa se o fez com base em alteração de norma interna, suprimindo o direito, porque a sua fruição estaria assegurada ao trabalhador também em preceito legal.

Lei nº 13.467/2017
Ocorre que a Lei nº 13.467/2017 acrescentou parágrafo segundo ao artigo 11 da CLT a regulamentar a prescrição total no caso de prestações sucessivas.

A redação é assombrosamente similar à da Súmula nº 294 do TST. Diferencia-se, porém, ao fazer incidir a prescrição total não apenas em caso de alteração mas, também, de descumprimento do pactuado, no caso de prestações sucessivas relativas a parcelas que não estejam asseguradas também por preceito de lei.

Eis a redação:

“§ 2º Tratando-se de pretensão que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração ou descumprimento do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei.”

Os anuênios do BB
A controvérsia ocorre, por exemplo, na postulação de anuênios de empregados do Banco do Brasil (um dos maiores “clientes” da Justiça do Trabalho).

Segundo a atual, iterativa e notória jurisprudência do TST, a pretensão relativa à supressão de anuênios do Banco do Brasil está sujeita à prescrição parcial.

Nesse sentido: E-ED-RR-673-23.2013.5.03.0068, SBDI-1, relator ministro: Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 05/03/2021; E-ED-ARR-3371-03.2013.5.12.0019, SBDI-1, relatora ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 05/05/2023; E-ED-ARR – 252-43.2010.5.09.0659, SBDI-1, DEJT 03/03/2017; AgR-E-ED-RR – 91700-35.2007.5.05.0006, SBDI-1, DEJT 7.10.2016; E-RR – 830300-76.2007.5.09.0005, SBDI-1, DEJT 24.6.2016; E-ED-RR – 1172800-17.2008.5.09.0016, SBDI-1, DEJT 20.5.2016; E-ED-RR – 658600-97.2008.5.09.0651, SBDI-1, DEJT 6.5.2016; E-RR – 310000-17.2009.5.12.0032, SBDI-1, DEJT 11.3.2016; Ag-E-ED-RR – 3229200-86.2009.5.09.0014, relator ministro: Márcio Eurico Vitral Amaro, SBDI-1, DEJT 11/10/2018; E-ED-RR-491-78.2010.5.09.0002, SBDI-1, relator ministro: Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 22/11/2019; AgR-E-ARR-2193100-86.2008.5.09.0014, SBDI-1, relator ministro: Breno Medeiros, DEJT 29/05/2020; RR-20036-91.2017.5.04.0661, 1ª Turma, relator ministro: Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 09/02/2024; RRAg-580-57.2017.5.19.0009, 3ª Turma, relator ministro: Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 27/10/2023; Ag-AIRR-1123-69.2018.5.10.0011, 5ª Turma, relator ministro: Breno Medeiros, DEJT 07/12/2023; EDCiv-RRAg-101110-36.2020.5.01.0342, 6ª Turma, relatora ministra: Katia Magalhaes Arruda, DEJT 10/11/2023; RR-10004-54.2011.5.04.0332, 7ª Turma, relator ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 19/12/2019; Ag-AIRR-131528-50.2015.5.13.0001, 7ª Turma, relator ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 15/12/2023.

Segundo os precedentes acima indicados, o fundamento para esse entendimento é que os anuênios do Banco do Brasil foram previstos, inicialmente, em norma interna do banco, incorporando-se ao contrato de trabalho daqueles empregados admitidos durante a sua vigência. Assim, a posterior previsão em norma coletiva e a subsequente exclusão da parcela não alcançou tais empregados, pois isso configuraria alteração contratual lesiva.

Desse modo, ao deixar de pagar os anuênios para os empregados admitidos na vigência das normas internas do banco que previam o seu pagamento, o inadimplemento não decorre, no entendimento acima demonstrado, de ato único do empregador, não se tratando de alteração do pactuado, mas de descumprimento.

Ora, considerando que os anuênios pagos aos empregados do Banco do Brasil não estão assegurados por preceito de lei, não obstante a remansosa jurisprudência do TST acima demonstrada, a inovação legislativa em sentido contrário causa severa insegurança jurídica, por controverter a ratio desta e daquela.

Nenhum dos precedentes do TST acima indicados enfrentou expressamente a inovação legislativa, não tendo sido identificada posição consolidada quanto a essa matéria de fundo à luz desse novo dispositivo legal.

Com efeito, já há uma decisão pontual, proferida pela 1ª Turma daquele Tribunal Superior considerando aplicável o novo artigo 11, § 2º, da CLT, para a matéria envolvendo o pagamento de anuênios do Banco do Brasil.

Entretanto, a Turma modulou temporalmente o entendimento, por segurança jurídica, de modo a preservar não apenas os fatos geradores ocorridos antes da vigência da nova Lei, mas, também, aqueles ocorridos dentro do quinquídio posterior.

Dito de outro modo, a 1ª Turma considerou, nessa recente decisão, que o entendimento consagrado acerca da prescrição parcial de anuênios do Banco do Brasil somente é aplicável para fatos geradores ocorridos nos cinco anos contados a partir da entrada em vigor da Lei n. 13.467/2017, cujo termo se encerraria em 11/11/2022.

Eis a elucidativa ementa da decisão:

“(…) PRESCRIÇÃO QUINQUENAL TOTAL. ANUÊNIOS. PARCELA PREVISTA EM NORMA INTERNA QUE SE INCORPOROU AO CONTRATO DE TRABALHO. DESCUMPRIMENTO DO PACTUADO. AÇÃO PROPOSTA NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. PRESCRIÇÃO PREVISTA NO § 2º DO ART. 11 DA CLT. INAPLICABILIDADE EM RELAÇÃO ÀS PARCELAS TRABALHISTAS EXIGÍVEIS ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. SEGURANÇA JURÍDICA. 1. O Tribunal de origem entendeu que a pretensão de pagamento da parcela anuênios está fulminada pela prescrição total, nos termos da Súmula 294 do TST e do art. 11, § 2º, da CLT. 2 . O entendimento desta Corte era no sentido de que aplicável a prescrição parcial à pretensão ao pagamento de diferenças salariais decorrentes da supressão dos anuênios – previstos inicialmente em regulamento interno e, posteriormente, em norma coletiva -, pois o direito ao seu recebimento aderiu ao contrato de trabalho, cuidando-se, na espécie, de descumprimento e não de alteração do pactuado. 3. Contudo, o legislador inovou por meio da Lei 13.467/17, em vigor a partir de 11 de novembro de 2017, que introduziu o § 2º no art. 11 da CLT, cuja redação é no sentido de que: “Tratando-se de pretensão que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração ou descumprimento do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei”. Passou-se, portanto, a se aplicar a prescrição parcial apenas nos casos em que a parcela pleiteada, que tenha sofrido alteração ou não tenha sido observada nos termos pactuados, esteja também assegurada por preceito de lei, o que não é a hipótese dos anuênios em questão. 4 . Por outro lado, não se pode admitir que a alteração legislativa colha de surpresa as partes, fulminando por complemento a pretensão. Com efeito, havia legítima expectativa quanto à aplicação da prescrição quinquenal parcial, conforme jurisprudência pacífica desta Corte Superior. 5. Há que se privilegiar a segurança jurídica, de modo que a prescrição total, prevista na novel legislação, não deve ser aplicada às parcelas trabalhistas exigíveis antes da vigência da Lei 13.467/2.017. 6. Utilizando-se do mesmo parâmetro adotado pela jurisprudência desta Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal em situações análogas, não incide a prescrição total em relação aos fatos geradores ocorridos nos cinco anos contatos a partir da entrada em vigor da Lei 13.467/2017, cujo termo se encerraria em 11/11/2022, portanto, em data posterior à propositura da presente reclamação (21/09/2021). Recurso de revista, integralmente, conhecido e provido” (RR-10771-23.2021.5.18.0051, 1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 01/12/2023).

Em minuciosa pesquisa na jurisprudência do TST em busca da interpretação dada ao disposto no novo artigo 11, § 2º, da CLT, em confronto com a sua Súmula nº 294, somente escassas decisões foram encontradas.

Na mais importante delas, a SbDI1, já há alguns anos, assentou que a nova regra “não se aplica às pretensões de parcelas contratuais trabalhista exigíveis antes da sua vigência, ou seja, 11/11/2017, até mesmo pelo fato de consagrar tratamento mais perverso ao trabalhador” (Processo: ED-E-ED-ARR – 3624- 05.2011.5.12.0037 Data de Julgamento: 24/05/2018, relator ministro: José Roberto Freire Pimenta, SBDI-1, data de publicação: DEJT 01/06/2018).

A 6ª Turma do TST, sob relatoria da ministra Kátia Arruda, também já decidiu nesse sentido:

“(…) Ressalte-se que a pretensão em torno da qual se discute a prescrição diz respeito a fatos anteriores à vigência da Lei nº 13.467/2017, de modo que se revela inaplicável ao caso o artigo 11, § 2º, da CLT. (…)” (RRAg-17-88.2020.5.07.0010, 6ª Turma, relatora ministra: Katia Magalhaes Arruda , DEJT 12/11/2021)

A ministra já decidiu, com a mesma fundamentação, em outras duas oportunidades, monocraticamente: AIRR – 24634-22.2021.5.24.0005, relatora: Katia Magalhaes Arruda (decisão monocrática) — Publicação: 29/11/2023; RRAg – 1107-44.2019.5.07.0018, relatora: Katia Magalhaes Arruda (decisão monocrática) – Publicação: 17/11/2023.

Também monocraticamente, em recentíssima decisão, tendo como matéria fundo exatamente a prescrição dos anuênios do Banco do Brasil –, decidiu o desembargador convocado José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza pela não aplicação do novo § 2º, pois os fatos em causa eram anteriores à sua vigência: RR – 1000772-64.2021.5.02.0054, relator: Jose Pedro de Camargo Rodrigues de Souza, decisão monocrática, Publicação: 14/02/2024.

Por oportuno, observa-se a possível incidência do artigo 916 da CLT na solução da controvérsia, como já fez ver a SbDI2 do TST ao julgar o segundo dos três únicos precedentes de decisão colegiada identificados que enfrentavam a questão envolvendo a aplicação do novo artigo 11, § 2º, da CLT, embora em contexto material e processual bastante distinto da matéria de fundo ora analisada (ROT-316-08.2020.5.21.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, relatora ministra Delaide Alves Miranda Arantes, DEJT 07/05/2021).

Conclusão
Portanto, não há dúvida de que a inclusão do § 2º ao artigo 11 da CLT, equiparando “alteração” a “descumprimento” para fins de incidência de prescrição, controverte o entendimento consagrado pelo E. TST na sua Súmula n. 294, a qual fundamenta o entendimento consolidado no TST acerca da prescrição de anuênios do Banco do Brasil.

Tal insegurança pode ser afastada com o seu expresso enfrentamento pelo Tribunal Superior do Trabalho, seja pela adaptação do entendimento consagrado, excepcionando-se hipóteses do novel dispositivo legal, seja pela incorporação da lei em sentido contrário e alteração do sentido sumulado.

Esse enfrentamento deve, preferencialmente, vir por meio dos instrumentos de estabelecimento de precedentes qualificados (v.g. incidente de recursos repetitivos, incidente de resolução de demanda repetitiva), dado o seu caráter vinculativo e, logo, com enorme potencial uniformizador – desde que, obviamente, bem manejados, com o devido cuidado na redação da tese a ser formulada.

Por fim, a despeito do impacto gigantesco na seara trabalhista, vale lembrar que a contradição entre a Súmula nº 294 do TST e o novo artigo 11, § 2º, da CLT é apenas um de muitos causados pelo atrito de regras e princípios incorporados pela Lei n. 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista) e entendimentos consagrados em diversos âmbitos no TST – jurisprudência consolidada, Orientações Jurisprudenciais e Súmulas.

A solução da severa insegurança jurídica causada por tais contradições urge.

Vale lembrar, por fim, que essa controvérsia está inserida em outra, talvez ainda mais agigantada, a da aplicação das alterações decorrentes da Lei nº 13.467/2017 aos contratos celebrados antes do início da sua vigência, a qual é objeto de Incidente de Recurso Repetitivo suscitado perante o TST, o IRR nº 23 (IncJulgRREmbRep – 528-80.2018.5.14.0004), pendente de julgamento.

Como dizem os antigos, que venha com saúde e em boa hora!

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