Opinião

O ressarcimento de despesas feitas antes da fixação da pensão alimentícia

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14 de fevereiro de 2024, 6h32

Em matéria de obrigação alimentar, habitual ouvirmos ou lermos histórias que, além de entristecer-nos, demonstram como são profundamente complexas as relações familiares e o quão materialista é o ser humano, em muitas situações práticas da vida, mesmo em relação àqueles que deveriam ser acolhidos e cuidados em razão do vínculo familiar sanguíneo e/ou afetivo.

No âmbito legal, o dever de prestar alimentos tem origem no vínculo de parentesco, casamento ou união estável, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana e o dever de solidariedade familiar, compreendendo tais alimentos, conforme dispõe o artigo 1.694, §1º, do Código Civil, as despesas pertinentes à manutenção de uma vida digna, cujas necessidades básicas são, a título de exemplos: alimentação, vestuário, moradia, assistência médica, educação, atividades de lazer, transporte, conectividade, etc.

No entanto, a fixação de alimentos em juízo, mesmo que provisoriamente, e a sua exigibilidade a partir da citação, por vezes, demanda excessivo lapso temporal, a começar pela realidade de que, em muitos casos, o(a) genitor(a) acionado intencionalmente se esquiva desse ato processual de chamamento ao processo (citação) na expectativa de retardar o início da obrigação alimentar; sem contar, ademais, a dificuldade correspondente à definição, logo no princípio da ação de alimentos, do quantum devido para a manutenção digna do alimentando (quem tem direito a receber alimentos), a real possibilidade financeira do alimentante e a proporcionalidade (elemento variável), o que se denominou na doutrina especializada como trinômio alimentar da “necessidade x possibilidade x proporcionalidade”.

As despesas pré-pensão
Ocorre que, nessa fase pré-pensão, ou seja, até a fixação dos alimentos provisórios e a efetiva citação do alimentante (quem tem o dever de pagar alimentos), quando passará a ser exigível a pensão alimentícia, como ainda defende a maior parcela dos juristas à luz do texto do § 2º do artigo 13 da Lei de Alimentos (em sentido contrário, por exemplo, é o posicionamento da professora Maria Berenice Dias, que entende serem exigíveis os alimentos provisórios antes mesmo da citação [1]), diversas são as despesas pertinentes à criação e manutenção do alimentando, as quais não esperam o futuro respaldo da pensão alimentícia, porquanto voltadas ao atendimento imediato das necessidades prementes da pessoa, ou seja, realidade essa que acaba por se impor independentemente do ritmo de tramitação da ação de alimentos.

O que dizem a Constituição e o ECA?
Especialmente em tempos no qual a lei, a doutrina e a jurisprudência ressaltam a igualdade entre os genitores à luz do Princípio da Isonomia (artigo 226, §5º, CF), oportuno lembrar que as despesas oriundas da manutenção dos filhos são de responsabilidade de ambos os pais, nos moldes do artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

“Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.”

No mesmo sentido é o texto constitucional ao dispor sobre os direitos e deveres decorrentes do poder familiar, o que pode ser visto no artigo 227, in verbis:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

De tal modo, seja à luz do texto constitucional ou da norma infraconstitucional, como dispõem também os artigos 1.631 e 1.634, inciso I, ambos do Código Civil [2], resta evidente a reciprocidade dos pais quanto à assistência material de seus filhos, sem prejuízo dos demais deveres inerentes à criação (educação, afeto, orientação religiosa, etc.).

Vida real e a exigência do ressarcimento
Todavia, no exercício da advocacia, acompanhamos, com frequência, cônjuges ou companheiros que suportam sozinhos as despesas do filho comum na hipótese de rompimento conjugal ou dissolução da união estável, não aplicando-se, na prática, a solidariedade disposta no texto legal.

Dito isso, poderia o(a) genitor(a) que reside com o alimentando e que contribuiu sozinho com as despesas da prole, enquanto não fixados e devidos os alimentos, exigir o ressarcimento de parte desses valores em face do(a) genitor(a) ausente?

Como bem observa a jurisprudência [3], embora a natureza da respectiva despesa seja alimentar, a tutela jurisdicional buscada, a bem da verdade, corresponde a uma indenização, uma vez que esse tipo de despesa deveria ser suportada por ambos os pais, definindo o Código Civil como verdadeira gestão de negócio alheio, nos termos do artigo 871, in verbis:

“Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato.”

Visão do especialista
Segundo o festejado professor Rodrigo da Cunha Pereira, demonstrado o dever jurídico ou moral da obrigação, possível será exigir tal reembolso, conforme se depreende do texto abaixo:

“A ação de reembolso é uma ação ordinária para pedir o reembolso das despesas que foram pagas no lugar de quem deveria fazê-lo, por obrigação moral ou jurídica, e não o fez. Pode ser chamada também de ação de ressarcimento. O caso mais comum, e autorizador, de tal ressarcimento é quando a mãe paga todas as despesas do filho, e o pai, que deveria fazê-lo, se omite, como, por exemplo, nas seguintes situações: fixados os alimentos judicialmente, eles nascem da data da citação. No período anterior, o pai tinha a obrigação moral de contribuir para o sustento e não o faz. E não há como executá-lo por este período anterior. A quantia buscada na ação de reembolso se encontra no passado, tendo, por isso, seu limite na prescrição ou na data em que tinham sido feitas as primeiras despesas com o filho, ao passo que a quantia perseguida na ação de alimentos se encontra no futuro, não tendo, por isso, limite pré-definido, pois os alimentos não cessam automaticamente com a maioridade, especialmente quando a necessidade do alimentando persistir em decorrência da impossibilidade de provar seu próprio sustento (CC art. 1.694. STJ, Súmula 358).” [4]

Enriquecimento sem causa
Outrossim, não obstante a solidariedade dos pais disposta na legislação pátria, especialmente no que tange à criação e educação dos filhos, a tese de ressarcimento em questão ainda encontra amparo jurídico na proibição do enriquecimento sem causa, disposto no artigo 884 do Código Civil:

“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

Procedimento e prazo prescricional
Nesse sentido, caberá então ao genitor(a) que suportou, exclusivamente, as despesas do filho comum, anteriormente à fixação e exigibilidade dos alimentos — obrigação essa, de sustento, que também era do outro genitor(a) —, ajuizar ação pleiteando o ressarcimento de tais valores na proporção que lhe competia (metade), observado o disposto no artigo 283 do Código Civil, bastando para tanto a prova dos respectivos pagamentos de tais despesas com a prole, como recibos, notas fiscais, comprovantes, entre outros.

Remanesce, também, dúvida quanto ao prazo prescricional daquele genitor(a) que reside com o alimentando, e contribuiu sozinho com as despesas da prole antes da fixação e exigibilidade de pensão alimentícia, quanto ao pedido de ressarcimento em face do(a) genitor(a) ausente.

Segundo majoritária jurisprudência, sendo a pretensão de reembolso de natureza pessoal, a despeito de sua característica alimentar, aplica-se ao caso o prazo prescricional de dez anos previsto no artigo 205 do Código Civil, haja vista a ausência de disposição legal expressa.

Vale dizer que o entendimento não é novidade na jurisprudência, o que pode ser visto em julgado da Corte Superior, no qual o ministro Luis Felipe Salomão destaca a obrigação solidária dos pais a prestarem alimentos e a previsão expressa da legislação civil à hipótese:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. INADIMPLEMENTO. GENITORA QUE ASSUME OS ENCARGOS QUE ERAM DE RESPONSABILIDADE DO PAI. CARACTERIZAÇÃO DA GESTÃO DE NEGÓCIOS. ART. 871 DO CC. SUB-ROGAÇÃO AFASTADA. REEMBOLSO DO CRÉDITO. NATUREZA PESSOAL. PRESCRIÇÃO. PRAZO GERAL DO ART. 205 DO CC.

  1. Segundo o art. 871 do CC, ‘quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato’.

  2. A razão de ser do instituto, notadamente por afastar eventual necessidade de concordância do devedor, é conferir a máxima proteção ao alimentário e, ao mesmo tempo, garantir àqueles que prestam socorro o direito de reembolso pelas despesas despendidas, evitando o enriquecimento sem causa do devedor de alimentos. Nessas situações, não há falar em sub-rogação, haja vista que o credor não pode ser considerado terceiro interessado, não podendo ser futuramente obrigado na quitação do débito.

  3. Na hipótese, a recorrente ajuizou ação de cobrança pleiteando o reembolso dos valores despendidos para o custeio de despesas de primeira necessidade de seus filhos – plano de saúde, despesas dentárias, mensalidades e materiais escolares –, que eram de inteira responsabilidade do pai, conforme sentença revisional de alimentos. Reconhecida a incidência da gestão de negócios, deve-se ter, com relação ao reembolso de valores, o tratamento conferido ao terceiro não interessado, notadamente por não haver sub-rogação, nos termos do art. 305 do CC.

  4. Assim, tendo-se em conta que a pretensão do terceiro ao reembolso de seu crédito tem natureza pessoal (não se situando no âmbito do direito de família), de que se trata de terceiro não interessado – gestor de negócios sui generis –, bem como afastados eventuais argumentos de exoneração do devedor que poderiam elidir a pretensão material originária, não se tem como reconhecer a prescrição no presente caso.

  5. Isso porque a prescrição a incidir na espécie não é a prevista no art. 206, § 2º, do Código Civil – 2 (dois) anos para a pretensão de cobrança de prestações alimentares –, mas a regra geral prevista no caput do dispositivo, segundo a qual a prescrição ocorre em 10 (dez) anos quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

  6. Recurso especial provido.” (REsp nº 1453838 / SP – 4ª Turma – min. rel. Luis Felipe Salomão – j. 24/11/2015)

Competência
Por fim, ainda guarda controvérsia a competência para o processamento e julgamento da respectiva ação, haja vista as características das despesas a serem ressarcidas. Analisando a origem da dívida, defende o professor Rodrigo da Cunha Pereira que a matéria é afeta à Vara da Família e Sucessões, in verbis:

“A competência para processamento e julgamento de tal ação é da vara de família. E como sua natureza é condenatória/indenizatória, o prazo prescricional, diferentemente das ações de alimentos que são imprescritíveis, é de dez anos (art. 205 CCB). O rito é o especial das Ações de Família (CPC 693 e segs.) e, diferentemente das ações de alimentos de menores de idade, em que as despesas são presumidas, os valores reembolsáveis devem ser demonstrados e provados. Não é necessária a intervenção do Ministério Público, como acontece nas Ações de Alimentos.” [5]

Respeitada a posição do ilustre advogado, doutrinador e professor, ousamos discordar de tal entendimento, filiando-nos à corrente jurisprudencial contemporânea que defende a natureza meramente obrigacional e patrimonial das despesas pré-pensão, sem qualquer reflexo em questões atinentes ao direito de família, a despeito da característica dessas despesas, oriundas da assistência material da prole comum. Dessa forma, cumpre-nos transcrever julgado estadual que demonstra a competência do Juízo da Vara Cível, haja vista a expressa previsão do direito ora analisado na lei civil, a servir de fundamento para o pedido indenizatório:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – Ação de cobrança lastreada nos arts. 186 e 389 do CC – Ação proposta perante o juízo cível – Declinação da competência em razão da matéria veiculada – Alegação de caracterização de sub-rogação de obrigação alimentícia – Instituto que não desclassifica a natureza original da obrigação – Alegação de que a questão discutida no feito permanece afeta ao direito de família – Descabimento – Ação que visa o ressarcimento pelos prejuízos suportados em razão da omissão do genitor em custear os estudos do filho – Obrigação assumida em acordo de pensão alimentícia – Prestações prescritas que não foram incluídas na ação de execução de alimentos – Pedido meramente indenizatório sem sub-rogação da dívida – Matéria de natureza patrimonial e obrigacional – Ausentes reflexos na questão relativa à obrigação alimentícia, a habilitar a competência da especializada, nos termos do art. 37, I, do CJ – Situação expressamente definida como gestão de negócio alheio, a ensejar pedido de ressarcimento, não caracterizando sub-rogação de dívida – Inteligência do art. 871 do CC – Competência das Varas Cíveis, segundo o que dispõe o art. 34, I, do DL 03/69 – Conflito acolhido – Competente o suscitado (7ª Vara Cível da Comarca de Campinas).” (Conflito de competência cível nº 0014399-39.2020.8.26.0000 – Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo – des. rel. Renato Genzani Filho – j. 20/5/2020)

Conclusão
Por óbvio, o presente artigo não pretende exaurir o tema, mas sim instaurar o debate a seu respeito, bem como destacar a importância do direito de ressarcimento daquele genitor(a) que suportou exclusivamente o ônus de sustento da prole antes da fixação e exigibilidade da obrigação alimentar, direito esse o qual se entende ser essencial, diante do seu caráter humanitário.

Em nossa opinião, a observância do arcabouço legal apontado e a aplicação concreta do direito, por consequência, respeita o princípio da isonomia e fomenta a dignidade da pessoa humana, equalizando os interesses das partes que compõe a relação jurídica sob enfoque.


[1] DIAS, Maria Berenice. A Exigibilidade da Obrigação Alimentar. Disponível em: https://berenicedias.com.br/a-exigibilidade-da-obrigacao-alimentar/. Acesso em: 7 de fevereiro de 2024.

[2] Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:

I – dirigir-lhes a criação e a educação;

[3] Apelação Cível nº 1009480-70.2019.8.26.0114 – 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – Des. Rel. José Carlos Ferreira Alves – j. 25.05.2021.

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, fl. 343.

[5] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, fl. 344.

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