Opinião

A PEC nº 50/2023 e as respostas (in)constitucionais a mutações inconstitucionais

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11 de fevereiro de 2024, 11h14

Neste momento, tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 50/2023, a qual tem como objeto, conforme sua ementa, “estabelecer competência ao Congresso Nacional para sustar, por maioria qualificada dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado, que extrapole os limites constitucionais”.

Tal proposição, mesmo que sob uma ótica superficial de seu texto, se mostra inconstitucional, em flagrante violação à separação de Poderes, cláusula pétrea insculpida na Carta Magna em seus artigos 60, §4º, III, e 2º, sendo um evidente esforço do Poder Legislativo de interferir subjetivamente e ilegitimamente na atividade jurisdicional.

Nesse sentido, tais dispositivos exprimem o estado de independência e harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo tal fator essencial para a preservação da democracia no Brasil, já que esta pressupõe pluralidade de ideias e de detentores de poder, com a respectiva divisão do exercício deste, sob pena de se criar um sistema tirânico e déspota.

Em complemento, ainda que se repudie tais tentativas inconstitucionais de interferência e desmonte do Poder Judiciário, há que se indagar os fatores que levaram os parlamentares a intensificarem uma frente legislativa contra o Poder Judiciário, como se observa não só da PEC referenciada anteriormente, mas também da PEC nº 8/2021, já aprovada no Plenário do Senado Federal ¹ e que limita algumas competências dos tribunais na sua atividade jurisdicional.

Mutações (in)constitucionais
Nessa perspectiva, cabe tratar das mutações constitucionais, ou seja, conforme aduz Anna Cândida Ferraz, dos processos informais de mudança no sentido, no alcance e no significado da Constituição, sem violar sua letra ou seu espírito ².

Assim, se as mutações constitucionais são aquelas que estão em harmonia com o sistema constitucional, as “mutações inconstitucionais”, a contrario sensu, ofendem a Carta Magna, seja extrapolando seus limites de interpretação, seja violando o conjunto constitucional enquanto um todo ³.

Nesse contexto, ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal foi palco de alguns exemplos de mutações inconstitucionais, sendo possível citar dois que afetaram diretamente o Poder Legislativo: os casos da infidelidade partidária (Mandados de Segurança 26.602-3/DF 4, 26.603-1/DF 5 e 26.604-0/DF 6) e da abstrativização do controle concreto (ADI nº 3.406/RJ 7).

No primeiro caso, a corte entendeu que o abandono de partido político pelo parlamentar eleito de maneira proporcional gera a perda do mandato, com exceção de casos específicos, tais como alterações na ideologia do partido ou perseguições políticas.

Já na segunda situação, o STF declarou, em sede de controle incidental, a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei nº 9.055/95 e conferiu efeitos erga omnes e vinculante à sua decisão antes de qualquer envio ao Senado, realizando uma releitura do artigo 52, X, da Carta Política.

Assim, ambos os julgamentos padecem de respaldo constitucional, extrapolando os limites semânticos e os princípios da Carta da República. Nesse particular, conforme observa Paulo Henrique Lêdo Peixoto 8, a Constituição de 1969, em seu artigo 35, V, apresentava a hipótese de infidelidade como causa expressa de perda de mandato parlamentar, de forma que se mostra evidente a escolha do constituinte originário pela não inclusão de tal circunstância no rol do artigo 55 da Constituição de 1988, o qual, por ser norma restritiva de direitos, deve ter interpretação taxativa, segundo a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal — vide Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 451.078-6/RJ9 —, e não exemplificativa, como entendeu o tribunal ao considerar incorretamente a ocorrência de mutação constitucional.

Ademais, com relação ao artigo 52, X, da Constituição, este apresenta, claramente, uma competência privativa do Senado: suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF em sede de controle incidental de constitucionalidade.

Entretanto, ao conferir efeitos erga omnes e vinculante à declaração incidental de constitucionalidade na ADI nº 3.406/RJ, a corte considerou que o dispositivo apresentava um rito meramente formal por parte do Senado, de modo que este foi colocado na posição de Diário Oficial da decisão do Tribunal Supremo, nos termos do voto do ministro Marco Aurélio na referida ação.

Limites desrespeitados pelo STF
Dessa forma, verifica-se que os limites interpretativos e semânticos dos dispositivos constitucionais mencionados não foram respeitados, violando-se seus sentidos gramaticais, históricos e teleológicos 10.

Além disso, tais julgamentos feriram a Carta Magna enquanto sistema, na medida em que desrespeitaram o princípio da separação de Poderes e o princípio democrático ao interferir no funcionamento do Poder Legislativo — o qual tem seus membros eleitos democraticamente como representantes do povo, nos termos do artigo 1º, parágrafo único —, criando hipóteses de perda de mandato dos deputados não previstas anteriormente e restringindo competências do Senado, medidas que só poderiam ser tomadas por PEC, tendo em vista a natureza dos dispositivos.

Efeito backlash e “diálogos constitucionais”
Outrossim, anos após as publicações dos julgamentos referenciados, o Congresso Nacional buscou contornar as condições estabelecidas judicialmente, de maneira que encontrou solução em sua principal função: legislar.

Nesse sentido, em 2016, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 91/2016 11, a qual permitiu a desfiliação partidária dos parlamentares nos 30 dias seguintes à sua promulgação, sem que tal feito acarretasse perda do mandato ou qualquer sanção ao detentor de mandato eletivo. Na mesma linha, se fazem presentes as já citadas PEC nº 8/2021 e PEC nº 50/2023, num esforço de reagir à interferência do STF no Legislativo por meio da interferência do Congresso no Poder Judiciário.

Apesar de nem todos os casos citados constituírem inconstitucionalidades, estas podem vir a ocorrer, como é o caso da PEC nº 50/2023 e, talvez, da PEC nº 8/2021, esta passível de maior debate.

Nessa seara, resta evidente o efeito backlash envolvido na relação entre os Poderes supracitados, ou seja, a reação do poder político a pretensões controladoras do Poder Judiciário 12, o que é natural e esperado em um país com instituições plurais e complexas como o Brasil. Isso posto, os chamados “diálogos constitucionais” — na expressão traduzida por Rodrigo Brandão 13 da obra de Peter Hogg e Allison Bushell 14 — não são necessariamente negativos, sendo, simplesmente ações legislativas que representam respostas conscientes do Poder Legislativo a entendimentos das cortes judiciais 15, o que é bem-vindo numa democracia como a brasileira, que pressupõe a harmonia e a independência entre os Poderes, na medida em que, por vezes, um precisa se posicionar frente ao outro para preservar a sua autonomia.

Autoritarismo e sobreposição de competências
A problemática ocorre quando as respostas institucionais deixam de ser uma defesa constitucional da posição e da função de determinado poder para se tornarem meios de autoritarismo e de sobreposição de controle e de competências.

De um lado, há um Congresso, muitas vezes, moroso, que se omite no momento de produzir legislações pertinentes, fato que leva o Poder Judiciário a assumir um papel que não lhe pertence para lidar com situações que urgem ser solucionadas 16, ultrapassando, eventualmente, seus limites.

De outro, um Supremo que ruma à supremacia judicial, ruminando a ideia de que sua interpretação da Lei Maior é definitiva 17, ao menos, em questões de grande repercussão 18, fator que impulsiona o Congresso a reafirmar a sua posição como participante da discussão constitucional, violando, em certos casos, o próprio sistema que se propõe a defender.

Desse modo, produz-se uma fórmula de respostas institucionais, pela qual um Poder provoca o outro com a sua respectiva inconstitucionalidade e este retribui da mesma forma, sendo motivados por uma reafirmação de seu “status institucional”, e não pela letra da Constituição.

Nesse sentido, novos capítulos desse longo diálogo estão para se desenrolar — vide as questões do marco temporal indígena 19 e da legalização das drogas 20, a primeira já decidida e a segunda prestes a ser julgada pelo STF — e o que se almeja é que o Congresso e a Corte Suprema brasileira não tratem o cenário institucional do Brasil como uma competição de forças ou de habilidades, mas como uma oportunidade de tomarem, cada um, as melhores decisões, ações e interpretações para que, independentemente de qual prevaleça, ganhe a Constituição e, consequentemente, o povo brasileiro.

 


Referências

  1. SENADO aprova PEC que limita decisões monocráticas do STF; pauta segue para a Câmara. Consultor Jurídico, [s.l.], 22 nov. 2023. Disponível em: <Senado aprova PEC que limita decisões monocráticas do STF; texto vai à Câmara (conjur.com.br)>. Acesso em: 02 fev. 2024.
  2. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. 1. ed. São Paulo: Max Limonad, 1986. 269 p., p. 9 e 10.
  3. Ibidem, p. 10 e 11.
  4.  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança nº 26.602-3. Relator: Ministro Eros Grau. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 17 out. 2008. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=555539>. Acesso em: 18 set. 2023.
  5.  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança nº 26.603-1. Relator: Ministro Celso de Mello. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 17 out. 2008. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570121>. Acesso em: 18 set. 2023.
  6.   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança nº 26.604-0. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 03 out. 2008. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=552057>. Acesso em: 18 set. 2023.
  7.   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 3.406. Relator: Ministra Rosa Weber. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 01 fev. 2019. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339388321&ext=.pdf>. Acesso em: 22 set. 2023.
  8. PEIXOTO, Paulo Henrique L. A Mutação Constitucional e o Supremo Tribunal Federal: Interpretação e Aplicação das Normas Constitucionais. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. 144 p., p. 100. E-book. ISBN 9786555597882. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555597882/>. Acesso em: 02 fev. 2024.
  9. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 451.078-6. Relator: Ministro Eros Grau. Diário de Justiça da União. Brasília, 24 set. 2004. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=314527>. Acesso em: 02 fev. 2024.
  10. MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. Barueri: Atlas, 2022. 816 p., p. 130. E-book. ISBN 9786559772827. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559772827/>. Acesso em: 02 fev. 2024.
  11. PROMULGADA emenda que abre “janela” para troca de partido. Agência Senado, Brasília, 18 fev. 2016. Disponível em: <Promulgada emenda que abre “janela” para troca de partido — Senado Notícias>. Acesso em: 05 fev. 2024.
  12. THEODORO, Maria Cecília. Art. 7º, XX. In: CANOTILHO, J.J. Gomes et. al. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 634-638., p. 637. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553602377/>. Acesso em: 28 nov. 2023.
  13.  PESSANHA, Rodrigo Brandão Viveiros. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição?. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. 455 p., p. 343.
  14. HOGG,Peter W.; BUSHELL, Allison A.. The Charter Dialogue between Courts and Legislatures (Or Perhaps the Charter of Rights Isn’t Such a Bad Thing after All). Osgoode Hall Law Journal, [s.l.], v. 35, n. 1, p. 76-124, p. 96, 01 jan. 1997. Disponível em: <https://digitalcommons.osgoode.yorku.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=1612&context=ohlj>. Acesso em: 22 jan. 2024.
  15. Ibidem, p. 98.
  16.  LOPES, Erivan José da Silva. Ativismo judicial versus supremacia legislativa: a inviabilidade do controle legislativo sobre os atos do Poder Judiciário no ordenamento constitucional brasileiro. Revista da ESMAPE, Recife, v. 18, n. 37, p. 421-485, p. 436 – 438, jan./jun. 2013.
  17. PESSANHA, op. cit., p. 18.
  18. Ibidem, p. 269.
  19. CONGRESSO derruba veto ao marco temporal para terras indígenas. Agência Senado. Brasília, 14 dez. 2023. Disponível em: <Congresso derruba veto ao marco temporal para terras indígenas — Senado Notícias>. Acesso em: 05 fev. 2024.
  20. CONGRESSO é o Poder legítimo para decidir sobre droga, aponta debate. Agência Senado. Brasília, 17 ago. 2023. Disponível em: <Congresso é o Poder legítimo para decidir sobre droga, aponta debate — Senado Notícias>. Acesso em: 05 fev. 2024.

 

 

 

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