Opinião

Omissão em relação de árbitro e advogado é suficiente para anulação de sentença arbitral?

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10 de fevereiro de 2024, 9h22

São cada vez mais recorrentes as impugnações de árbitros e as ações de anulação de sentença arbitral por suposta violação aos deveres de imparcialidade ou independência do árbitro. Inevitavelmente, o Poder Judiciário tem sido compelido a identificar e separar as situações que realmente põem em cheque a isenção do árbitro, cuja gravidade impõe a anulação de sentenças arbitrais, daquelas que envolvem meras omissões sem qualquer relevância jurídica ou as chamadas nulidades de algibeira [1].

Diante disso, constitui tarefa fundamental daqueles que se utilizam da arbitragem como método de solução de disputas o renovado exame dos parâmetros e critérios adotados pela jurisprudência dos nossos tribunais para o reconhecimento das situações aptas a configurar uma dúvida justificada acerca da imparcialidade e independência do árbitro, capaz de resultar na anulação de uma sentença arbitral.

Em artigo publicado nesta ConJur no dia 19 de janeiro de 2024 [2], o professor José Rogério Cruz e Tucci trata de caso recente julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em que a questão foi enfrentada, tendo resultado efetivamente na anulação de uma sentença arbitral.

Após estabelecer as balizas para o exame da violação ao dever de revelação, o autor criticou o entendimento alcançado, demonstrando que o acórdão do TJ-SP acabou por confundir a existência de um relacionamento profissional no âmbito de magistério, fato sem gravidade e sem aptidão para a anulação de uma sentença arbitral, com um nexo subjetivo de interferência recíproca, circunstância apta, em tese, a resultar em tal anulação.

Ocorre que o mencionado acórdão, proferido pela 14ª Câmara de Direito Privado em 14 de dezembro de 2023 [3], manteve a anulação da sentença arbitral por dois fundamentos:

  • O árbitro único não revelou que teria sido colega de magistério do advogado de uma das partes, possuindo, ainda, vínculo em rede social com a mesma pessoa;
  • E a outra parte não foi intimada para participar da nomeação do referido árbitro, de modo que não teve a oportunidade de impugná-lo, tendo apontado a existência de tal vício ao longo do procedimento arbitral.

São duas questões jurídicas distintas. A primeira diz respeito ao dever de revelação do árbitro, cujo descumprimento resulta na possibilidade de anulação da sentença arbitral, na hipótese em que o fato não revelado suscite dúvida justificada quanto à imparcialidade e à independência do árbitro (Lei de Arbitragem, artigos 14, § 1º, e 32, II).

A segunda questão refere-se à observância do procedimento de nomeação e impugnação do árbitro pelas partes, que envolve necessariamente a possibilidade de participação de todas as partes da arbitragem, em respeito ao contraditório, à paridade de armas e ao devido processo legal (Lei de Arbitragem, artigos 21, § 2º, e 32, VIII).

Apesar de ambas estarem relacionadas à higidez do procedimento arbitral e, por conseguinte, à validade e à anulabilidade da sentença arbitral, elas não se confundem.

Logo, embora não se discorde das pertinentes ponderações do professor José Rogério Cruz e Tucci sobre o julgado, é possível ir além. A leitura conjugada da sentença de primeiro grau e do acórdão do TJ-SP permite concluir que a omissão do árbitro não foi suficiente, por si só, para a anulação da sentença arbitral.

Na verdade, a falta de oportunidade para que uma das partes participasse do procedimento de nomeação (e, eventualmente, impugnação) do árbitro parece ter sido o fator determinante para a conclusão alcançada — isto é, fator sem o qual não teria havido a anulação da sentença arbitral. A esse respeito, confira-se o seguinte trecho da sentença judicial de primeira instância:

“Não obstante, a mera constatação fática da não revelação desta circunstância não enseja em nulidade da sentença arbitral. Afinal, a eventual caracterização da imparcialidade não se confunde com o dever de revelação. Ocorre que, como visto, nesse caso houve aparente vício também no procedimento de nomeação.

Desse modo, considerando que o procedimento de nomeação não se deu de maneira transparente e isonômica, bem como que há indícios objetivos de que há relação prévia entre o advogado da ré e o árbitro nomeado e que esse fato não foi revelado, penso que há razão para o reconhecimento da nulidade da sentença arbitral porque há uma dúvida justificada acerca da imparcialidade.”

A ratio decidendi da sentença, portanto, consistiu no reconhecimento de uma dupla violação procedimental: a falta de revelação, pelo árbitro, da circunstância de que ele teria sido colega de magistério do advogado de uma das partes, somada ao fato de que uma das partes não teria tido a oportunidade de participar do procedimento de nomeação e impugnação do mesmo árbitro.

Rede social não configura proximidade entre árbitro e advogado
O acórdão da 14ª Câmara de Direito Privado que manteve a sentença no mérito, apesar de não ter estabelecido de forma tão clara as mesmas premissas, reforça essa conclusão ao destacar que a violação do dever de revelação “intensifica-se em vício insanável na medida em que o árbitro ignorou o reclamo contra a sua nomeação como se lá na atada sessão de conciliação (págs. 791/792) e na sentença arbitral (págs.512/522), chegando mesmo a afirmar sem indicação clara e precisa do fato processual que ambas as partes o aceitaram, o que não corresponde à verdade”.

Essa peculiaridade do caso examinado pelo TJ-SP é fundamental e não pode ser desprezada. É razoável afirmar que a mera existência de relação profissional entre árbitro e advogado no âmbito do magistério ou nas redes sociais não configura fato capaz, por si só, de gerar dúvida justificada acerca de sua imparcialidade e independência. Todavia, a quebra da isonomia entre as partes na ocasião da escolha do árbitro certamente é capaz de macular o procedimento arbitral desde a sua origem.

Ignorar esse segundo fundamento ou partir da premissa de que a mera omissão do árbitro teria sido suficiente para a anulação da sentença arbitral poderá resultar na invocação do precedente (ainda que para fins persuasivos) em casos sem qualquer grave irregularidade procedimental, o que seria obviamente indesejável.

É evidente que o julgado precisa ser adequadamente interpretado, mediante a delimitação de seus fundamentos determinantes [4], em especial na hipótese de sua invocação como precedente persuasivo, garantindo-se o mínimo de racionalidade e sistematicidade. Essa tarefa envolve o exame conjugado de todos os seus elementos, em conformidade com a boa-fé, como determina a norma prevista no artigo 489, § 1º, do Código de Processo Civil [5].

Vale lembrar, inclusive, que o CPC estabelece que não se considera sequer fundamentada (e, portanto, é nula) a decisão judicial que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, § 1º, V).

Portanto, entende-se que a interpretação conjugada da sentença de primeira instância e do acórdão do TJ-SP ora examinados, à luz das questões jurídicas enfrentadas naquela ocasião, permite concluir que a ausência de intimação de uma das partes para participar da nomeação do árbitro constituiu fundamento determinante para a anulação da sentença arbitral, sendo que a mera omissão do árbitro a respeito de sua relação com o advogado no âmbito do magistério e das redes sociais não foi suficiente, por si só, para que tal conclusão jurisdicional fosse alcançada — como, em tese, não deveria mesmo ser.

 


[1] Estratégia oportunista consistente na alegação de um vício processual por aquele que já o conhecia, mas deixa para invocá-lo apenas quando for mais conveniente aos seus interesses.

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-19/arbitro-e-advogado-que-exercem-o-magisterio-na-mesma-instituicao/. Acesso em: 22.01.24.

[3] Processo nº 1038255-35.2022.8.26.0100.

[4] ZANETI JR., Hermes. Precedentes (treat like cases alike) e o Novo Código de Processo Civil. Universalização e vinculação horizontal como critérios de racionalidade e a negação da “jurisprudência persuasiva” como base para uma teoria e dogmática dos precedentes no Brasil. Revista de Processo. Vol. 235/2014. set/2014. pp. 293-349.

[5] Art. 489. (…)

  • 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé

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