Opinião

Exceção de inseguridade é possível solução contra inadimplemento

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23 de janeiro de 2024, 11h14

Com a sensível evolução da sociedade brasileira, não há como desvincular o contrato, algo tão antigo quanto o ser humano, da realidade cotidiana, surgindo a necessidade de dirigir os pactos para a consecução de finalidades que atendam aos interesses da coletividade.

Nesse sentido, em apreço à autonomia da vontade, tem-se que as partes contratantes são livres para dispor os termos que desejam pactuar, desde que estes não violem o determinado pelo legislador. Tal manifestação volitiva das partes é tão cara, que a sua ausência é apta a nulificar/anular, ou, à luz da escala ponteana, acarretar a inexistência do negócio jurídico, uma vez que pendente elemento essencial para a existência do negócio jurídico.

Nessa toada, o direito das obrigações ensina sobre a necessidade de definir, dentre outros, a ordem para o adimplemento das prestações. Exemplo disso pode ser extraído dos artigos 597 e 491, ambos do Código Civil, os quais servem de balizadores para, salvo disposição de vontade diversa manifestada pelas partes, (1) a contraprestação pela prestação do serviço, se à vista, ser realizada após a sua entrega e, ainda, definir que, (2) não sendo a venda à crédito, o vendedor não está obrigado a entregar a coisa antes do pagamento.

A partir da determinação da ordem das prestações surge a impossibilidade de se exigir determinada prestação antes do seu tempo. Contudo, é imprescindível rememorar que regras não se inserem de forma isolada em um ordenamento jurídico, o que viabiliza, portanto, que diante de relevantes alterações das circunstâncias fáticas ocorridas entre a conclusão do contrato e a sua execução, possam ser promovidas readequações contratuais.

Desta feita, o Código Civil brasileiro nos traz institutos como a onerosidade excessiva, no artigo 478, o vencimento antecipado, no artigo 333, a exceção do contrato não cumprido, em seu artigo 476, o inadimplemento antecipado, decorrência do artigo 477, e a exceção de inseguridade, prevista no artigo 477, sendo certo que o presente estudo se concentra no instituto da exceção de inseguridade.

No que toca à onerosidade excessiva, esta pode se dar em contratos de execução continuada ou diferida quando determinada prestação se tornar extremamente onerosa para uma das partes, com extrema vantagem para outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Nesta hipótese, a parte devedora, a seu critério, poderá pleitear a resolução do acordo.

Acerca do vencimento antecipado, este, como o nome indica, consiste no vencimento da obrigação antes do prazo estipulado pela lei ou pela vontade das partes diante de hipóteses específicas, quais sejam: (1) falência do devedor ou concurso de credores; (2) penhora, em execução por outro credor, de bens hipotecados ou empenhados, quando oferecidos em penhor; (3) cessação ou insuficiência à garantia, pessoal ou real, do débito, quando, notificado o devedor, este se negar a reforça-las.; e (4) inadimplemento, quando convencionado entre as partes [1].

É importante destacar que, no que concerte às hipóteses 1 a 3 acima, estas restam previstas no artigo 333 do CC. Ademais, para que não restem dúvidas, ressalte=-se que, havendo solidariedade passiva no débito, este não será entendido como vencido em face de outros devedores solventes. Como ensina Tartuce, “o vencimento antecipado da obrigação não atinge a solidariedade passiva[2].

O Inadimplemento antecipado, por seu turno, é uma construção a partir do artigo 477 do Código Civil e, não se confunde com o vencimento antecipado, isso porque, este diz respeito ao momento adequado (data) para cumprimento da obrigação, permitindo exigir o cumprimento em momento anterior à data do vencimento. Aquele, gera a extinção do vínculo antes do descumprimento da obrigação diante de uma forte presunção quanto ao inadimplemento.

Portanto, o instituto do inadimplemento antecipado ensejará a rescisão antecipada do contato diante das seguintes hipóteses: (1) recusa expressa do devedor ao cumprimento da obrigação; ou (2) restar claro ou impossível o adimplemento do devedor por atos ou fatos certos deste.

Quanto à exceção do contrato não cumprido, prevista no artigo 476 do Código Civil, esta é aplicável aos contratos bilaterais e define que ninguém pode exigir que uma parte cumpra com a sua obrigação se primeiro não adimplir com a sua própria. Entretanto, insta destacar que, entre a recusa ao cumprimento da obrigação por uma das partes e o inadimplemento da outra parte, deve haver certa proporcionalidade. Em outras palavras, o inadimplemento deve ser substancial, não sendo admitida a exceção na eventualidade de inadimplemento mínimo e parcial, conforme fixado no Enunciado nº 24 da I Jornada de Direito Civil organizada pelo Conselho da Justiça Federal em 2012 [3].

Disposta no artigo 477 do Código Civil, a exceção de inseguridade preconiza que, identificada por uma das partes a modificação da situação patrimonial da outra parte, a qual gere risco de inadimplemento, o contratante que deve prestar em primeiro lugar o cumprimento da prestação pode sustá-lo até que o outro contratante antecipe a respectiva prestação ou ofereça garantia suficiente de que realizará o adimplemento no momento pactuado.

Pontes de Miranda [4] ensina que a exceção de inseguridade não confere a quem a invoca direito à prestação antecipada nem à caução, mas apenas ao retardamento da sua própria prestação. Assim, cabe ao outro contratante a escolha entre efetuar antecipadamente a sua prestação ou conceder garantia do cumprimento de sua parte de modo a obter a prestação a que tem direito.

Sendo assim, a exceção de inseguridade consiste em uma garantia legal, em benefício do credor, para prevenir-lhe do risco do inadimplemento. Há, dessa forma, uma antecipação ao risco de eventual inadimplemento do devedor, garantindo ao credor um instrumento que lhe permita mitigar esse risco. Portanto, não visa primordialmente à resolução do contrato, tal como a resolução por onerosidade excessiva, mas tão-somente à garantia de seu cumprimento diante da alta probabilidade do inadimplemento.  De igual modo, diferencia-se do inadimplemento antecipado, visto que não há certeza do inadimplemento, tão somente a probabilidade deste, com elucidam Fábio Siebeneichler de Andrade e Cecília Alberton Coutinho Silva [5].

Para que o instituto seja aplicável à relação contratual entre as partes, esta deve ser necessariamente sinalagmática, isto é, cada parte deve ser credora e devedora respectivamente uma da outra. Além disso, a diminuição do patrimônio deve ser superveniente à assinatura do contrato e suficiente para gerar risco à execução da prestação prometida, não bastando a mera oscilação cotidiana negativa do patrimônio do contratante.

O principal exemplo de aplicação da exceção de inseguridade, no âmbito dos tribunais superiores, figura no REsp 1.279.188-SP. Vejamos:

“DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MATÉRIA-PRIMA. REDUÇÃO DO VOLUME. PROBLEMAS DE PRODUÇÃO. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. RISCO DO EMPREENDIMENTO. INADIMPLEMENTO PRETÉRITO DA CONTRATANTE. REDUÇÃO DO VOLUME DOS PRODUTOS, DOS PRAZOS DE PAGAMENTO E DO CRÉDITO. CABIMENTO. PROVIDÊNCIA CONSENTÂNEA COM A PRINCIPIOLOGIA DA EXCEÇÃO DE INSEGURIDADE. DANO HIPOTÉTICO. CONDENAÇÃO. DESCABIMENTO.

  1. O cerne da controvérsia consiste em investigar a possível ilicitude praticada pela ora recorrente no tocante à limitação do fornecimento de matéria-prima à recorrida, limitação essa acompanhada de redução de seu crédito e diminuição dos prazos de pagamento, tudo isso após cerca de um ano do início da relação negocial, a qual, essencialmente, se manteve de forma verbal.
  2. Ficou claro da moldura fática dos autos que as partes firmaram contrato em meados de 1996 e que em agosto de 1997 houve uma redução do volume de produtos fornecidos pela recorrente à recorrida, tudo isso em razão de problemas operacionais, sendo que havia acordo verbal de fornecimento em volume superior. Com efeito, não se trata de relação contratual de longa duração, na qual os costumes comerciais têm aptidão de gerar a legítima expectativa em um contratante de que o outro se comportará de forma previsível.
  3. Em boa verdade, em se tratando de problemas de produção, tem-se situação absolutamente previsível para ambos os contratantes, de modo que a redução no fornecimento de produtos, nessa situação, não revela nenhuma conduta ilícita por parte do fornecedor. A controvérsia comercial subjacente aos autos insere-se no risco do empreendimento, o qual não pode ser transferido de um contratante para o outro, notadamente em contratos ainda em fase de amadurecimento, como no caso.
  4. Quanto à redução do fornecimento e do crédito posteriormente ao inadimplemento da recorrida, outra providência não se esperava da recorrente. Não se pode impor a um dos contratantes que mantenha as condições avençadas verbalmente quando, de fato, a relação de confiabilidade entre as partes se alterou. Era lícito, portanto, que a contratada reduzisse o volume de produto fornecido e modificasse as condições de crédito e de pagamento, diante do inadimplemento pretérito da contratante, precavendo-se de prejuízo maior.
  5. Mutatis mutandis, tal providência é consentânea com a principiologia do que no direito privado ficou consagrado como exceção de inseguridade, prevista hoje no art. 477 do Código Civil (correspondente ao art. 1.092 do CC/1916 e, em parte, ao que dispunha o art. 198 do Código Comercial). “A exceção de inseguridade, prevista no art. 477, também pode ser oposta à parte cuja conduta põe, manifestamente em risco, a execução do programa contratual” (Enunciado n. 438 da V Jornada de Direito Civil CJF/STJ).
  6. Assim, no caso de inadimplemento do contratante – circunstância que sugere, realmente, alteração de solvabilidade de uma das partes -, se era lícito ao outro reter sua prestação, era-lhe igualmente lícito reduzir o volume dos produtos vendidos, dos prazos de pagamento e do crédito, na esteira do adágio de que quem pode o mais pode o menos. […]”

(REsp 1.279.188-SP. Relator min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em: 16 abr. 2015. DJe: 18 jun. 2015).

Insta salientar, ainda, que, recentemente, o juízo da 7º Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo, entendeu pela concessão de tutela antecipada, nos autos do processo 1122825-17.2023.8.26.0100 [6], para determinar a suspensão da cobrança dos valores referentes às compras realizadas por consumidor com a empresa 123 Milhas, que se encontra em recuperação judicial e vem deixando de entregar pacotes de viagens, assim como a restituição do valor pago pelos clientes.

Para mais, é possível concluir situações especificas de garantia contra o risco do descumprimento, que são derivadas da norma prevista no artigo 477 do Código Civil. O artigo 495 do CC, por exemplo, autoriza o vendedor a suspender a entrega de sua prestação até que o comprador lhe forneça garantia de cumprimento, mesmo que, por força do contrato, tivesse de pagar em primeiro lugar. O artigo 590 do CC, por sua vez, confere ao credor do contrato de mútuo a possibilidade de exigir uma garantia de adimplemento quanto ao valor a ser restituído pelo mutuário.

Por derradeiro, destaca-se o Enunciado nº 438 da V Jornada de Direito Civil organizada pelo Conselho da Justiça Federal, o qual prevê que: “A exceção de inseguridade, prevista no art. 477, também pode ser oposta à parte cuja conduta põe, manifestamente em risco, a execução do programa contratual”.

De acordo com o enunciado doutrinário, se o comportamento do contratante põe em risco a observância do programa contratual, o princípio da lealdade permite que a parte que possui justo receio de não ver o contrato cumprido, exija, antes de executar aquilo a que se obrigou, garantia idônea ou o cumprimento da prestação alheia. A boa-fé impede que o contratante empregue critério diverso para julgar e julgar-se. Assim, não é permitido reclamar a observância do pacto cujo seu comportamento sugere o descumprimento.

Portanto, não se deve admitir que o contratante faltoso pretenda a execução da prestação alheia, ainda que, a princípio, o contrato autorize. Trata-se da aplicação do tu quoque, isto é, do exercício inadmissível de posição jurídica de vantagem [7]. É por isso que a doutrina sustenta a possibilidade de manejar a exceção de inseguridade sempre que o comportamento do outro contratante colocar em risco a satisfação do resultado almejado com o negócio jurídico.

Dito isso, é possível concluir que, diante do cenário crescente de empresas que se socorrem ao judiciário e à Lei de Recuperação de Empresas, tal como noticiado recentemente pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro [8], o instituto da exceção de inseguridade passa a ganhar maior espaço e visibilidade como um relevante mecanismo apto reduzir do risco do inadimplemento imputado ao credor em prol da preservação das empresas.

 


[1] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2021. p. 381.

[2] Ibid. p.381.

[3] “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.

[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1959, tomo 26, pág. 109.

[5] DE ANDRADE, Fábio Siebeneichler; SILVA, Cecília Alberton Coutinho. A Exceção de Inseguridade como Instrumento de Garantia para o Credor: Limites e Possibilidades de sua Invocação no Direito Brasileiro à Luz do Modelo Alemão in Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 7 (2021), n.º 5,  Pág 427. Disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/4/2021_04_0419_0470.pdf

[6] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 7ª Vara Cível, decisão processo 1122825-17.2023.8.26.0100. Autor: Julia Bruno Bogdan e outro. Réu:
123 Milhas – Agência de Viagens e Turismo Ltda.  Juiz de Direito: Ricardo Augusto Ramos, 05/09/2023. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S001QWWJ0000&processo.foro=100&processo.numero=1122825-17.2023.8.26.0100>. Acesso em 12/01/2024.

[7] ZANETTI, Cristiano de Sousa. Inadimplemento Antecipado da Obrigação Contratual in Arbitragem e Comércio Internacional: Estudos em homenagem a Luiz Olavo Baptista. São Paulo: Quartier Latin, 2013. pág. 319.

[8] Disponível em: Empresas de grande porte em crise recorrem ao Judiciário fluminense. TJ-RJ, 2024. Disponível em:< https://www.tjrj.jus.br/web/guest/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/401582198>. Acesso em: 10/01/2024.

 

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