Opinião

Inovação recursal e matéria de ordem pública nas instâncias ordinárias

Autores

  • Cláudio de Azevedo Barbosa

    é sócio do escritório De Jongh Martins Advogados advogado do Senado pós-graduado em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília.

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  • Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo

    é sócio do escritório De Jongh Martins Advogados advogado e cientista político pela Universidade de Brasília mestre (LL.M) em Direito Privado Europeu pela Università degli Studi "Mediterranea" di Reggio Calabria (2022) e mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa de Brasília (IDP).

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8 de fevereiro de 2024, 20h31

Com a iminência do início do ano judiciário de 2024 nas cortes superiores, é sempre conveniente analisar as principais decisões do ano anterior. Como sempre, escreve-se muito sobre súmulas, julgamentos sob a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, e, claro, decisões da Suprema Corte em controle concentrado de constitucionalidade.

Entretanto, por vezes, decisões importantes passam majoritariamente despercebidas, como parece ter ocorrido com o julgamento dos embargos de divergência em agravo em recurso especial nº 146.473/ES pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nesse julgamento, o STJ decidiu de forma unânime que as instâncias ordinárias devem se manifestar sobre matérias de ordem pública, mesmo que essas matérias só tenham sido suscitadas pelas partes em embargos de declaração opostos contra o acórdão que julgou a apelação.

Em outras palavras, entendeu a corte da cidadania que a alegação de matérias ordem pública somente nos embargos de declaração contra o acórdão de 2º grau não configura inovação recursal, de modo que deve ser admitida e devidamente enfrentada.

E mais interessante ainda: caso o tribunal de 2ª instância se recuse a enfrentar a questão de ordem pública apresentada nos embargos de declaração, é possível a anulação do acórdão por violação ao artigo 1.022, do Código de Processo Civil.

Caso concreto
Foi exatamente o que ocorreu no caso concreto analisado, no qual o acórdão dos embargos de declaração deixou de se manifestar sobre as alegações de ilegitimidade ativa e falta de interesse de agir apresentadas pela parte embargante. Por isso, esse acórdão foi anulado pelo STJ, o qual determinou, ainda, o retorno dos autos a origem para que o tribunal se pronuncie sobre essa questão.

Cabe a observação de que essa decisão não modifica o tradicional entendimento de que as matérias de ordem pública arguidas em recurso especial continuam necessitando do requisito do prequestionamento, sob pena de supressão de instância (AgInt nos EDcl no REsp nº 1.924.480/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 4/12/2023, DJe de 7/12/2023.)

Afinal, uma coisa é suscitar a questão de ordem pública em embargos de declaração contra o acórdão de 2º grau e oportunizar a manifestação do tribunal respectivo, ainda que para rejeitá-la (e consequentemente prequestionar a matéria). Outra coisa completamente diferente é suscitar essa matéria apenas no recurso especial, impossibilitando a manifestação do tribunal de 2º grau.

Feita a observação acima, fato é que o STJ solucionou controvérsia antiga e relevante. Conforme atestado pelo meticuloso voto condutor existem diversos acórdão proferidos pela corte da cidadania tanto no sentido da tese vencedora, já exposta neste texto, como no sentido da tese vencida (a de que não seria possível alegar matéria de ordem pública em embargos de declaração no 2º grau, em razão do princípio do “tantum devolutum quantum appellatum”).

Felizmente, prevaleceu o entendimento que preserva um dos traços definidores das matérias de ordem de pública: a possibilidade de alegá-las em qualquer tempo e grau de jurisdição (artigo 485, § 3º, do CPC).

Já existem momentos em que essa característica é mitigada (como ocorre no próprio recurso especial em razão do prequestionamento — como visto acima). Ampliar essa mitigação seria contribuir com a descaracterização do instituto. Até porque, essencialmente as mesmas razões que justificam não conhecer de alegação de matéria de ordem pública em embargos de declaração no 2º grau podem também justificar o mesmo no 1º grau (afinal, a sentença põe fim à fase cognitiva do procedimento comum — artigo 203, § 1º, do CPC). E aí, qual seria a diferença das matérias de ordem pública das matérias que se submetem a preclusão?

Implicações na prática da advocacia
Andou bem, portanto, o STJ, ao solucionar a controvérsia nos termos do EAREsp nº 146.473/ES, visto que amplia a possibilidade de observância jurisdicional a questões prejudiciais à perfeita aplicação da tutela jurídica pelos tribunais.

De outro modo, quase tão importante quanto a análise dos argumentos e do acerto da decisão do STJ é a análise de suas possíveis implicações na prática da advocacia. Duas delas serão apresentadas agora que se encaminha ao final deste breve artigo.

A primeira implicação é a evidente possibilidade de salvar uma apelação derrotada a partir de novos argumentos apresentados em embargos de declaração — desde que, é claro, esses argumentos sejam matéria de ordem pública. Mesmo se o tribunal rejeitar a argumentação suscitada nos embargos de declaração, ainda será possível levar a questão ao próprio STJ, tendo em vista que, quando o tribunal se manifesta sobre o tema, ocorre o prequestionamento da matéria.

A segunda implicação é que esse prequestionamento pelo tribunal deverá ser expresso. Não parece ser possível, aqui, o chamado prequestionamento ficto, previsto no artigo 1.025, do CPC, no qual o tribunal superior considera prequestionada a matéria suscitada nos embargos de declaração se entender que há erro, omissão, contradição ou obscuridade.

Como visto, se o tribunal se recusar a se manifestar, com ainda mais razão será possível recorrer ao STJ para buscar a nulidade do acórdão, exatamente como ocorreu no próprio EAResp nº 146.473/ES.

Aqui cabe uma ressalva. O voto condutor do EAResp nº 146.473/ES deixa claro que a parte recorrente tinha razão, ao alegar a ilegitimidade ativa e falta de interesse de agir em seus embargos de declaração oposto perante o tribunal de 2º grau.

Questão de fundo
A questão de fundo consistia na ilegitimidade ativa da distribuidora de combustíveis (contribuinte de fato) para pleitear a restituição do PIS/Pasep e da Cofins recolhidas pelas refinarias na condição de contribuintes de direito suscitadas pela Fazenda Nacional enquanto recorrente — o que está de acordo com a jurisprudência iterativa do STJ desde o julgamento do Tema 173 de recursos repetitivos. Não se pode ignorar que o fato de a recorrente ter razão nessa questão de fundo pode ter contribuído para que a corte da cidadania entendesse corretamente pela nulidade do acórdão.

Todavia, nos parece que, mesmo que houvesse dúvidas a respeito de o recorrente ter razão ou não, ao alegar as matérias de ordem pública, fato é que o tribunal de 2º grau deveria tê-las enfrentado sob pena de nulidade do acórdão.

A título de conclusão, tem-se que o STJ agiu acertadamente ao solucionar a controvérsia analisada neste breve artigo, fornecendo clareza sobre a possibilidade de abordar matérias de ordem pública nos embargos de declaração em 2ª instância.

A decisão não apenas respeita os princípios processuais, mas também contribui para a segurança jurídica ao assegurar a devida análise de questões cruciais em todas as fases do processo, além de abrir possibilidade interessantes na prática advocatícia.

Autores

  • é sócio do escritório De Jongh Martins Advogados, advogado do Senado, pós-graduado em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília.

  • é sócio do escritório De Jongh Martins Advogados, advogado e cientista político pela Universidade de Brasília, mestre (LL.M) em Direito Privado Europeu pela Università degli Studi "Mediterranea" di Reggio Calabria (2022) e mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa de Brasília (IDP).

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