Opinião

Matos Peixoto, professor de Moreira Alves, e o recurso extraordinário

Autores

  • Joaquim Portes de Cerqueira César

    é advogado em São Paulo mestre e doutor em Direito pela PUC-SP.

  • Roberto Rosas

    é professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

6 de fevereiro de 2024, 15h19

As homenagens [1], quando merecidas, são um importante pilar da cultura jurídica, especialmente por constituírem a propagação de uma tradição de verdadeira glória, apenas para lembrarmos Machado de Assis em Versos a Corina – III, refutando as glórias vãs, mas acolhendo as glórias do amor e do céu: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”, aquela “que nos orna a poesia da história”.

Deste ponto de vista, homenagens aos grandes professores representam um pilar dos mais reforçados, do tipo que a linha do afeto sedimenta em indestrutível argamassa.

Segue-se uma homenagem dupla, tanto ao falecido jurista José Carlos de Matos Peixoto (1884-1976), formado em 1908 pela Faculdade de Direito do Ceará, mas radicado no Rio de Janeiro, quanto ao jurista José Carlos Moreira Alves, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, de quem o primeiro foi professor na antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual Faculdade de Direito da UFRJ).

Esta singela recordação se destina a registrar a importância de um livro de Matos Peixoto sobre o recurso extraordinário, e de como seu aluno, Moreira Alves, ajudou a delinear, enquanto juiz da Corte Suprema, as bases contemporâneas do referido remédio excepcional.

O primeiro e o segundo articulistas, junto com o professor Arruda Alvim, coordenaram o livro Aspectos Controvertidos do Direito Civil, oportunidade em que dezenas de juristas renderam justa homenagem ao grande ministro Moreira Alves, importante reconhecimento ao lado de outro grande livro publicado há 23 anos por seu outro aluno, o hoje ministro Gilmar Mendes: Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil, descrevendo a importância deste jurista para a construção do modelo brasileiro de fiscalização abstrata da adequação de compatibilidade vertical das leis.

Em linhas gerais, o presente artigo gira em torno de um primeiro professor, de seu livro e, claro, do aluno que se tornou professor de gerações e influenciou o aprimoramento da arquitetura de diversos institutos e instituições.

Concepção do recurso extraordinário
Lembremos que em seus Estudos de Direito Romano (coletânea de 2009), Moreira Alves cita uma outra obra de Matos Peixoto, qual seja, seu Curso de Direito Romano, de 1943, com grande senso de importância deste opúsculo para o desenvolvimento da qualidade dos manuais de Direito Romano no Brasil.

Reprodução

Cultivando um profundo conhecimento romanista, Matos Peixoto e Moreira Alves possuíam um apego às origens históricas do recurso extraordinário. O livro de Matos Peixoto sobre este recurso, passemos a dele cuidar brevemente, é um verdadeiro manual no sentido mais erudito possível, daqueles que infelizmente não são mais produzidos.

Suas palavras prefaciais, em três breves parágrafos, são esclarecedoras: menciona que até então (1935) existiam na literatura jurídica algumas monografias, das quais se destacavam os estudos de Epitácio Pessoa e de Candido de Oliveira, mas que “entretanto, versam apenas certos aspectos da matéria”, e que também “antecederam de muito a Reforma Constitucional de 1926”, que havia restringido os casos de recurso extraordinário, enquanto a Constituição de 1934, seguindo orientação diversa, havia ampliado o escopo recursal.

Como objetivo de sua obra, Matos Peixoto menciona que pareceu ser “oportuno fazer um estudo retrospectivo da matéria e ensaiar a sua sistematização, de acordo com a carta constitucional em vigor”.

Tal característica sistematizadora sobre a concepção do recurso extraordinário é notável, de fato, pois começa tratando da linguagem e da terminologia, em aprofundada preocupação no primeiro capítulo com a multiplicidade de sentidos inerentes ao termo “recurso”, notando: “do particípio passado do verbo latino currere procede o substantivo cursus, carreira ou corrida, em sentido próprio: ‘actus currendi’, passando por sua menção usual no código Theodosiano e no código Justiniano, onde se dizia ‘após a sentença dada pelo juiz da apellação não pode a causa reverter ao juiz apellado’ (Ut post sententiam ab eo qui de appellatione cognoscit recursus fieri non possit ad iudicem, a quo fuerit provocatum)”.

De suas lentes não escapa nada, nem mesmo  a evolução que passa pelas novas acepções da expressão “recursus” como ação regressiva (regressum exercere) passando ao aumento ou diminuição do peso da moeda por autorização real, o justo peso das moedas (aequum monetae pondus), o direito de apascentar (ius pasciscendi), a ideia de “retrait” como retorno (recursus) aos herdeiros dos bens vendidos pelo parente falecido a estranhos, com reembolso do preço ao comprador, a noção de refúgio a alguém, até a providência contra a denegação de justiça (recursus iustitiae), e a medida provocativa de uma autoridade superior (ad superiorem iudicem).

Segundo, terceiro e quarto capítulos
Em seu segundo capítulo, traça um “escorço histórico dos recursos”, mas sempre tendo em vista o recurso de que cuida especialmente, unindo o todo com a parte, o geral e o especial, passando pelo antigo oriente, o Direito grego, o Direito romano, o Direito canônico, o Direito português, separando ainda, com muito proveito, a legislação colonial e a legislação brasileira pós-independência.

Só então aterrissa no terceiro capítulo para tratar sobre a definição de “recurso”, que não é a mesma abordagem do primeiro capítulo sobre a “expressão”. Primeiro cuidou da palavra, seus usos e variações através dos mecanismos linguísticos. Agora, diversamente, menciona a expressão propriamente jurídica, os sentidos que o foro e os juristas atribuíram ao termo técnico “recurso”.

O quarto capítulo aborda o “recurso extraordinário no direito norte americano”, lidando com o direito comparado que havia influenciado mais de perto a Constituição republicana de 1891, preocupado em distinguir entre os remédios americanos contra o erro de fato e o erro de direito, além da configuração federativa, ideia chave para a compressão inicial sobre o próprio extraordinário.

Capítulos quinto e sexto
A seu turno, o quinto capítulo cuida do recurso extraordinários no Direito argentino, indicando a proximidade com o modelo norte-americano.

O seu sexto capítulo cuida de fazer uma abordagem pouco tratada pela doutrina contemporânea, inclusive rara para a época, que é a incursão sobre o nascimento do recurso extraordinário desde as bases do antigo Decreto 848/1890, no contexto da diversidade de projetos constituintes, quando havia uma ideia mais americanista de federação, que permitiria aos estados legislar sobre processo e sobre diversos outros temas, com menos centralização e maior autonomia, inclusive mencionando-se o Aviso n. 3, de 23 de novembro de 1889, com que o então ministro da Justiça, Campos Salles, dissolveu a comissão de jurisconsultos que iria elaborar um código civil nacional, dizendo: “a confecção das leis que regulam as relações civis dos diferentes Estados não entra na legítima esfera de ação do Poder Legislativo Federal”.

Aliás, é nesse mesmo sexto capítulo que Matos Peixoto faz duas coisas notáveis. Primeiro, desvela o fato de que ao mimetizar parcialmente o “Judiciary Act” americano, o Decreto 848, na verdade, dele se afasta ao se apropriar de trecho doutrinário da obra de James Bryce (American Commonwealth), quando trata da dualidade da justiça – estadual e federal – ao cuidar no artigo 58, § 1º, sobre os casos de recurso ao Supremo Tribunal Federal, especialmente quanto a expressão “aplicabilidade” ou validade de tratados e leis federais.

Segundo, quando corrige com elegância os juristas Carlos Maximiliano e Pedro Lessa sobre aspectos históricos da abordagem que fizeram sobre o trato da federação no direito comparado, conforme notas de rodapé n. 4 e 5, da página 106 da obra.

Capítulos sétimo, oitavo e nono
No sétimo capítulo, em continuidade, avança para abordar o recurso extraordinário na vigência da Constituição de 1891, observando que a expressão normativa sugerida por Ruy Barbosa teria sido mais adequada, anotando, porém, que o congresso constituinte não acolheu a proposta vernacular de Ruy, destacando, ainda, que muito embora o nomem iuris “extraordinário” não tenha sido apontado pela Carta de 1891, três fatores concorreram para a adoção do nome: a inserção pelo 1º regimento interno do STF, a influência da prática argentina, e a assimilação lateral desde o antigo recurso de Revista para o STJ do império, que também era considerado extraordinário.

Em seu capítulo oitavo, importante o papel destinado à análise do projeto do parlamentar Herculano de Freitas, professor de direito constitucional e diretor da faculdade de direito do Largo São Francisco, que também viria a ser ministro do STF, por curto período, é verdade, após sua atuação no Congresso durante a reforma de 1926, que também alterou o recurso extraordinário.

Lado outro, seu nono capítulo é dedicado ao recurso extraordinário ex officio, que estava previsto no Decreto 23.055/1933, e que Matos Peixoto entendeu ter sido revogado implicitamente pela constituição de 1934.

Capítulos décimo ao décimo sexto
Finalmente, nos capítulos X ao XVI, Matos Peixoto cuida da destinação principal da obra, analisando como a Carta de 1934 teria estabelecido as bases e os elementos centrais do recurso extraordinário, em seus mínimos detalhes, impressionando o fato de que nada escapou a Matos Peixoto, que deixou claro o motivo de ter pavimentado a via até então escolhida com as sólidas rochas que levantou e utilizou desde o contexto histórico.

Assim, observamos que este é um dos grandes livros de Matos Peixoto, que bem merece uma reedição contemporânea. Como dito, um de seus alunos mais notáveis foi o professor e ministro aposentado Moreira Alves, jurista que esteve na Corte Suprema por mais tempo do que qualquer outro ministro desde a instituição da aposentadoria compulsória, vale dizer, durante 27 anos e dez meses, dos quais permaneceu como decano por mais de dez anos!

José Carlos Moreira Alves

Moreira Alves
Sua trajetória se inicia muito jovem, ao ser indicado em 1972, aos 39 anos, como chefe do Ministério Público (PGR), quando ainda não havia AGU, o que significava realizar também o assessoramento e a defesa da União e, em 1975, ao ser indicado aos 42 anos para o cargo de ministro do Supremo.

Sem pretensão de completude, maxime em razão do limitado espaço deste artigo, podemos ressaltar o importante papel do ministro Moreira Alves como o grande responsável pela parte geral do anteprojeto do Código Civil, iniciado em 1969 e que seria aprovado em 2002, além de seu protagonismo pioneiro na inserção de dispositivo do Regimento Interno do STF de 1980 que vedava o nepotismo na Suprema Corte, além do discurso de instalação da constituinte, em fevereiro de 1987, e da sua importância na reforma do judiciário, operada pela EC 45/2004, inclusive lhe sendo atribuída a “invenção” do mecanismo de repercussão geral do recurso extraordinário.

Ajudou a sedimentar as bases de muitas e notórias construções jurisprudenciais, tanto do próprio recurso extraordinário, quanto dos mais diversos elementos de direito material que chegavam à Corte Suprema através do RE, como no caso analisado por sua neta, Isabela Moreira Aves Mury, em trabalho de conclusão de curso que estudou o Recurso Extraordinário nº 88.716/RJ, de relatoria do ministro Moreira Alves em 1979 (in: Decisão do caso “sócios da Disco X Pão de Açúcar” e seu impacto no Supremo Tribunal Federal, IDP, 2021).

Poderíamos mencionar, ainda, o notável RE 130.764/PR, julgado em 1992, também relatado pelo ministro Moreira Alves (com provimento unânime acompanhando o relator), que discutia importante tema de responsabilidade civil objetiva do Estado, com fatos juridicamente reavaliados, e que carregou aparente polêmica acerca da cognoscibilidade do recurso, a propósito da clássica dualidade: fatos/direito.

No caso, Moreira Alves assentou: “como é a esta Corte que cabe, com exclusividade em grau de jurisdição extraordinária, dizer da contrariedade, ou não, de dispositivo constitucional, para se saber se ocorre, ou não, a responsabilidade objetiva do Estado prevista na Constituição é indispensável qualificar juridicamente os fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, para apurar, se se verificam, ou não, os requisitos dessa responsabilidade, e, em consequência, se há, ou não, a incidência da norma constitucional”.

Sobre este aspecto preliminar, inclusive, contando com o comentário do ministro Sepúlveda Pertence: “com as venias do ilustre Advogado do recorrido, não há qualquer óbice, em tese, ao recurso extraordinário. O caso é típico de qualificação jurídica de fatos”.

Professor e aluno
As duas figuras homenageadas (Matos Peixoto e Moreira Alves) merecem muito mais, e comportam inúmeras outras observações. O objeto escolhido para uni-los, o livro Recurso Extraordinário (1935), além do vínculo (educação jurídica), serve para destacar o papel do professor através do aluno, e do aluno por meio do professor, finalizando com uma frase que era muito repetida pelo professor Moreira Alves, um apaixonado pelos livros e pela leitura: “quem quer ler, lê”! Pois bem, que sejam lidos e relidos!


[1] (*) Além dos já mencionados textos “Recurso Extraordinário”, de Matos Peixoto (1935); “Estudos de Direito Romano”, de Moreira Alves (2009); de “Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil”, de Gilmar Mendes (2000), e da pesquisa “Decisão do caso ‘sócios da Disco X Pão de Açúcar’ e seu impacto no Supremo Tribunal Federal”, de Isabela Moreira Aves Mury (2021), o presente ensaio também se beneficiou dos episódios da TV Justiça  “Tempo e História”, Moreira Alves (2014); de “Memórias da Democracia” (2013); e “Homenagem ao ministro Moreira Alves, do CJF” (2013); além da obra “História oral do Supremo (1988-2013), v.13: Moreira Alves” (FGV, 2016); e do texto “Dr. Matos Peixoto, um mestre do saber clássico”, de Vinícius Barros Leal na Revista do Instituto do Ceará (2000).

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