Justiça tributária

Subvenções para investimento recebem tratamento surreal na Lei 14.789/23

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

5 de fevereiro de 2024, 8h00

Ao mesmo tempo que o governo federal lança uma nova política industrial para o país, dá um passo atrás ao tributar os incentivos concedidos às empresas para investimentos, conhecidos por subvenções.

Spacca

Por favor, leia com atenção, pois pode parecer estranho à primeira vista: renúncia fiscal não coloca dinheiro no caixa das empresas, mas elas serão obrigadas a pagar tributos mesmo não recebendo um centavo. É isso mesmo que você leu: por meio de renúncias fiscais não são cobrados certos impostos, mas a Lei 14.789/23 acaba obrigando as empresas a pagar tributos como se elas tivessem tido receita bruta (pagando Pis e Cofins) e como se essa receita (repete-se: que não ocorreu, pois se trata de uma renúncia fiscal) devesse compor a base de cálculo do Imposto de Renda e da CSLL.

Trata-se de algo absolutamente incompreensível à luz do direito tributário: criou-se uma ficção jurídica de receita, a partir de uma renúncia fiscal, obrigando as empresas a pagar tributo como se tivesse entrado dinheiro no caixa, mas, na verdade, esse dinheiro não entrou. É uma ficção, um dinheiro fake, de mentirinha, que se supõe tenha ingressado no caixa, mas não entrou, porém, mesmo assim, devem pagar tributo. Isso não é real, é surreal.

Sei dos pronunciamentos contábeis (CPC 00-R2 e CPC 47), mencionados por Daniel Prochalski, mas nem tudo que é contábil gera efeitos jurídicos no mesmo sentido, como ele bem aponta. Para analisar essa matéria seria necessário iniciar tratando do conceito jurídico de receita para fins de tributação, mas isso aborreceria o caro leitor ou leitora, que, desde logo, deve estar estarrecido com o malabarismo jurídico que esta nova norma criou. A situação é tão surreal que nem me atrevo a apontar quantos artigos da Constituição estão sendo violados apenas em razão desse fato.

Ultrapassado o surrealismo, vale analisar os efeitos a partir de 01/01/2024, que acarretará aumento da carga tributária, com violação ao pacto federativo a serem consideradas.

Em simples palavras: todo o montante subvencionado que antes era afastado da base de cálculo do Pis, Cofins, IRPJ e CSL, passou a ser objeto de um crédito de 25% do que foi pago de IRPJ, o que majorou todos esses tributos.

Este ponto está no art. 21 da nova lei, que revoga vários dispositivos de normas anteriores, resultando na imposição do pagamento de Pis, Cofins, CSL e IRPJ sobre os valores que tiverem sido fiscalmente renunciados. Essa reoneração implica em majoração de 43,25%, considerando alíquotas nominais, conforme menciona Betina Grupenmacher.

Constata-se haver violação da segurança jurídica, representada pelo Princípio da Anterioridade, sob a modalidade da “noventena” (art. 150, III, “c”, c/c o art. 149, ambos da CF), que impede que sejam cobrados tributos antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os aumentou. Bem se sabe que esta lei é fruto da MP 1.185, de 30 de agosto de 2023, que não foi aprovada, mas convertida em PLC – Projeto de Lei de Conversão, tendo este sido aprovado e se transformado na Lei 14.789/23, publicada em 29 de dezembro de 2023, com início de vigência a partir de 01 de janeiro de 2024. Logo, não foi aprovada uma MP (art. 62, §3º, CF), mas um PLC, o que gera outros efeitos jurídicos (art. 62, §12, CF), sendo necessário reconhecer que o aumento de carga tributária que tal norma traz não pode ser aplicado de imediato, devendo obedecer a noventena. Aqui estamos de volta a um passado que deveríamos ter deixado de lado.

O federalismo é infringido frontalmente, em especial pelos arts. 3º e 4º, que obriga as empresas a se habilitarem junto à Receita Federal para gozar do benefício, mesmo que tenha sido concedido por outra unidade federada. Isso viola o pacto federativo, pois o que é concedido por uma unidade federada será submetido ao escrutínio de outra. Poderia avançar na explanação, mas isso basta para os fins desta coluna.

A norma é lacunosa sobre os créditos presumidos, pois, segundo pacificado pelo STJ (Tema 1.182), não se constituem em subvenções passíveis de subsunção à tributação. Logo, colocar tais créditos no balaio tributável será mais um erro fiscal.

Em apertada síntese, a Lei 14.789/23: (1) aumentou fortemente a carga tributária das empresas, transformando o que era uma isenção plena (pois afastava da base de cálculo) em um crédito de 25% do que for pago de IRPJ; (2) com isso, violou a segurança jurídica, regulada pela noventena, pois não resultou da aprovação da MP 1.185, mas da conversão de um PLC – Projeto de Lei de Conversão; (3) infringe o pacto federativo, submetendo o que foi concedido por outros entes federados à União, por meio da Receita Federal; e (4) deixou uma lacuna jurídica, pois não ressalvou os créditos presumidos que não se constituem em subvenção para fins de tributação, segundo pacificou o STJ.

Por fim, (5) gerou um enorme problema de fluxo de caixa e de rentabilidade, obrigando as empresas a pagar sobre uma receita que não receberam, pois se trata de uma renúncia fiscal. Cabe a pergunta: Será receita tributável uma renúncia fiscal? É óbvio que não.

E tudo isso ocorre de forma concomitante à apresentação de nova política industrial pelo governo.

É ou não surreal?

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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