Opinião

A importância comercial do cânhamo no Brasil e no mundo

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5 de fevereiro de 2024, 16h16

Tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o Recurso Especial (REsp) nº 2.024.250, sob o rito do Incidente de Assunção de Competência (IAC), para definir a possibilidade da concessão de autorização sanitária no Brasil para importação e cultivo de cânhamo industrial (ou “hemp”, em inglês).

O hemp é uma variedade da planta cannabis sativa, que contém até 0,3% de tetrahidrocanabinol (THC) em sua concentração e não tem efeito entorpecente ou psicotrópico. Por outro lado, possui elevados níveis de canabidiol (CBD) ou de outros canabinoides, sendo, portanto, valioso, especialmente, para as indústrias farmacêutica, alimentícia e têxtil.

No contexto do recurso especial mencionado, a relatora, ministra Regina Helena Costa, determinou a suspensão, no território nacional, da tramitação de todos os processos individuais ou coletivos em que se discuta a matéria até o deslinde do feito. O processo, agora, aguarda inclusão em pauta para decisão.

O debate por que passamos neste momento sobre a possibilidade da importação e produção do cânhamo não é novo no mundo. Embora não possua propriedades narcóticas, o cânhamo industrial ainda gera controvérsias devido a entendimentos equivocados quanto às suas propriedades, como atesta relatório produzido em 2022 pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), intitulado “Commodities at a Glance — Special Issue on Industrial Hemp”. A falta de uma distinção legal clara em diversos países, entre eles o Brasil, contribui para esse cenário, incentivando deletérias prenoções a respeito de um produto que tem gerado ricos frutos a outras nações.

Atualmente, três convenções internacionais tratam do controle da produção e do comércio de substâncias psicoativas, dentre as quais a cannabis e seus componentes. O Brasil é signatário delas.

A primeira e mais importante é a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, que lista uma série de substâncias sujeitas a controle dos Estados, incluindo a planta, resina, extrato e tintura da cannabis. Ao mesmo tempo, a convenção reconhece a indispensabilidade do uso médico de alguns entorpecentes para o alívio da dor e do sofrimento humano, além da necessidade da adoção de medidas adequadas para a garantia da disponibilidade desses produtos.

Ameaça à saúde pública?
O diploma dispõe que as partes signatárias não estão obrigadas a aplicar as disposições concernentes aos entorpecentes comumente usados na indústria para fins não médicos ou científicos, desde que sejam adotadas medidas específicas de controle. Além disso, a convenção não se aplica ao cultivo da “planta de cannabis destinada exclusivamente a fins industriais (fibra e semente) ou hortículos”.

Dez anos depois, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas reforçou os intentos da convenção de 1961, prevendo que o THC, dentre outras substâncias, apresentaria risco de abuso e seria uma ameaça à saúde pública.

Em 1988, a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas surgiu do reconhecimento da necessidade do fortalecimento de meios jurídicos efetivos para complementar as medidas previstas nas Convenções de 1961 e 1971 e para enfrentar a expansão do tráfico de entorpecentes.

Em 2020, após dois anos de discussões no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), compreendeu-se que a cannabis, sua resina, extrato e tintura deveriam permanecer sob o controle da convenção de 1961, mas não deveriam ser qualificados na lista das substâncias de controle mais restrito reservada às substâncias particularmente suscetíveis de uso indevido e de produzir efeitos nocivos.

Em diversos lugares do mundo, como China, Estados Unidos e vários países europeus, a permissão dada pela convenção de 1961 para cultivar a cannabis para fins industriais — tendo em conta, inclusive, o posicionamento da OMS sobre o assunto — é concretizada na permissão do plantio e comercialização de sementes ou plantas que contenham percentual máximo de THC de 0,3%.

De fato, o objeto das convenções é refrear a dependência de substâncias narcóticas e psicoativas — e não vedar literalmente, ou a qualquer custo, a produção de um produto específico. Assim, tendo-se verificado em pesquisas ao redor do mundo a inviabilidade do poder entorpecente do cânhamo e, mais, os benefícios advindos dessa planta, passou-se a autorizar e incentivar o seu comércio.

Onde se produz cânhamo?
Atualmente, cerca de 40 países produzem quantidades significativas de cânhamo industrial, liderados por China, países da União Europeia, Estados Unidos e Canadá. Somente em 2019, estima-se que foram produzidas quase 300 mil toneladas de cânhamo industrial em estado bruto ou semiprocessado em todo o mundo.

Dados constantes do website da Comissão Europeia informam que, de 2015 a 2019, a superfície destinada ao cultivo desta planta aumentou em 75% na região, e a produção, em 62,4%. A França está na liderança, com mais de 70% da produção total da UE, seguida pelos Países Baixos (10%) e pela Áustria (4%).

Informa-se, ainda, que o cultivo de cânhamo contribui para os objetivos do pacto ecológico europeu por trazer uma série de benefícios ambientais, como o armazenamento do dióxido de carbono, a quebra do ciclo das doenças, a prevenção da erosão dos solos, o aumento da biodiversidade e a desnecessidade do uso de pesticidas no cultivo. A EU, inclusive, sob a sua Política Agrícola Comum (PAC), oferece apoio aos agricultores que cultivam o hemp.

O relatório “Commodities at a Glance — Special Issue on Industrial Hemp”, da UNCTAD, aponta também que o crescente mercado do cânhamo industrial abre oportunidades econômicas para os países em desenvolvimento. Isso porque sua versatilidade e suas características funcionais possibilitam ampla aplicação na agricultura, nas indústrias têxtil, automobilística, alimentícia, de construção civil, de cuidados pessoais, dentre outras.

O relatório sugere que a facilidade do plantio, a adaptabilidade e o aproveitamento de toda a estrutura da planta permitem que os países em desenvolvimento criem cadeias de produção sustentáveis capazes de contribuir para o crescimento das zonas rurais e impulsionar a diversificação econômica. Ainda segundo o documento, o cânhamo tem a vantagem de crescer numa grande variedade de climas na maior parte do mundo, podendo ser plantado em terrenos não adequados para outras culturas, ajudando também a reconstituir o solo, remover metais pesados e outros contaminantes. O relatório afirma, por exemplo, que a cultura do cânhamo conduz a um aumento de 10% a 20% do rendimento do trigo.

A planta ainda tem forte apelo ecológico. Segundo dados da Comissão Europeia, um hectare cultivado com cânhamo armazena entre 9 e 15 toneladas de CO2, quantidade semelhante àquela retida por uma floresta jovem, com a diferença de que o cânhamo demora somente cinco meses para crescer.

Ainda nesse contexto ecológico, o relatório intitulado Sustainable Policy Cannabis Toolkit, desenvolvido pelo Forum Drugs Mediterranean (FDM, anteriormente intitulado FAAAT) em parceria com o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, esclarece que a planta Cannabis sativa L., aliada às políticas públicas relacionadas, permite o alcance de, pelo menos, 64 das 169 metas que integram 15 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre os 17 da Agenda 2030.

Grande parte desses temas estão sendo suscitados no âmbito do Resp nº 2.024.250 que corre no STJ. No entanto, o apetite do país para aproveitar os benefícios do cânhamo, já verificados, comprovados e aproveitados em diversos países desenvolvidos do mundo, parece tanto mais uma matéria de competência regulatória e de decisão política.

Embora o movimento mundial para a abertura de mercados ao cânhamo esteja ganhando força de forma vertiginosa, o Brasil ainda não vê a planta de maneira estratégica, nem a interpreta conforme as exceções das convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Enxergar a potência econômica do cânhamo — em particular para o agronegócio, reconhecendo, sem preconceitos, os diversos estudos feitos no mundo a respeito da inviabilidade entorpecente da planta, alinha o país com a tendência global e abre caminho para inovações sustentáveis e economicamente viáveis, essenciais para o desenvolvimento futuro do país.

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