Opinião

Direitos reprodutivos e a objeção de consciência de hospitais privados

Autor

  • Carolina Dumet

    é estudante de Direito da Faculdade de Direito da UFBa secretária-geral e diretora de eventos do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

3 de fevereiro de 2024, 9h16

Como altamente veiculado na mídia, neste mês de janeiro de 2024, um hospital privado se recusou a aplicar DIU como método contraceptivo por ser uma instituição religiosa que segue os preceitos católicos e do Vaticano [1], exercendo um suposto direito de objeção de consciência do hospital.

Inicialmente, cumpre frisar que é garantido ao indivíduo a liberdade de escolher gestar ou não, haja vista que o direito ao próprio corpo é expressamente defendido pelo Código Civil, em seu artigo 13, que dispõe que “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.

Esse direito se relaciona diretamente com a reprodução humana, afinal, exige-se a autonomia jurídica sobre o próprio corpo para gestar filho próprio ou para fazer a opção de não gestar, através de métodos contraceptivos.

Conceito de contracepção
No que se refere à contracepção, esta é definida como o “uso de métodos e técnicas com a finalidade de impedir que o relacionamento sexual resulte em gravidez” e trata-se de um recurso para o planejamento familiar “para a constituição de prole desejada e programada, de forma consciente” [2].

Segundo a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, para alcançar a saúde reprodutiva, é necessário haver disponibilidade de informação de métodos seguros para o planejamento familiar, bem como a garantia ao seu acesso. Afinal, os direitos reprodutivos são um direito fundamental de decidir de forma livre e responsável o número de filhos que se quer ter, bem como o momento de seu nascimento e o intervalo entre eles [3].

Caso concreto e objeção de consciência
Por outro lado, no caso em análise, coloca-se o direito à objeção de consciência que, supostamente (como será analisado adiante) se aplicaria a pessoas jurídicas. Acessando a Resolução CFM nº 2.232/19, artigo 8º, percebe-se que a objeção de consciência médica “é o direito do médico de se abster do atendimento diante da  recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência” [4].

É nítido no referido artigo que a objeção de consciência é um direito aplicado na relação médico-paciente, não se aplicando à instituição como um todo enquanto pessoa jurídica, o que exige a pessoalidade, inclusive porque o artigo subsequente determina que a interrupção da referida relação “por objeção de consciência impõe ao médico o dever de comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde,  visando a garantir a continuidade da assistência por outro médico, dentro de suas competências” [5].

Visão da especialista e o texto constitucional
No mesmo sentido, tem-se o relato da advogada Luciana Dadalto em reportagem para a revista eletrônica Consultor Jurídico:

A Constituição traz o direito à objeção de consciência, mas apenas para pessoas naturais (não para as pessoas jurídicas). Isso também está previsto no Código de Ética Médica (CEM). Luciana explica que o código é voltado aos profissionais, ou seja, não regula a atuação das instituições. […] Segundo a advogada, também deve ser levado em conta que a situação viola os direitos de saúde da mulher e o direito constitucional ao planejamento familiar [6].

Cumpre frisar, ainda que a Constituição define que o direito à saúde, além de ser um direito social (artigo 6º), é direito de todos e dever do Estado (artigo 196), sendo a assistência à saúde livre à iniciativa privada (199). Assim, na Lei 8.080 de 1990, tem-se que:

Art. 20. Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde.

[…] Art. 22. Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento [7].

Conclusão
Nesse sentido, considerando que são, segundo a mesma lei, princípios do Sistema Único de Saúde a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral e a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (artigo 7º, III, IV), é inadmissível que um hospital privado exerça, de forma institucional, uma objeção de consciência.

Por fim, vale ressaltar que a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos dispõe que a autonomia individual para decidir deve ser respeitada (artigo 5º), bem que a diversidade cultural e do pluralismo deve receber a devida consideração, não podendo ser invocadas para violar a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais (artigo 12) [8], sendo mais um fator que demonstra a impossibilidade de um hospital privado exercer objeção de consciência por motivos religiosos.


Referências

BARRENSE, Heloísa. PINA, Rute. ‘Precisam evoluir’, diz mulher que teve DIU negado por motivos religiosos. Viva Bem UOL. São Paulo. 24/01/2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/01/24/hospital-recusa-colocacao-de-diu.htm. Acesso em: 27/01/2024.

BRASIL. Lei 8.080 de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 27/01/2024.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.232/2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. CFM. 2019. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232. Acesso em: 27/01/2024.

FINOTTI, Marta. Manual de anticoncepção. São Paulo: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), 2015, p. 10.

HIGIDO, José. Hospital não tem direito de recusar procedimento por objeção de consciência. Consultor Jurídico. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-24/hospital-nao-tem-direito-a-recusar-procedimento-por-objecao-de-consciencia/. Acesso em: 27/01/2024.

ONU, Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher: Pequim [online]. 1995. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2015/03/declaracao_pequim1.pdf. Acesso em: 19/05/2021.

Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução para o português: Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília; 2005.


[1] BARRENSE, Heloísa. PINA, Rute. ‘Precisam evoluir’, diz mulher que teve DIU negado por motivos religiosos. Viva Bem UOL. São Paulo. 24/01/2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/01/24/hospital-recusa-colocacao-de-diu.htm. Acesso em: 27/01/2024.

[2] FINOTTI, Marta. Manual de anticoncepção. São Paulo: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), 2015, p. 10.

[3] ONU, Organização das Nações Unidas. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher: Pequim [online]. 1995. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2015/03/declaracao_pequim1.pdf. Acesso em: 19/05/2021.

[4] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.232/2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. CFM. 2019. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232. Acesso em: 27/01/2024.

[5] Idem.

[6] HIGIDO, José. Hospital não tem direito de recusar procedimento por objeção de consciência. Consultor Jurídico. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-24/hospital-nao-tem-direito-a-recusar-procedimento-por-objecao-de-consciencia/. Acesso em: 27/01/2024.

[7] BRASIL. Lei 8.080 de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 27/01/2024.

[8] Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução para o português: Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília; 2005.

Autores

  • é advogada, pós-graduada em Direito Médico e Bioética pela Ebradi, secretária geral do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (Ibadfem), membra da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/BA e da Women in Global Health Brazil.

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