Opinião

A Doutrina do Servo Infiel nas relações de trabalho brasileiras

Autor

  • Raphael Miziara

    é doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp) mestre em Direito pela UDF especialista em Direito pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM) e advogado.

2 de fevereiro de 2024, 6h09

Uma das principais obrigações das partes nas relações de trabalho é a de observar o princípio da boa-fé, o qual pode ser considerado um verdadeiro “cluster principle”. Embora de conteúdo normativo poroso e natureza multifacetária, orienta que a conduta dos contratantes, desde os momentos preliminares do ajuste até mesmo após o rompimento do vínculo contratual, deve por posturas qualitativamente marcadas por honestidade, correição, transparência, cooperação, fidelidade, coerência, dentre outras.

A análise do grau de incidência do princípio da boa-fé quase sempre será casuística, devendo o intérprete levar em consideração os detalhes das circunstâncias fáticas que permeiam um determinado caso concreto, tais como o grau de instrução das partes, suas condições sociais e econômicas, o contexto cultural no qual estão inseridas, dentre outras.

Especificamente no contexto trabalhista, exige-se que o empregado, por exemplo, não cometa atos de improbidade, não concorra com seu empregado e não revele segredos comerciais (artigos 482, alíneas “a”, “c” e “g”, respectivamente). Condutas desse jaez, sem dúvidas, rompem com o dever de fidúcia inerente ao ajuste, especialmente nas situações nas quais o empregado ocupa posições que demandam maior grau de confiança do empregador. Nesse sentido, a boa-fé inclusive salvaguarda os interesses de gestão empresarial, de acordo com os quais os trabalhadores devem trilhar uma zona de compromisso e colaboração com os legítimos interesses da organização.

Doutrina do Servo Infiel
A partir das premissas acima, desenvolveu-se no Direito do Trabalho norte-americano a chamada Doutrina do Servo Infiel ou “Faithless Servant Doctrine”. Aplicada até hoje nas relações trabalhistas norte-americanas, a doutrina foi reconhecida pela primeira vez pela Suprema Corte de Nova York no final do século 19, em 1886, no caso Murray v. Beard – 102 NY 505 (cf. Murray v. Beard, 102 N.Y. 505, 2 N.Y. St. Rptr. 466, N.Y. 1886).

De acordo referida doutrina, caso um empregado pratique a) má conduta que viola substancialmente o contrato; ou, b) que constitua séria violação da boa-fé ou lealdade, pode o empregador receber de volta (clawback), a título de indenização, todos os valores remuneratórios já recebidos pelo empregado ao longo do período do contrato em que ocorreram as infidelidades. Em suma, trata-se de violação grave do dever de fidúcia.

Os atos desleais que foram considerados acionáveis de acordo com a doutrina incluem, exemplificativamente, “ato(s) diretamente contra os interesses do empregador, como peculato, competição indevida com o empregador atual ou usurpação de oportunidades de negócios” (cf. Pozner v. Fox Broad. Co., 2019, N.Y., Slip Opinion, 33415, N.Y. Supreme Court, 2019). Em outros casos julgados, as seguintes condutas também já foram consideradas: roubo de informações confidenciais e segredos comerciais; compartilhamento de informações confidenciais com concorrentes; omissão de informações relevantes que o empregado tenha o dever de comunicar.

Equivalência e requisitos
Como afirmado acima, a doutrina foi reconhecida pela primeira vez pela Suprema Corte de Nova York no final do século 19, em 1886, no caso Murray v. Beard – 102 NY 505. De acordo com o precedente, a doutrina se fundamenta na Lei da Agência (Restatement, Agency 2d, § 469). De acordo com o leading case, “um agente é considerado uberrima fides – máxima fidelidade – nas suas relações com o seu mandante, e se ele agir de forma adversa para com o seu empregador em qualquer parte da relação, ou omitir a divulgação de qualquer interesse que naturalmente influenciaria a sua conduta ao lidar com o objeto da relação empregatícia, isso equivale a uma fraude do contrato, a ponto de perder de qualquer direito à compensação pelos serviços” (cf. Murray v. Beard, 102 N.Y. 505, 2 N.Y. St. Rptr. 466, N.Y. 1886).

Para êxito na invocação do precedente firmado, é preciso que a empresa comprove, pelo menos, a) a existência da má conduta; b) o dolo como elemento subjetivo; c) o período abrangido pelo comportamento desleal; d) o nexo de causalidade entre o comportamento infiel e os danos. Por exemplo, se uma empresa alega que perdeu investidores ou clientes ela tem que demonstrar que a violação dolosa do dever de fidelidade foi a causa dessas oportunidades perdidas (cf. R.M. Newell Co., Inc. v. Rice, 236 A.D.2d 843, 653 N.Y.S.2d 1004, N.Y. App. Div. 1997).

Porém, é preciso advertir que há muitos entendimentos pelos quais a perda da remuneração por parte do funcionário infiel também é obrigatória mesmo quando o empregador principal se beneficiou ou não sofreu danos comprováveis como resultado da quebra de fidelidade (cf. Feiger v. Iral Jewelry, Ltd., 41 N.Y.2d 928, 394 N.Y.S.2d 626, 363 N.E.2d 350, N.Y. 1977). Neste último caso, os danos são in re ipsa.

Caso reconhecida a má-conduta, o empregado a) perderá o direito às retribuições vencidas e ainda não quitadas; b) deverá ressarcir o empregador por todos os prejuízos causados, tais como lucros cessantes, danos emergentes e, se for o caso, até danos extrapatrimoniais; c) deverá devolver qualquer valor obtido em razão da má-conduta desleal; d) deverá devolver, estritamente em relação ao período de infidelidade, os valores recebidos a título de retribuição. Neste último caso, a indenização tem a natureza de danos punitivos ou punitive damages.

Flexibilização
Em certas hipóteses, a jurisprudência já entendeu que o empregado infiel pode ser autorizado a reter ou receber as compensações derivadas de transações que foram independentes e não contaminadas por sua deslealdade. Neste caso, os empregados perdem a remuneração apenas por atos relacionados à(s) conduta(s) infiel(éis), pois privar o empregado dessas comissões seria mera punição porque eles violaram seu dever quanto a outras transações.

No sentido acima, a Lei da Agência de Nova York permite tal flexibilização. Ela “exige a repartição de confiscos quando a remuneração de um agente é alocada a períodos de tempo ou à conclusão de itens de trabalho específicos.”. Portanto, um empregado poderá manter a remuneração pelas tarefas desempenhadas com lealdade, mesmo durante o período de deslealdade relacionadas a outras tarefas, quando: 1) as partes concordaram no próprio contrato que o agente seria pago tarefa por tarefa; 2) o agente executou outras tarefas específicas sem qualquer má conduta; 3) a deslealdade do agente em outras tarefas “nem maculou nem interferiu na conclusão” das tarefas para as quais o agente era leal.

O distinguinshing do precedente Murray, acima citado, está enraizado na opinião de que privar funcionários infiéis de todos os seus ganhos quando algumas tarefas eram completamente adequadas seria muito punitivo e desproporcional (cf. Trounstine v. Bauer, Pogue Co., 144 F.2d 379, 2d Cir. 1944). Porém, é importante ressaltar que alguns tribunais de Nova Iorque já entenderam pela perda do direito do empregado a qualquer compensação após o primeiro ato de deslealdade, sem fazer qualquer distinção entre tarefas dependentes ou independentes das condutas desleais. (cf. Phansalkar v. Andersen Weinroth Co., L.P., 344 F.3d 184, 2d Cir. 2003).

Responsabilidade do servo infiel
Doutrina em comento decorre a teoria da responsabilidade do servo infiel. Neste tipo de responsabilidade, se a empresa apresentar provas adequadas da deslealdade e conseguir estabelecer o período em que ocorreu a má conduta, ela tem direito a recuperar toda a compensação paga ao empregado desleal durante o período – a título de danos punitivos ou punitive damages –, mesmo que o empregador não consiga estabelecer os danos sofridos pelos atos desleais do empregado (cf. Feiger v. Iral Jewelry, Ltd., 41 N.Y.2d 928, 394 N.Y.S.2d 626, 363 N.E.2d 350, N.Y. 1977).

Em um outro caso, foi decido que há direito ao ressarcimento “ainda que a empresa não possa demonstrar ou quantificar os danos advindos pela perda de investidores” (cf. Beach v. Touradji Capital Mgmt., 64 Misc. 3d 1230, 2019 N.Y. Slip Opinion 32416, 117 N.Y.S.3d 803, N.Y. Sup. Ct. 2019). Já em outro, presumiu-se que a empresa sofreu sim danos em razão da conduta do empregado que compartilhou segredos comerciais com concorrentes e, “em vez de tentar quantificar esse dano, a doutrina do servo infiel permite à empresa reaver – clawback –, como compensação, o valor correspondente à quatro de retribuições” (cf. Mahn v. Major, Lindsey, & Afr., LLC, 74 N.Y.S.3d 7, 159 A.D.3d 546, 2018 N.Y. Slip Op. 1888, N.Y. App. Div. 2018).

Jurisprudência local
Sobre a possibilidade de aplicação no Brasil, deve-se considerar que a referida doutrina dificilmente encontrará acolhida na jurisprudência brasileira em relação aos contratos de emprego. Os motivos são os mais diversos. Mas, o principal deles, é o de que, há muito tempo, rechaça-se a teoria que defende a natureza jurídica de mandato para o contrato de emprego, a teor da qual o empregado atuaria como mandatário de seu empregador. Nesse sentido, confira-se a posição da parcela majoritária na doutrina brasileira ao discordar da natureza jurídica de mandato do contrato de emprego [1].

Logo, as chances de acolhida da doutrina pela jurisprudência brasileira são baixíssimas, pois o empregado não é mandatário ou agenciador do empregador. A doutrina brasileira também sustenta que o contrato de emprego não é figura assimilável a qualquer das figuras contratuais clássicas típicas do Direito Civil. E, embora o gênero próximo seja o contratual, existe uma diferença específica a distanciar o contrato empregatício do conjunto das figuras contratuais civilistas, qual seja, “não exatamente em seu objeto (prestação de trabalho), mas precisamente no modo de efetuação dessa prestação — em estado de subordinação (e com pessoalidade, não eventualidade e onerosidade, acrescente-se).”.[2]

Em relação aos contratos de trabalho lato sensu as chances de aplicação também são mínimas. Por exemplo, a Lei nº 4.886, de 9 de dezembro de 1965, que “regula as atividades dos representantes comerciais autônomos”, prevê que ocorrendo motivo justo para a rescisão do contrato, poderá o Representado reter comissões devidas ao representante, com o fim de ressarcir-se de danos por este causados a título de compensação (artigo 37, caput). Logo, a legislação específica não prevê a possiblidade de devolução das comissões.

Já o artigo 717 do Código Civil, ao tratar “Da Agência e Distribuição”, estatui que “Ainda que dispensado por justa causa, terá o agente direito a ser remunerado pelos serviços úteis prestados ao proponente, sem embargo de haver este perdas e danos pelos prejuízos sofridos.”. Há previsão de perdas e danos, porém, o artigo claramente afasta a doutrina do servo infiel ao assegurar ao agente, mesmo em casos de justa causa, a remuneração pelos serviços úteis prestados à empresa.

Por sua vez, os artigos 653 et seq. do Código Civil, que regulam o contrato de mandato, parecem não autorizar a devolução das remunerações em caso de infidelidade. O artigo 667 do Código Civil, por exemplo, apenas estabelece que “O mandatário é obrigado a aplicar toda sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente”.

Diante das considerações acima, é evidente que a Doutrina do Servo Infiel, enraizada no Direito do Trabalho norte-americano, enfrentaria desafios significativos caso se aventurasse no cenário jurídico trabalhista brasileiro. A complexidade das relações de trabalho, a diversidade normativa e, sobretudo, a concepção diferenciada do contrato de emprego no contexto brasileiro dificultariam a aplicação direta dessa doutrina.

A doutrina brasileira historicamente rejeitou a ideia de que o empregado atua como mandatário de seu empregador, uma premissa fundamental para aplicação da Doutrina do Servo Infiel. Além disso, a legislação específica, como a CLT, a Lei n.º 4.886/65 e o Código Civil, não prevêm disposições que respaldem a aplicação desse princípio no contexto trabalhista brasileiro. Assim, qualquer eventual aplicação dependeria não apenas de uma reinterpretação profunda da natureza do contrato de trabalho, mas também de alterações legislativas substanciais para se possibilitar a importação da doutrina às relações trabalhistas no Brasil.


Referências

 

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Presidência da República, Brasília, DF, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 24 jan. 2024.

 

BRASIL. Lei n. 4.886, de 9 de dezembro de 1965. Regula as atividades dos representantes comerciais autônomos. Presidência da República, Brasília, DF, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4886.htm. Acesso em 24 jan. 2024.

 

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.

 

ESTADOS UNIDOS. Court of Appeals of the State of New York. Feiger v. Iral Jewelry, Ltd., 41 N.Y.2d 928, 394 N.Y.S.2d 626, 363 N.E.2d 350, N.Y. 1977.

 

ESTADOS UNIDOS. Appellate Division of the Supreme Court of New York, Fourth Department. R.M. Newell Co., Inc. v. Rice, 236 A.D.2d 843, 653 N.Y.S.2d 1004, N.Y. App. Div. 1997.

 

ESTADOS UNIDOS. Court of Appeals of the State of New York. Murray v. Beard, 102 N.Y. 505, 2 N.Y. St. Rptr. 466, N.Y. 1886.

 

ESTADOS UNIDOS. District Court of the United States for the Southern District of New York. Musico v. Champion Credit Corp., 764 F.2d 102, 113, 2d Cir. 1985.

 

ESTADOS UNIDOS. District Court of the United States for the Southern District of New York. Trounstine v. Bauer, Pogue & Co, 144 F.2d 379, 383, 2d Cir. 1944.

 

ESTADOS UNIDOS. District Court of the United States for the Southern District of New York. Phansalkar v. Andersen Weinroth Co., 00 Civ. 7872 (SAS) (S.D.N.Y. Nov. 1, 2001.

 

ESTADOS UNIDOS. Supreme Court, Appellate Division, First Department, New York.. Mahn v. Major, Lindsey, & Afr., LLC, 74 N.Y.S.3d 7, 159 A.D.3d 546, 2018 N.Y. Slip Op. 1888, N.Y. App. Div. 2018.

 

ESTADOS UNIDOS. Supreme Court of the State of New York of New York County. Beach v. Touradji Capital Mgmt., 64 Misc. 3d 1230, 2019 N.Y. Slip Opinion 32416, 117 N.Y.S.3d 803, N.Y. Sup. Ct. 2019.

 

ESTADOS UNIDOS. Supreme Court of the State of New York of New York County. Pozner v. Fox Broad. Co., 2019, N.Y., Slip Opinion, 33415, N.Y. Supreme Court, 2019.

 

FRIEDMAN, Richard. The ‘Faithless Servant’ Doctrine Under Current New York Law. Linkedin, 1º set. 2022. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/faithless-servant-doctrine-under-current-new-york-law-friedman-1e. Acesso em: 24 jan. 2024.

 

TANNENBAUM HELPERN SYRACUSE & HIRSCHTRITT LLP. A New York Appellate Court’s Recent Decision Reminds Us that the Faithless Servant Doctrine is Alive and Well in New York. Disponível em: https://www.thsh.com/publications/a-new-york-appellate-courts-recent-decision-reminds-us-that-the-faithless-servant-doctrine-is-alive-and-well-in-new-york. Acesso em 24 jan. 2024.

 

[1] A precariedade de tal construção é, contudo, óbvia. Afora as situações especiais consubstanciadas nos chamados cargos de confiança e em certos trabalhos altamente qualificados, não há semelhante intensidade de fidúcia na relação empregatícia (observe-se o trabalho não qualificado e em regime de produção maciça, por exemplo). De par com isso, mesmo em algumas situações marcadas pela elevada confiança entre as partes (trabalho doméstico, ilustrativamente), o tipo de fidúcia inerente à relação jurídica não transfere necessariamente poderes do empregador ao empregado: ao contrário, pode até mesmo acentuar a subordinação do obreiro. (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 361).

[2] DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. p. 363.

 

Autores

  • é doutorando em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp), mestre em Direito do Trabalho pela UDF, especialista em Direito do Trabalho pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha).

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