Opinião

Estado e a questão social no pensamento do liberal João Arruda

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1 de fevereiro de 2024, 7h15

Acompanhando a tendência internacional, o Brasil foi palco de amplas transformações estruturais, sobretudo de caráter modernizador. No bojo desse processo, as reflexões acerca do Estado merecem destaque. Diversos intelectuais, de origem social e formação variadas (por exemplo, teórico-metodológica e/ou ideológica), dedicaram-se a analisar as transformações históricas decorrentes.

No período entre guerras (novembro/1918 a setembro/1939), circulou na esfera pública uma cultura política autoritária, na qual o Estado era considerado não só indutor de investimentos, mas tutor dos atores sociais, responsável por arbitrar as diferenças sociais e os conflitos econômicos (questão social) de maneira racional e assertiva. Não custou, nesse sentido, a ser também responsabilizado pelos horrores da Primeira Guerra.

A democracia liberal se tornou mal vista perante a opinião pública, tida como um regime fraco, incapaz de garantir a ordem social necessária ao progresso material dos povos. De acordo com o historiador René Rémond, “a crise da democracia está no sentimento, exato ou errado, da inadequação dos princípios e das instituições da democracia clássica, isto é, parlamentar e liberal, às circunstâncias, aos problemas e às disposições do espírito público” [1].

Trajetória
Nesta análise, revisito as ideias do liberal João Braz de Oliveira Arruda (1891-1943), profissional vinculado ao meio jurídico, particularmente à Faculdade de Direito de São Paulo, com contribuição ao pensamento político brasileiro. Ao fim e ao cabo, ele considera que o regime político republicano não trouxe a instauração da res publica, sendo um processo incompleto no Brasil.

O bacharel em Direito (1877-1881) se dividiu entre a advocacia e a magistratura até 1896, quando migrou para a carreira acadêmica, atuando na mesma instituição onde se formou, tendo alcançado a posição de catedrático. Foi um estudante brilhante, além de autor prolífico, com atuação na imprensa. A proposta de João Arruda rompia com a tradição positivista, indicando a superação da prática autoritária da Primeira República e a incorporação da questão social na doutrina liberal.

Suas ideias sobre essa discussão foram externadas no livro “Do Regime Democrático”, publicado em 1927, trazendo como um dos pontos originais da reflexão, a teorização sobre a questão social no cerne do pensamento liberal. O trabalho intelectual de João Arruda confirma, por outros caminhos, a constatação da historiadora Maria Helena Capelato quanto à flexibilização da prática liberal, sem que isso implicasse o abandono da teorização e da reflexão doutrinária [2].

Aperfeiçoamento da organização social
Na década de 1920, conjuntura do pós-Grande Guerra, a questão social era um problema da máxima gravidade, acompanhado da necessidade de estruturação e montagem de um exército nacional. Ressalta o autor que o período em consideração seria conturbado, obrigando os seus contemporâneos a “corrigir os erros das gerações passadas”. Destarte, o acadêmico considera que o “aperfeiçoamento de nossa organização social” poderia ser obtido por meio de uma série de reformas sociais, nas quais o Estado teria um papel reservado (ARRUDA, 1949 [1927], p. 132) [3].

Em relação a esse tópico, a essência do pensamento do autor é o resultado da adaptação de uma premissa de caráter econômico, elaborada originalmente por Adam Smith, ou seja, “deve o Estado fazer tudo quanto se mostrar o indivíduo incapaz de levar a termo”. Três possibilidades explicariam a desmotivação dos indivíduos por atuarem em determinado segmento:

  • impossibilidade de obtenção de vantagem pecuniária;
  • medo de não conquistar nenhum retorno no investimento;
  • a impropriedade de investimento exclusivamente privado sem a participação do Estado.

A intervenção do Estado, nesse sentido, nunca esteve ausente no liberalismo. Entretanto, não recebeu a devida atenção. Nessa doutrina, tal mecanismo deve ser usado com muito critério e moderação. Os tempos absolutistas de Luís XIV — sintetizado na célebre frase “L’État c’est moi” — tinham ficado para trás. Portanto, nada mais justificaria o temor com relação à ação estatal, apesar da necessidade de vigilância constante por parte dos cidadãos para se precaver de possíveis riscos. O Estado, desde que em formato democrático, só traria benefícios à sociedade com a sua atuação e fiscalização.

Logo, é correta a interpretação, hegemônica em alguns meios políticos, de que o individualismo presente na doutrina liberal neutraliza e/ou impede a ação coletiva? De modo algum! Trata-se de um equívoco interpretativo, disseminado sistematicamente no debate público. Ao contrário dessa interpretação hegemônica, o individualismo de sua doutrina não invalida a ação coletiva, mas a limita e a reduz ao mínimo necessário, sendo mesmo imperativa sempre que o bem comum esteja sob ameaça.

Como era de praxe entre os liberais, Arruda também era antissocialista. Ainda assim, seu diagnóstico sobre o agravamento da condição de vida entre os operários converge com a visão de seus adversários de doutrina, pois também considera que “as máquinas vieram agravar a situação das classes menos favorecidas da sorte” [4], mas ressalvando que sem elas a situação poderia ser ainda pior.

Por certo, a postura antirrevolucionária e defensora do reformismo já se tornou perceptível ao leitor. Arruda não considerava possível a realização de um conjunto amplo de transformações a um só tempo. Isso porque, argumenta, “não é para o cérebro de um homem, não é mesmo para uma geração transformar radicalmente tudo quanto os séculos constituíram” [5].

Educação é de vital importância
A reforma defendida por este liberal não poderia ser de ordem econômica apenas, mas sim de caráter amplo e plural, pois eram muitos os problemas que assolavam o país, portanto muitas deveriam ser as maneiras de enfrentá-los. Dentre elas, a educação é vista como sendo de vital importância.

De um lado, seria o catalisador do desenvolvimento econômico; de outro, seria o neutralizador da luta de classes, compreendida como “um dos mais sinistros fatores das desgraças na comunhão”.[6] Os interesses sociais e os individuais não são antagônicos, mas complementares, desde que o regime democrático esteja em vigor.

O regime democrático, por equacionar a “dimensão individual e a dimensão social”, possibilita aos indivíduos trabalharem pelo bem comum. Em contrapartida, somente nas oligarquias haveria uma estratificação social rígida, de tal modo que as classes sociais se convertessem em castas.

Conquanto democrata preocupado com a estratificação social e defensor de reformas sociais, Arruda atribui um papel especial à elite, que seria o de indicar o sentido e os rumos das reformas, seja pela ação da lei e da imposição da autoridade, seja pela ação empreendedora.

O projeto reformista deveria atuar em muitas frentes, mas a principal contribuição se daria em relação ao problema do trabalho, considerando todas as categorias profissionais e não apenas o operariado, como era praxe naquela época. A categoria “questão social” não mais deveria ser entendida como questão operária apenas.

A ação sindical demonstrava ter “[…] o movimento de transformação social […]” transitado da classe operária para as demais, sendo a maior prova da nova demanda de intervenção do Estado no social. Uma vez “melhorada incontestavelmente a situação da classe operária, seja por um movimento altruístico, seja pelo temor infundado, vão e tolo da imaginária revolução social […]” [7].

As intervenções, alerta, não são atos inertes. A cada intervenção do Estado na economia haveria uma reação por parte dos proprietários! Nesse sentido, se a intervenção resultar na redução das horas de trabalho dos operários sem a redução dos salários, correr-se-ia o risco de um efeito colateral, ou seja, “[…] a alta do produto, porque o capitalista sempre sabe tirar de outrem o que se vê forçado a perder, e essa alta veio afetar o modesto orçamento dos membros das classes assalariadas, que não a dos operários propriamente ditos” [8].

A ação estatal é concebida a partir dos quadros da modernidade, sendo a intervenção pensada como sendo de caráter preventivo, isto é, deve o Estado agir, sempre que possível, antes que o problema ocorra, adotando medidas para dificultar a incidência de problemas sociais.

A elaboração de leis é parte importante do processo reformista, porém não mais que a correta e eficaz aplicação delas. A função do poder público, em todas as instâncias, era a de garantir isonomia no tratamento entre as classes sociais. Dessa maneira, “busca-se o interesse da comunhão, procura-se […] que a sociedade não seja mãe para um limitadíssimo número, e madrasta para a multidão” [9].

Em suma, as reformas sociais são processos complexos e, por isso, demandam acuidade e estudo sistemático antes de serem levadas a efeito. Se mal aplicadas, podem resultar em efeitos colaterais graves. Além disso, requer do poder público uma avaliação de suas repercussões perante os diversos segmentos da sociedade. Entretanto, por maiores que sejam os cuidados adotados pelos governantes, eles não devem esquecer que

“Não podem as mais altas inteligências apanhar tudo quanto se passa no seio da comunhão social, e assim deve o reformador, por mais rápidas que sejam as mudanças na vida social, atender ao que deseja o povo, e examinar o que é possível ser feito no momento atual e no meio em que vai operar a mudança” [10].


[1]             RÉMOND, René. Introdução à história do nosso tempo: do Antigo Regime aos nossos dias. Tradução de Teresa Loureiro. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 2003. p. 319.

[2] ARRUDA, João. Do regime democrático. 2. ed. São Paulo: Universidade, 1949 [1927]. CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Brasiliense, 1989.

[3] ARRUDA, op. cit., p. 132.

[4] ARRUDA, op. cit., p. 128.

[5] Ibid., p. 129.

[6] Ibid., p. 131.

[7] ARRUDA, op. cit., p. 131.

[8] Ibid., p. 131-132.

[9] Ibid., p. 135-136.

[10] Ibid., p. 137.

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