Evolução da (i)mutabilidade do nome civil no direito brasileiro
7 de janeiro de 2024, 9h17
Durante muito tempo o nome foi tratado mais como um dever do que propriamente um direito do indivíduo, principalmente em virtude do interesse público de identificação e distinção dos indivíduos, no qual preponderava quase sempre sobre o aspecto individual e privado da pessoa, o que fez com o ordenamento jurídico brasileiro consagrasse a ideia de imutabilidade do nome civil.
Apequenou-se, durante esse período, a importância do nome como elemento designativo do indivíduo e fator de sua autodeterminação pessoal na sociedade, sendo sua importância reconhecida desde os primórdios da humanidade [1].
Com a mudança de paradigmas no Direito, situando-se agora a pessoa humana no centro gravitacional de todo o arcabouço jurídico, a lei civil foi sendo remodelada aos poucos, para possibilitar a alteração do nome em algumas situações. Essas modificações foram ocorrendo, ainda que lenta e timidamente, em razão da consideração do nome dentro da teoria dos direitos da personalidade, que, como bem lecionou Pontes de Miranda, trouxe para o mundo “uma nova manhã do Direito” [2].
Não é por menos que o artigo 16 no Capítulo II do Código Civil de 2002, capítulo este destinado aos Direitos da Personalidade, dispôs que “toda a pessoa tem direito ao nome, neles compreendidos o prenome e o sobrenome”, sendo o nome considerado como a mais expressiva manifestação da personalidade [3].
Isso se deve e, novamente se vale das precisas lições de Pontes de Miranda, porque a “personalidade é possibilidade de ser sujeito de direitos e de deveres, de pretensões, obrigações, ações e exceções. Não se pode atribuir algo, ativa ou passivamente, sem se saber, a quem” [4].
Nessa esteira, o direito ao nome constitui um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da própria dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da nossa Constituição Cidadã). Ainda, de forma expressa, o direito ao nome adquiriu “status supralegal”, tendo em conta sua previsão na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao Direito Brasileiro por meio do Decreto nº 678/1992, que preceitua que toda pessoa tem direito a um prenome e ao sobrenome de seus pais ou ao de um deles.
Foi nesse contexto de sobrepujança do nome-direito em face do nome-dever, que a imutabilidade do nome consagrada no histórico Regimento nº 18.542 (Decreto nº 18.542, de 24 de dezembro de 1928), que disciplinava a execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Beviláqua, deu lugar a uma espécie de “imutabilidade mitigada” ou o que a doutrina denominou de definitividade do nome.
Ocorre que as hipóteses inicialmente incorporadas na legislação não atendiam, nem de longe, aos anseios daqueles que, de uma forma ou de outra, eram insatisfeitos com seu próprio nome, seja porque a alteração imotivada apresentava prazo curto (de um ano após a maioridade) e se sujeitava a um processo judicial, com as custas envolvidas e a imperatividade de contratação de advogado, seja porque as demais hipóteses não prescindiam de motivação idônea para quebrar o dogma da imutabilidade do nome [5].
Destarte, andou bem a Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, ao facilitar e desjudicializar a alteração do nome, extinguindo o fatídico prazo decadencial de um ano após a maioridade e prevendo, de maneira igualmente relevante, a possibilidade de sua alteração extrajudicial.
Não são poucos os casos de insatisfação pessoal em relação ao próprio nome, afinal, mesmo sendo um direito da personalidade, por questões óbvias ele é exercido, ex ante, por terceiras pessoas (pais, avós ou representantes legais), sendo certo que tal escolha repercute (negativamente ou não) na vida inteira do indivíduo que será identificado por ele.
O Brasil, diferentemente do regramento do Código de Registro Civil de Portugal [6] e de países como Dinamarca, Hungria e Islândia, não apresenta lista fechada de nomes, de forma a evitar nomes vexatórios, ridículos ou sem nenhum sentido, o que faz com que o registrador tenha papel de grande relevo na obrigação de recusar o registro de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores (artigo 55, §1º, da Lei 6.015/73), tutelando, assim, os direitos da criança a ser registrada.
“Fui infeliz com meu nome a minha vida toda”, essa é a história de Ana Ruth, a primeira cearense a conseguir modificar o prenome após a alteração na Lei dos Registros Públicos, conforme noticiou a Defensoria Pública do Ceará [7].
E esse caso está longe de ser o único. Segundo dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) [8], após um ano de vigência da Lei nº 14.382, mais de 10 mil brasileiros mudaram de nome no cartório (exatos 10.900 brasileiros), sendo 338 pedidos no Ceará de Ruth e 2.639 solicitações no estado de São Paulo.
Entende-se que a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), instituída pelo Provimento nº 46/ 2015 do Conselho Nacional de Justiça e posteriormente pelo Provimento nº 149, de 30.8.2023, tem papel relevante para efetivação da alteração promovida pela lei, uma vez que a CRC é capaz de fornecer a segurança jurídica necessária para permitir a ampliação das hipóteses de mutabilidade do nome civil.
E essa solução, não por mera coincidência, encontra-se perfeitamente em sintonia com o pensamento de Pontes de Miranda. Segundo o ínclito jurista, a tutela de terceiros não deve implicar, necessariamente, restrições à mutabilidade do nome, mas sim o reforço à publicidade [9].
Tem-se hoje, portanto, que a pessoa pode alterar o nome após completar 18 anos, quando se torna capaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil, não existindo mais o prazo decadencial para o exercício desse direito. Assim, a alteração do nome funciona como um direito potestativo adormecido no tempo, que se inicia quando o individuo completa os seus 18 anos de idade e se protrai no decorrer de sua vida.
Ocorre que a espera por esse lastro temporal da maioridade para aqueles que lutam diariamente contra o seu próprio nome, significa um período exacerbado e que pode repercutir negativamente na vida toda da pessoa e na sua capacidade de autoidentificação e autodeterminação.
De forma alguma menospreza-se as benesses mundanas oriundas da alteração promovida pela Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, que facilitou a modificação do nome, que agora não se submete ao prazo de um ano para ser realizada e pode ser solicitada diretamente no cartório de registro civil de pessoas naturais.
Os dados da Arpen são precisos ao demonstrar que a lei “pegou” rapidamente e atendeu aos anseios da sociedade que clamava pela “desburocratização” da alteração do nome.Ainda assim, entende-se que a legislação brasileira pode ir além, ampliando mais o campo de proteção do nome como manifestação maior da personalidade humana e sua autodeterminação pessoal, aperfeiçoando as excelentes contribuições oriundas da Lei nº 14.382/2022.
E a primeira situação é referente à maioridade civil como requisito para alteração do nome. Como já exposto, a espera para completar 18 anos de idade pode ser um fardo muito grande para aqueles que convivem desde a infância com a dificuldade de aceitação do próprio nome. Lembre-se que, nessa idade, a pessoa normalmente já completou o ensino médio no colégio e já ingressou na faculdade e/ou no mercado de trabalho.
Pela legislação civil atual, a emancipação voluntária [10] poderia ser uma saída juridicamente viável para que o maior de 16 e menor de 18 anos pudesse alterar seu nome, afinal a emancipação antecipa a capacidade civil plena, tornando o menor capaz de praticar os atos da vida civil sem a tutela dos pais. Assim, o menor emancipado pode se dirigir diretamente ao cartório e solicitar a alteração do nome, da mesma forma que é permitido ao maior de 18 anos.
Ocorre que na hipótese de o menor que deseja alterar seu nome não ser emancipado, condicionar essa alteração ao ato de emancipação é medida desarrazoada, porquanto a emancipação apresenta efeitos diversos (inclusive negativos [11]), como a extinção do poder familiar e a perda da condição de dependente para fins de recebimento de pensão por morte no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) [12], dentre outros efeitos econômicos e referentes à responsabilidade civil decorrentes da antecipação da maioridade civil.
Dessa forma, aventa-se a viabilidade de o menor em idade núbil [13], ou seja, do adolescente maior de 16 anos, alterar seu próprio nome, desde que seja autorizado pelos pais, independentemente de emancipação. A antecipação do exercício do direito de alterar o próprio nome ao relativamente incapaz é medida apta a amenizar todos os infortúnios causados pela insatisfação causada até então na vida do jovem e, ao mesmo tempo, garante a segurança de que a sua alteração está sendo realizada por quem tem consciência e discernimento suficiente para tanto.
Ainda nesse escopo de alargar a proteção ao nome civil, projeta-se, como mais um importante avanço da legislação civil, o direito de o indivíduo alterar o seu nome mais de uma vez diretamente no cartório, sem a limitação imposta pela Lei nº 14.382/2022, em especial no caso do arrependimento da mudança de seu nome de batismo.
E a justificativa é simples, a aplicação do Princípio do Paralelismo das Formas [14] ou também denominado de Simetria, segundo o qual a revogação ou a modificação de um ato jurídico deve ser concretizada pela mesma forma do ato originário, valendo-se o titular de similar instrumento e das mesmas formalidades, sem o qual teríamos uma verdadeira assimetria.
Para Pontes de Miranda, como já exposto, nada impediria que alguém mudasse de nome várias vezes durante a vida, o problema se encontraria justamente na publicidade dessas mudanças [15].
Com efeito, o procedimento para alteração do nome no cartório de registro civil de pessoais naturais, sobretudo com a implementação da Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais, mostra-se como meio suficiente para tutelar o interesse público que cerca as relações do nome como dever, resguardando a publicidade descrita por Pontes de Miranda e evitando-se situações fraudulentas, mas, ao mesmo tempo, tutelando a faceta mais essencial do nome, do nome-direito e sua relação máxima com os direitos da personalidade e com a dignidade da pessoa humana.
Diante do exposto, a primazia do nome-direito em face do nome-dever é resultado de uma lenta e gradativa evolução do ordenamento civil brasileiro, que passou a reconhecer a importância do nome como elemento designativo do indivíduo e fator de sua autodeterminação pessoal na sociedade Nesse contexto, a tutela do nome-direito foi alvo de importante avanço com o advento da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, no entanto, intui-se que a legislação civil brasileira pode e deve ser objeto de maiores avanços, consagrando o nome civil como a maior expressão da personalidade humana e fazendo por prevalecer, no caso da sua mutabilidade, o interesse privado e individual sobre o seu aspecto público, afinal, se o nome é meu, quem escolhe sou eu.
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REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14382.htm
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm.
BRASIL. Provimento CNJ n. 146, de 30 de agosto de 2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5333.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 10ª ed., São Paulo, RT, 2015.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 1: Teoria Geral do direito civil. 22ª. ed., revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v.1, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010.
KÜMPEL, Vitor Frederico; Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral, v. 2, São Paulo, YK, 2017.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos – teoria e prática, 8ª ed., Salvador, Juspodvm, 2017.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo VII, Campinas: Bookseller, 2000.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2014.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. v. 1, 5ª ed, São Paulo: Atlas, 2005.
[1] Já em Êxodo 33:12 Moisés expressava o conhecimento profundo e íntimo de Deus dizendo que Deus o “conhecia pelo nome”.
[2] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo VII, Campinas: Bookseller, 2000, p. 2.
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. v. 1, 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 210.
[4] MIRANDA, 2000, p. 96.
[5] Alguns Estados da Federação já permitiam que a alteração do nome fosse realizada diretamente no cartório, porém limitado ao 19º aniversário.
[6] A lista de nomes permitidos em Portugal pode ser acessada em: https://irn.justica.gov.pt/Portals/33/Regras%20Nome%20Proprio/Lista%20Nomes%20Pr%C3%B3prios.pdf?ver=WNDmmwiSO3uacofjmNoxEQ%3D%3D.
[7] Disponível em: https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/fui-infeliz-com-meu-nome-a-minha-vida-toda-apos-mudanca-na-lei-pessoas-podem-ir-ao-cartorio-alterar-prenome/.
[8] Disponível em: https://arpenbrasil.org.br/sbt-brasil-mais-de-10-mil-brasileiros-mudaram-de-nome-no-ultimo-ano/.
[9] MIRANDA, 2000, p. 114.
[10] A emancipação voluntária é aquela que se dá pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos.
[11] Lembre-se que a emancipação é ato irrevogável.
[12] A emancipação, desde a Lei nº 13.183/2015, não é mais causa de cessação do benefício de pensão por morte já implantado, porém continua sendo causa de exclusão da condição de dependente caso a morte venha a ocorrer depois da emancipação (artigo 16, inciso I, da Lei nº 8.213/1991).
[13] Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
[14] Paulo Bonavides aborda o princípio do paralelismo das formas e leciona que “resulta que um ato jurídico só se modifica mediante o emprego de formas idênticas àquelas adotadas para elaborá-lo” (BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 106).
[15] MIRANDA, 2000, p. 114.
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