A negociação pelo método Harvard em conflitos da administração pública
8 de dezembro de 2024, 8h00
Nós, que nos aventuramos a estudar e a operar o Direito Administrativo, sabemos que é possível negociar soluções alfaiatadas, sob medida, para resolver controvérsias entre particulares e a administração pública.
Vivemos, afinal, a era da consensualidade na administração pública, em que o exercício da autoridade pelo poder público cede, ou, ao menos, compartilha espaço com a liberdade negocial e com o diálogo, em prestígio à obtenção de soluções colaborativas para os desafios públicos cotidianos, inclusive para os seus litígios – sempre dentro da moldura da juridicidade, naturalmente.
Com a clareza que lhe era característica, o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto elencou as vantagens que envolvem a consensualização do agir administrativo:
“É inegável que a renovada preocupação com o consenso, como forma alternativa de ação estatal, representa para a Política e para o Direito uma benéfica renovação, pois contribui para aprimorar a governabilidade (eficiência), propicia mais freios contra os abusos (legalidade), garante a junção de todos os interesses (justiça), proporciona decisão mais sábia e concedente (legitimidade), evita os desvios morais (licitude), desenvolve a responsabilidade das pessoas (civismo) e torna os comandos estatais mais estáveis e facilmente obedecidos (ordem)” [1].
Este paradigma da consensualidade administrativa foi bem reforçado no ano de 2018, com a inclusão do artigo 26 na Lindb, que trouxe uma permissão normativa abrangente para a celebração de acordos administrativos que visem a eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público.
Até aqui, recapitulação. Nenhuma novidade para o estudioso do Direito Administrativo.
Há, no entanto, uma questão raramente posta: como chegar aos acordos público-privados? Como deve ser construído o consenso num litígio que envolve a administração pública? Enfim, como chegar ao sim administrativo?
O tema possui ângulos variados.
Questões sobre integridade e sobre a processualidade administrativa dessas negociações são relevantíssimas, pois envolvem a observância da legalidade, da formalidade e da ética – e, a reboque, a preservação da memória administrativa, a sujeição ao controle e o incentivo à moralidade, à impessoalidade e à isonomia durante as tratativas [2].
Mas, para além da integridade e da processualidade, como deve ocorrer a negociação em si? Que método e que técnicas devem ser empregadas pelos negociadores para a obtenção de bons acordos?
O TCU adotou o método Harvard de negociação em seus contratos de CPSI
No último artigo que publiquei nesta coluna, noticiei que o TCU assinou três Contratos Públicos para Solução Inovadora (CPSIs).

Sucede que, de modo vanguardista, esses contratos preveem a negociação como meio de resolução de controvérsias. E vão além: estabelecem a natureza e o método de negociação a ser utilizado em caso de controvérsia.
O método Harvard de negociação foi adotado como um meio de resolução de controvérsias para esses contratos.
Diz a cláusula contratual: “O método a ser aplicado é o da ‘negociação baseada em princípios’ da Escola de Harvard, na qual o negociador deve procurar benefícios mútuos sempre que possível e que, quando seus interesses entram em choque, o resultado deve ser baseado em padrões justos e independentes da vontade de qualquer das partes.”.
E outra cláusula: “A negociação será integrativa, isto é, aquela em que as partes cooperam entre si para obter o máximo possível de benefícios, conjugando seus interesses em um acordo ganha-ganha.”
Como funciona o método Harvard de negociação?
Em 2014, tive a oportunidade de frequentar um curso de negociação na Harvard Law School. Chamava-se “Negotiation Workshop: Strategies, Tools, and Skills for Success”, com 70 participantes de 19 países. Naquela oportunidade, depois de ler o livro-base do método (“Como chegar ao sim? Como negociar acordos sem fazer concessões”, de Roger Fisher, William Ury e Bruce Patton), tive o primeiro contato prático com a sua aplicação.
Basicamente, a partir de exercícios simulados multiparte, sistematizando um conteúdo útil que nunca ofende o bom senso, os professores do método de negociação da Escola de Harvard ensinam diretrizes a serem praticadas pelos negociadores. As principais diretrizes do método para a obtenção do acordo, que trago de minhas anotações daquele curso, são as seguintes:
(1) o negociador deve endereçar seus esforços para identificar e conformar os interesses das partes (necessidades que cada parte pretende satisfazer), sem que haja um foco excessivo sobre as posições das partes (o que efetivamente cada parte exige da outra para celebrar um acordo);
(2) o negociador deve se esforçar criativamente para descobrir e gerar valores não evidentes que conformem melhor os interesses de todas as partes, a partir da exploração livre e múltipla de opções novas ou mais completas (fase de ideação não-vinculante);
(3) o negociador somente deve celebrar o acordo caso os seus próprios interesses sejam satisfeitos adequadamente, caso os interesses da(s) contraparte(s) sejam satisfeitos de forma aceitável e caso os interesses de terceiros de forma tolerável;
(4) o negociador somente deve celebrar o acordo caso este seja melhor do que o seu BATNA (Best Alternative To a Negotiated Agreement). Explicando melhor, o acordo deve se revelar melhor do que a sua melhor alternativa ao não-acordo, sendo desejável que o negociador, durante a negociação, esforce-se em identificar e em melhorar o seu BATNA, sendo possível até mesmo discuti-lo com a contra-parte;
(5) o negociador deve reconhecer a negociação como um fenômeno comunicacional e prezar por um processo dialógico eficiente, em que há interlocução efetiva e clara entre os negociadores;
(6) o negociador deve separar as pessoas que negociam e os problemas que estão em discussão, fazendo da negociação uma oportunidade para construir um relacionamento cooperativo entre os negociadores e entre as partes;
(7) o negociador deve preferir opções que sejam baseadas no uso de critérios, precedentes e padrões objetivos, que tragam legitimidade externa ao acordo, para que ninguém se sinta ludibriado; e
(8) o negociador não deve assumir compromissos prematuramente, antes de percorrer as etapas do método, e somente deve celebrar o acordo se os compromissos a serem assumidos pelas partes forem específicos, firmes e implementáveis.
Como resultado, aqueles que se utilizam do método Harvard de negociação costumam atingir acordos mais duradouros, harmônicos e justos, que se legitimam a partir do próprio processo de negociação.
O método Harvard de negociação contrapõe-se, assim, ao método tradicional de barganha negocial, mais adversarial e competitivo, em que cada parte tenta fazer prevalecer a sua posição a partir de solicitações de concessões à outra, costumeiramente acompanhadas de artimanhas da persuasão, como gatilhos, ameaças, blefes, em ambiente de tensão. Isso pode levar a ressentimentos futuros e traz instabilidade aos acordos.
Isso fica claro na breve introdução que Roger Fisher, William Ury e Bruce Patton apresentam em sua obra:
“[…] No método da negociação baseada em princípios, desenvolvido no Projeto de Negociação de Harvard (Harvard Negotiation Project), o negociador decide as questões por seus méritos, e não por um processo de barganha focado no que cada lado diz que vai ou não fazer. Ele sugere que você busque ganhos mútuos sempre que possível e que, quando os interesses forem conflitantes, insista em fazer com que o resultado se baseie em critérios justos, seja qual for a vontade das partes. O método de negociação baseada em princípios é firme com os méritos e gentil com as pessoas. Não emprega truques e dissimulações. Ensina o negociador a obter o que merece sem abrir mão da integridade. Permite que ele seja justo ao mesmo tempo que o protege de quem quer tirar vantagem da sua justeza” [3].
Embora, à primeira vista, para muitos, tudo isso possa parecer um conjunto de obviedades, não o são para todos, e o mérito maior, a meu ver, é outro: o método de negociação de Harvard envelopa essas boas práticas negociais em um protocolo, um rito, um procedimento, orientando e facilitando o atingimento de resultados para os negociadores.
No caso da administração pública, de forma especial, o método Harvard de negociação não se contrapõe apenas ao método de barganha negocial, e sim a todo o espírito e modo de agir do antigo direito administrativo.
As diretrizes propostas pelo método conformam diretamente a contemporânea era de pragmatismo e consensualidade na administração pública porque permitem a construção de um agir administrativo criativo e despido de sua unilateralidade, com seus clássicos atributos da imperatividade e da coercitividade.
A título de conclusão, entendo que a incorporação do método Harvard em contratos celebrados pelo TCU representa um precedente administrativo que merece ser conhecido, pois representa um progresso na forma como os conflitos em contratos administrativos devem ser gerenciados.
Mais do que isso. Considerado o protagonismo do TCU no universo das contratações públicas e considerada a eficácia internacionalmente reconhecida do método Harvard de negociação, tenho a boa expectativa de que, doravante, esse meio de resolução e prevenção de conflitos seja adotado mais vezes e, assim, possa irrigar, qualitativa e pragmaticamente, a era do consenso na administração pública brasileira.
[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos Institutos Consensuais da Ação Administrativa. Revista de Direito Administrativo. vol. 231. Rio de Janeiro: Renovar, jan./mar. 2003, p. 145. Neste mesmo artigo, o autor reforça os argumentos que subsidiam o consensualismo na Administração Pública: “pela consensualidade, o Poder Público vai além de estimular a prática de condutas privadas de interesse público, passando a estimular a criação de soluções privadas de interesse público, concorrendo para enriquecer seus modos e formas de atendimento” (p. 156).
[2] A propósito, esta preocupação foi objeto de minha tese de doutoramento, quando abordei diferentes espécies de diálogos público-privados, inclusive as negociações prévias a acordos de leniência, termos de ajustamento de conduta (TAC) e termos de compromisso de cessação de prática (TCC). Cf. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos Público-Privados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[3] FISCHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como chegar ao sim? Como negociar acordos sem fazer concessões. Rio de Janeiro: Sextante, 2018. p. 18.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!