Opinião

Entre descriminalização e despenalização das drogas: RE 635.659 e PEC 45/2023

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13 de agosto de 2024, 16h16

Descriminalização e despenalização: conceituação necessária

O artigo 16 da Lei nº 6.368 de 1976 tipificava como crime a conduta de uso de entorpecente bem como punia com pena privativa de liberdade o agente que trazia para seu consumo próprio qualquer quantidade.

A Lei nº 11.340/06, por seu turno, promoveu profunda alteração da regulamentação do porte de droga para consumo pessoal, embora ainda previsto no título de “Crimes e Das Penas”.

O legislador promoveu o que ficou conhecido como despenalização da conduta, importa dizer, embora ainda seja uma conduta penalmente relevante, contudo, deixou de atribuir-lhe pena privativa de liberdade.

As críticas advindas da referida política de drogas diz respeito ao fato de que, apesar de despenalizar, a conduta continuou a ser tratada, para todos os efeitos jurídico-penais, como crime, isto é, o porte de droga para uso próprio não foi descriminalizado.

Apreendido portando droga, o indivíduo é conduzido em flagrante para a Delegacia de Polícia, sendo registrada a ocorrência, abrindo Termo de Compromisso, encaminhando-se para distribuição, informando Ministério Público e Poder Judiciário.

Embora não produza efeito para reincidência, a aplicação da advertência constava no histórico de pesquisa criminal de processos judiciais ajuizados em desfavor do indivíduo, com isso prejudicando os demais atos da vida civil, como empregabilidade, concursos públicos e outros.

RE 635.659: contexto e decisão adotada

O Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema 506: quinaia

Assim, o recurso em exame tinha como combate a tipificação, como crime, da conduta de porte de drogas para consumo pessoal, a despeito de não mais suscetível de aplicação de pena privativa de liberdade, restritiva de direitos e/ou multa.

Em julgamento concluído no último dia 26/6 a corte decidiu que, a disposição legal é incompatível com a Constituição, aniquilando os efeitos criminais remanescentes da conduta de porte de entorpecente para consumo pessoal:

“O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 506 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, para i) declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Luiz Fux; e ii) absolver o acusado por atipicidade da conduta, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux.”

Houve também debate em torno de qual quantia de maconha deve ser considerada como porte para consumo pessoal e a partir de qual quantia a ser classificado como tráfico, bem como necessidade de fundamentação idônea da autoridade para desconstituir a presunção.

Nota-se, de primeiro lanço, que o Supremo Tribunal não legitimou o porte de drogas, nem mesmo legalizou o consumo de entorpecentes, pois a conduta já estava desde 2006 despenalizada e, de certo modo, legalmente tolerada já que não atraía a pena privativa de liberdade.

Dessa forma, a questão enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal jogou luz sobre a necessidade de o Estado rever por completo a política de repressão ao tráfico de drogas.

 PEC 45/2023: objetivos

 A emenda à Constituição é a espécie legislativa exclusivamente do Poder Legislativo revestida da legitimação de sua votação de 3/5 dos membros de cada Casa em dois turnos de votação.

Em que pese ao leigo a burocracia do procedimento possa indicar uma dificuldade enorme em sua aprovação, imperioso mencionar que, com pouco mais de três décadas de sua promulgação, a Constituição Brasileira já com 132 emendas, assim, infelizmente, o processo legislativo de emenda não é tão rígido quanto deveria.

Outra característica é que, em razão da solenidade do quórum de votação, a proposta aprovada para emenda à Constituição não passa pelo controle de constitucionalidade do Presidente da República.

Ela é fruto da magnânima representatividade democrática por meio da qual os membros do Congresso Nacional votam o tema, aprovam e modificam a Constituição, o texto supremo da legislação do país.

Com o tema da descriminalização do porte de drogas não está sendo diferente, pois logo após o Supremo Tribunal Federal comunicar a Presidência do Congresso acerca da decisão, ganhou força a tramitação da PEC 45/2023 que pretende cuidar do tema.

“Art. 1º O caput do art. 5º da Constituição Federal passa a viger acrescido do seguinte inciso LXXX:

‘Art. 5º ………………………………………………………….

………………………………………………………………………

LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”

A proposta, assim, criminaliza a posse ou porte (trazer consigo) qualquer quantidade de entorpecente, embora não determine a espécie de pena mínima (se administrativa como advertência, inafiançável como o constituinte fez em outros casos) determina verdadeiro mandamento de criminalização.

Quando o Constituinte determina que tal conduta seja combatida pela política criminal não deixa margem de dúvida ao Legislador ordinário cabendo-lhe, dentre as espécies elencadas pela doutrina ao longo dos séculos, tipificá-la.

Dito de outro modo, o Constituinte não pede favores ao legislador ordinário, mas sim determina quais crimes básicos devem estar previstos na legislação a fim de serem protegidos os bens que a Constituição considera fundamentais.

Com a PEC 45/2023 o constituinte derivado reformador, exercido pelo Congresso Nacional, pretende incluir no rol de direitos e garantias fundamentais o combate ao porte e posse de drogas para consumo pessoal entre os crimes que tenha gravidade desta estatura.

Ainda, conforme fundamentação da referida PEC, o mandamento de criminalização do porte e posse de droga para consumo próprio deriva dos dispositivos constitucionais seguintes:

“No art. 5º, equiparou o tráfico aos crimes hediondos (inciso XLIII) e autorizou a extradição de cidadãos naturalizados que tenham se envolvido nesse crime (LI). No capítulo da Segurança

Pública, incumbiu à Polícia Federal, sem prejuízo das demais forças, “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins” (art. 144, § 1º, II).

Ainda na seara processual penal, determinou, no artigo 243, a expropriação de terras utilizadas para o plantio de drogas e a apreensão de quaisquer bens e valores decorrentes do tráfico.

Paulo Pinto/Agência Brasil

No Capítulo VII, por força da Emenda Constitucional nº 65, de 2010, estabeleceu explicitamente, no âmbito da proteção integral, a necessidade de “programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins (art. 227, § 3º, VII).”

Nesse compasso, o mandamento de incriminar o porte e a posse decorre implicitamente dos demais dispositivos que aplicam severas medidas de repressão ao tráfico como o confisco de bens. Nota-se que apesar de o constituinte vedar a expropriação de bens, na hipótese do tráfico há previsão expressa.

Assim, incriminar determinadas condutas que são lesivas aos direitos fundamentais atraem a implícita tutela penal constitucional sem a qual esvaziada estaria a proteção conferida aos valores supremos do Estado.

Em 2020, após deliberação pela Commission on Narcotic Drugs, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pela deliberação pela política internacional de drogas, decidiu por excluir a maconha (cannabis) do rol da primeva Convenção de 1961.

“After intensive considerations, the Commission decided today (by 27 votes to 25 and with one abstention) to delete cannabis and cannabis resin from Schedule IV of the 1961 Convention” (ONU, 2020).

Embora as decisões não possuam efeito vinculante em razão da soberania de cada Estado, a decisão daquela comissão reflete a tendência de diversos países em descriminalizar o porte e posse de droga para consumo pessoal.

A cláusula pétrea: árbitro no atrito entre Legislativo e Judiciário?

 O texto da PEC traz em sua fundamentação o previsto conflito que poderá haver: com o julgamento do Supremo Tribunal Federal, descriminalizando a conduta, caberia (ou poderia) o Legislativo propor (e aprovar) emenda constitucional em sentido contrário:

“É de notar que a própria jurisprudência do STF reconhece a possibilidade de que emendas constitucionais possam ser editadas como consequência de decisões de constitucionalidade do próprio tribunal. E reconhecem, inclusive, que estas merecem maior deferência pelo Tribunal, motivo pelo qual consideramos adequada a eleição desta via – uma proposta de emenda à constituição – para sedimentar, definitivamente, a opção feita pelo constituinte originário a respeito do tema.”

A questão é tormentosa. De primeiro lanço há de ser considerado o ânimo entre os poderes. O relacionamento pode facilmente propiciar que este projeto de emenda não prossiga para votação e, decorrida a sessão legislativa, seja arquivado.

Porém, o choque de força entre os poderes (Legislativo e Judiciário) poderá implicar no estresse de esta PEC vir a ser votada e promulgada pelo Congresso Nacional, possuindo status constitucional.

Não se pode olvidar que a proposta de emenda à Constituição obedece às limitações constantes do próprio texto magno que, em caso de inobservância, implica em sua incompatibilidade (art. 60, § 4º).

O dispositivo traz o que se conhece por limitações materiais ao poder constituinte derivado reformador, temas que não podem ser abolidos, isto é, suprimidos sem que incorra na inconstitucionalidade.

A primeira perplexidade já reside no conhecido controle judicial de constitucionalidade das propostas de emenda à Constituição. Consoante tese já sacramentada, é possível ao Supremo Tribunal Federal exercer o controle antes mesmo que a PEC seja convertida em texto, quando a pretensão já ofenda explicitamente as denominadas cláusulas pétreas que representam as limitações materiais à reforma:

“Não raras vezes, impõe o constituinte limites materiais expressos à eventual reforma da Lei Maior. Cuida-se das chamadas cláusulas pétreas ou da garantia de eternidade (Ewigkeitsgarantie), que limitam o poder de reforma sobre determinados objetos. (…) Tais cláusulas de garantia traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade. (…) Tais cláusulas devem impedir, todavia, não só a supressão da ordem constitucional, mas, também, qualquer reforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade histórica” (MENDES, 1990, p. 96).

Logo, a proposta de reformar o texto constitucional que contrarie frontalmente o núcleo pétreo é natimorta e deve ser imediatamente excluído do processo legislativo, conforme pronunciamentos pioneiros da Corte:

“O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar” (Mandado de Segurança 21.747, Ministro Celso de Mello).

“O STF já assentou o entendimento de que é admissível a ação direta de inconstitucionalidade de emenda constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art. 60, § 4º, da CF).” Precedente: ADI 939 (RTJ 151/755). (ADI 1.946-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 29-4-1999, Plenário, DJ de 14-9-2001.)

Aqui é curial destacar que o controle de constitucionalidade da lei é realizado como paradigma o texto constitucional. Uma vez modificado o texto também haverá modificação do padrão de compatibilidade.

Logo, se a PEC 45/2023 modificar o texto constitucional, futura legislação sobre política incriminadora do uso de drogas se fará à luz da Constituição emendada, alterando o cenário e o jogo.

Por seu turno, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal já analisou, em outra situação, a tentativa de o Legislativo sobrepor-se à decretação de inconstitucionalidade de lei com a reedição da norma:

“5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal. 5.1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais” (ADI 5.105, ministro Luiz Fux).

Desse modo, o artigo 28 da Lei nº 11.343/06 é inconstitucional à luz do atual texto da Constituição, contudo, a modificação com a emenda acarretará a fixação de novo baluarte de compatibilização. Assim, o cenário do exercício da jurisdição constitucional altera-se profundamente.

Distante de conclusão sobre o tema, é possível afirmar que a aprovação eventual da PEC 45/2023 poderá constitucionalizar nova legislação sobre a incriminação do porte e posse de drogas para uso pessoal, uma vez que o paradigma para exercício do controle de constitucionalidade será diferente do texto utilizado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

Outrossim, o debate acerca do porte e da posse de droga para consumo pessoal, a quantificação, bem como a natureza da droga, não restou debatidos suficientemente pela sociedade civil.

A maconha é, de longe, o problema maior da traficância no Brasil, quando comparada aos efeitos maléficos da cocaína e outras drogas sintéticas do narcotráfico internacional que movimenta bilhões de dólares todos os anos além das fronteiras.

Autores

  • é mestre em Direito Constitucional, MBA em Gestão Tributária Estratégica, Membro Efetivo do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e professor.

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