Segunda Leitura

Importância da memória do Poder Judiciário para a história do Brasil

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de abril de 2024, 8h00

O Poder Judiciário ocupa relevante espaço na história de nosso país, pois todas as mudanças na vida nacional, desde revoluções armadas até alterações legislativas com poder de transformar a sociedade, acabam sendo discutidas nas instâncias judiciárias. Assim, milhares de processos narram como era o cotidiano nas famílias, os costumes, as discriminações, o relacionamento e o exercício do poder econômico e político.

No entanto, a preocupação com a guarda e a preservação da memória, inclusive a própria arquitetura judiciária, [1] nem sempre foram objeto de preocupações. Por décadas processos arquivados eram enviados aos arquivos púbicos, onde se desintegravam com o tempo ou serviam de alimento às traças.

Mas, nos anos 1990, o assunto assumiu maior importância, vários tribunais saíram em busca de seu passado. Em 2021, o CNJ, através da Resolução nº 316, [2] deu grande impulso a tal tipo de iniciativa. Uma rede de especialistas de áreas judiciárias diversas, como biblioteca, arquivos, salas de memória, oriundos de todos os ramos do Poder Judiciário, sob a liderança do juiz paulista, Carlos Alexandre Bottcher, discutem diariamente o aprimoramento de seus serviços.

Muito embora o avanços na área venha se dando em todos os tribunais de todas as Justiças, aqui o foco será  o projeto “Memória Online da Justiça Federal do Paraná”,[3] que vem, desde 2010,  restaurando e digitalizando processos da primeira fase da Justiça Federal (1891-1937), quando foi extinta pela Constituição do Estado Novo. Nada menos do que 1.269 processos encontram-se disponíveis para consultas na internet.

Breve panorama da Justiça Federal do Paraná na República Velha

Criada pelo Decreto-lei 848/1890, ela foi implantada em 11 de março de 1891 por Bento José Lamenha Lins, juiz substituto de Seccional (juiz federal substituto).

Spacca

O juiz Seccional (juiz federal) Manoel Inácio Carvalho de Mendonça, mineiro de Santa Luzia, só assumiu em 10 de abril. Lamenha Lins, que era o representante do governo federal na Junta Governativa de Curitiba, em 1893 deixou a magistratura para assumir o cargo de inspetor de consulados brasileiros no Sul da Europa.

A Vara ficou sob a jurisdição de Carvalho de Mendonça até 1910, quando ele se removeu para o Rio de Janeiro.

O governo republicano gostava de nomear juízes federais de fora do estado, para que não sofressem a influência das oligarquias locais. Os juízes federais (titulares) ficavam por anos em seus cargos.

No Paraná, Carvalho de Mendonça ficou de 1891 a 1910 e João Baptista da Costa Carvalho Filho, de 1910 a 1926. Neste ano, segundo afirmei com base na lista de antiguidade dos juízes, apenas o Distrito Federal (Rio de Janeiro) tinha três Varas, Minas Gerais e São Paulo, duas. [4]  É possível imaginar o imenso poder destes juízes.

Por sua vez, os substitutos tinham situação flagrantemente inferior aos titulares. Eles eram nomeados por seis anos (artigo 18 do DL 848/1890), ganhavam menos da metade do que era pago ao seccional (artigo 33),  tinham limitações na matéria que julgavam e de suas sentenças cabia recurso ao juiz federal.

Vejamos uma situação de fato

O juiz substituto de Seccional, Samuel Annibal de Carvalho Chaves, ingressou em 28 de novembro de 1922 com ação anulatória de ato administrativo e reintegração no cargo (nº 3040) contra a União Federal, sendo a inicial datilografada. [5]

Afirmou, em síntese, que assumiu as funções de juiz federal substituto em 1906, tendo-as exercido até 1918, quando o presidente da República demitiu-o, desprezando a isonomia que deveria ser dada aos juízes federais, visto que os substitutos também gozavam de vitaliciedade, e o artigo 1256 da Lei 2.924/1915, que exigia processo judicial ou administrativo para a demissão de funcionário ou  empregado público federal.

A ação teve tramitação regular tendo sido sentenciada em 1º de setembro de 1924 pelo Juiz Carvalho Filho, que a julgou improcedente.

As ações judiciais daquela época eram, na sua maioria, desapropriações, indenizações, questões comerciais, reclamações trabalhistas, especialização de fiança, acidentes do trabalho e titulação de terras. Registre-se que, ao ser criada, a Justiça Federal tinha competência para julgar ações em que as partes tivessem domicílio em estados diversos (artigo 15, alínea do DL 848/90).

Na área criminal o forte era o crime de moeda falsa, sendo que as investigações eram feitas pela Polícia Civil dos estados. O juiz federal do Espírito Santo, J. Tavares Bastos, escreveu um livro orientando a polícia sobre como deveria proceder. [6]

Predominavam os crimes de moeda falsa (artigos 239-244 do CP de 1890). Veja-se, por exemplo, a Apelação Criminal nº 202, proposta em 28 de junho de 1903, que resultou na condenação de parte dos denunciados a 9 anos e 4 meses de prisão simples, por infração aos artigos 240 e 247 do CP/1890.

A sentença foi do juiz federal substituto Claudino Rogoberto Ferreira dos Santos, em 2 de janeiro de 1904. [7]  Curiosidade, o delegado de Polícia, ao findar um ofício ao juiz federal, colocou  Saúde e fraternidade, expressão de uso comum à época.

As ações contra a União eram propostas contra a Fazenda Nacional, conforme praxe da época. Elas eram manuscritas integralmente, começando a surgir autuações e manifestações com peças datilografadas no fim dos anos 1910.[8]

As partes eram defendidas por advogados, a Fazenda Nacional  por procuradores da República que, por vezes, faziam suas peças com papel timbrado com o nome e a palavra advogado no alto da folha. As sentenças não fixavam honorários de advogado e, interposta apelação ao Supremo, os autos não eram remetidos à Corte.

Alguns processos do rico acervo digitalizado

Logo após a Proclamação da República, surgiu divergência entre os republicanos, parte defendendo um governo central forte, parte reivindicando maior autonomia aos estados. Isto gerou em 1893, no Rio Grande do Sul, a chamada revolução federalista.

Forças comandadas por Gumercindo Saraiva (maragatos) venceram as tropas legalistas (pica-paus) e avançaram sobre Santa Catarina e o Paraná, dominando Curitiba por cerca de 9 meses, quando foram derrotados pelo governo central. Resultado jurídico: 57 ações deram entrada na Justiça Federal paranaense, reclamando indenizações ou outras medidas contra a Fazenda Nacional. Vejamos um exemplo.

Nicolas Bley, residente na então Vila de Rio Negro (PR), ingressou, em 10 de agosto de 1895, com a Ação Ordinária nº 540 contra a Fazenda Nacional, [9] narrando que recebeu ordem escrita do general Francisco de Paula Argollo, comandante das tropas legalistas, requisitando cabeças de gado para o sustento dos soldados, tendo, por isto, entregue 292 bois, no valor de 29.200$000 réis, pretendendo, deles, ser ressarcido, com juros moratórios.

Após a audiência de conciliação, à época obrigatória, sobreveio contestação e, em 17 de agosto, em audiência de instrução e julgamento, foi determinada a expedição de precatória para o Termo de Rio Negro (Rio Negro ainda não era comarca).

JF-PR

Apenas um mês depois, o juiz distrital Benedicto Leôncio de Carvalho ouviu seis testemunhas e ordenou a devolução ds autos. No dia 19 de outubro, na Justiça Federal em Curitiba realizava-se nova audiência.

O advogado do autor, Afonso Aves de Camargo, encerrou as razões finais dizendo:  Mais uma vez seja a causa do direito entrelaçada pelas vossas mãos de Juiz íntegro e recto, com a bandeira serena e benéfica da Justiça. Dia 6 de dezembro o juiz federal Carvalho de Mendonça sentenciou o processo julgando procedente a ação. Houve apelação e, em 9 de novembro de 1986.

Em 13 de janeiro de 1909, o juiz federal Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça propôs uma Acção Summaria nº 955 (sic) contra a Fazenda Nacional, requerendo a anulação de ato do ministro da Fazenda, que mandou cobrar imposto sobre seus vencimentos que tinham sido aumentados de 8:000$000, para 11:000$000.

Alegou na inicial que os vencimentos dos magistrados não poderiam ser diminuídos, nos termos do artigo 58, §1º da Constituição de 1891. [10] A contestação sustentou a validade da cobrança, porque não poderia ser concedido privilégio aos magistrados federais.

Os autos foram despachados pelo juiz federal substituto, Samuel Annibal de Carvalho Chaves. Não há, contudo, registro do desfecho da ação. Curiosamente, a petição inicial foi assinada pelo próprio juiz federal e não por advogado, o que leva a crer que isto, à época, era permitido pela legislação processual.

Em 30 de dezembro de 1921, a Cia. Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande propôs a “Acção de Notificação” (sic) nº 2.728, alegando ter alugado um escafandro a Carlos Hildebrando, em Paranaguá, o qual de lá mudou-se, deixando que o objeto fosse surrupiado por terceiros. [11]

Assim sendo, em uma petição inicial de apenas uma folha, pediu a sua citação por edital para que, ao final, fosse considerado rescindido o contrato.  O processo teve audiência de instrução e julgamento em 22 de abril de 1922, presidida pelo juiz federal João Baptista da Costa de Carvalho Filho, recebendo sentença no dia 28, escrita em apenas oito linhas. Simplicidade era a regra.

Encerrando, registra-se caso ocorrido na Estação Ferroviária de Almirante Tamandaré, no dia 8 de agosto de 1936, na ditadura da Era Vargas. Venancio Trevisam discutiu com Frederico Barz e o ofendeu, dizendo que Plínio Salgado, chefe do Ação Integralista Brasileira era ladrão, o que, em tese, configuraria o crime contra a ordem política e social (Lei 136/1935). [12]

Interrogado, Venancio negou e afirmou que Frederico é quem tinha atribuído aos poderes públicos (sic) tal condição. O procurador da República substituto, usando seu papel timbrado de advogado (dr. M. Lacerda Pinto), pediu o arquivamento no dia 29 de agosto, o que foi deferido em 6 de setembro de 1936.

Assim, em breves considerações, está exposta a Justiça Federal na sua primeira fase, poderosa, com duas instâncias, sem os intermináveis recursos da atualidade e mais ágil. Da mesma forma, um pouco da história do Brasil. A partir desta pesquisa é possível imaginar quanta riqueza existe nos arquivos dos 90 Tribunais brasileiros.

P.S.: agradeço à servidora Dulcineia Tridapalli, supervisora da Seção de Memória Institucional da JF-PR, pela colaboração na indicação de sentenças e dados históricos. 

 

[1] FREITAS, Vladimir Passos de. Arquitetura judiciária deve auxiliar na administração da Justiça. Revista eletrônica Consultor Jurídico,  15 mar. 2008. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-mar-15/arquitetura_judiciaria_auxiliar_administracao/. Acesso em 22 mar. 2024. Acesso em 2 abr. 2024.

[2] CNJ. Resolução Nº 316 de 22/04/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3291.

[3] Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/informationobject/browse?levels=232&sort=alphabetic. Acesso em 22 mar. 2024.

[4] FREITAS, Vladimir Passos de. Justiça Federal. Histórico e Evolução no Brasil. Curitiba: Juruá Ed., 2002, p. 35.

https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/apelacao-civel-no-181

[5]    Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/uploads/r/justica-federal-do-1o-grau-no-parana/b/4/6/b4638b685535689575205c7c98b623cddcde330c12a38192bf40f5d1a2fc8d0e/DOC01154_Compressed.pdf. Acesso em 4 abr. 2024.

[6] BASTOS, J. Tavares. A Polícia Estadual ante os crimes federais.  Rio de Janeiro: F. Briguiet Ed., 1913.

[7] Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/uploads/r/justica-federal-do-1o-grau-no-parana/8/3/f/83f606f2a1397a7d7909bfb02215fba0923364774ccf3384c66f481e14210cf2/0007._pdf_vers__o_mesclada.pdf. Acesso em 4 abr. 2024.

[8] Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Reclamação Eleitoral nº 1783. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/uploads/r/justica-federal-do-1o-grau-no-parana/d/7/8/d78357ff13a26b682d86d649468eae73d69479005a2f603e6f320785787a188c/0855_Compressed.pdf. Acesso 4 abr. 2024.

[9] Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Ação Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/apelacao-civel-no-181. Acesso em 2 abr. 2024.

[10]    Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Disponível em:               https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/accao-summaria-no-955. Acesso em 2 abr. 2024.

[11]    Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/uploads/r/justica-federal-do-1o-grau-no-parana/7/3/0/7302731f29b125e0b0c5e00f7cd0d84f2a6da5e4734e35164892024b18f0e648/0304.pdf.  Acesso em 4 abr. 2024.

[12] Atom. Memória on line da Justiça Federal do Paraná. INQ-19360808 – Inquerito Policial Ex-officio nº 19360808. Disponível em: .

https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/informationobject/browse?sort=alphabetic&sq0=penal&sf0=&levels=232&onlyMedia=&findingAidStatus=&copyrightStatus=&materialType=&topLod=1&rangeType=inclusive.  Acesso em 4 abr. 2024.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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