Benfeitorias e acessões nas relações contratuais: o REsp 1.931.087
6 de abril de 2024, 6h33
Por ocasião do julgamento do REsp 1.931.087, o STJ concluiu que a cláusula de renúncia a benfeitorias em contrato de locação não se estende às acessões.
No caso concreto, o locatário realizou, no imóvel locado, algumas construções com o objetivo de adaptá-lo ao uso como academia de ginástica. Após o término das obras, a parte locadora não manifestou sua aprovação em relação ao projeto arquitetônico, o que, por sua vez, levou à impossibilidade de obtenção de alvará de funcionamento.
Cessado o pagamento dos aluguéis e, por essa razão, despejado o inquilino, este ajuizou ação pleiteando indenização por danos materiais em razão das obras de considerável valor realizadas no imóvel. Pôs-se, então, a questão: como se deve lidar com os melhoramentos realizados pelo locatário?
A cumulação das noções de acessão e de benfeitoria neste caso concreto gera um problema sistemático. De fato, caracterizados os melhoramentos como benfeitorias, não há muito o que discutir: elas são expressamente reguladas na legislação que disciplina o contrato de locação, seja no regime comum (artigo 578, CC), seja no especial (artigo 35-6, Lei 8.245/1991), ainda que com eles concorra também um regime próprio nos artigos 1.219-22, CC.
A acessão, por sua vez, é disciplinada apenas dentre os modos originários de aquisição da propriedade (artigos 1.248ss., CC). A dificuldade que surge para o intérprete então repousa em, de um lado, compreender em que medida esses regimes são compatíveis e, de outro, interpretar se a ausência de regulação específica importa numa lacuna ou num silêncio eloquente do legislador.
Ao julgar essa questão, tanto o TJ-SP como o STJ consideraram fundamental para a resolução do caso concreto precisar a extensão da cláusula de renúncia a benfeitorias: poderia ela ser estendida às acessões sem que isso violasse o cânone previsto no artigo 114, CC, segundo o qual as cláusulas que importam em renúncia se interpretam restritivamente? Se o TJ-SP entendeu que não, a conclusão do STJ foi no sentido oposto, de modo a permitir a indenização pelas acessões realizadas.
Compreensão tópica e sistemática
Nas decisões, ambos os tribunais agiram topicamente: problematizaram os conceitos de benfeitorias e acessão dentro do caso concreto — isto é, sobretudo com a extensão da cláusula de renúncia a benfeitorias —, mas não buscaram reconduzir a questão a um problema sistemático. Trata-se, com efeito, de um traço comum da cultura jurídica brasileira, especialmente naquilo que se denominou alhures “estilo barroco”. [1]
Se esse estilo é especialmente exitoso na exploração de peculiaridades dos casos concretos que não encontram correspondência clara no direito positivo, redundando na complementação de suas previsões, ele é, contudo, pouco atento aos limites conceituais que cada noção jurídica tradicional pode assumir sistematicamente. É precisamente essa reconstrução sistemática que se pretende apresentar abaixo.
Relações voluntárias e involuntárias
Baseado em Aristóteles, que dividiu as relações (συνάλλαγμα) em ἑκούσια e ἀκούσια, [2] também as divido em voluntárias e involuntárias. Nas relações voluntárias, abrangem-se todas aquelas em que a vontade é considerada fundamental para sua formação: no direito patrimonial, trata-se sobretudo dos negócios jurídicos, unilaterais e bilaterais. Já nas relações involuntárias, abrangem-se aquelas relações criadas pela própria lei, como a responsabilidade civil extracontratual, a gestão de negócios e o enriquecimento injustificado.

A importância de dividir assim as relações jurídicas está em que os institutos jurídicos atuam diferentemente conforme a espécie dessas relações: em geral, as relações voluntárias afastam a incidência das relações involuntárias: a eficácia do contrato de mandato afasta a gestão de negócios, da mesma forma que a plena eficácia de uma relação contratual impede que a prestação realizada seja repetida por repetição do indébito (artigo 876, CC).
Se isso parece óbvio nos casos do enriquecimento prestacional — isto é, quando há uma prestação em favor do credor com vistas a adimplir uma obrigação —, nos casos do enriquecimento por intervenção, em que alguém intervém na propriedade alheia, alguns exemplos podem ser úteis. Assim, aquele que especifica matéria alheia, fazendo espécie nova de valor maior, adquire a propriedade (artigo 1.270, § 2º, CC).
Todavia, a costureira contratada para fazer dum pano um vestido lhe adquire a propriedade? Aquele que edifica em terreno alheio pode adquirir a propriedade do terreno se o valor da construção superar o do terreno (artigo 1.255, parágrafo único, CC). Entretanto, o empreiteiro contratado para erguer um valioso prédio sobre terreno baldio lhe adquire a propriedade? Aquele que permanece pelo lapso temporal previsto em lei na posse de um imóvel pode adquiri-lo por usucapião. Contudo, o locatário, que nele permanece por tal prazo, torna-se proprietário do imóvel? Em todos esses casos, o bom senso parece conduzir à negativa; contudo, é preciso enunciar uma regra clara e sistemática.
Modos originários de aquisição da propriedade e negócios de obrigação
Analisando abstratamente, constata-se a existência de um conflito de institutos jurídicos: de acordo com os suportes fáticos dos exemplos em tela, haveria a possibilidade de incidência simultânea de um modo originário de aquisição da propriedade e da noção de prestação obrigacional voltada ao adimplemento. Seguindo o bom senso, uma hipótese de resolução do problema consistiria na seguinte regra: a existência de uma relação jurídica voluntária (tal como um contrato) afasta a incidência dos modos originários de aquisição da propriedade.
De fato, as situações típicas dos modos originários de aquisição da propriedade supõem, como elemento negativo do suporte fático, a ausência de consenso das partes envolvidas quanto ao ato que gera a aquisição.

O sentido dessa regra é, portanto, o de permitir às partes contratantes especificar os efeitos de um determinado suporte fático, afastando regras cuja aplicação o sistema jurídico gestou exclusivamente para uma situação de ausência de relação voluntária entre as partes.
Passando a um segundo grau de análise, é preciso notar que os modos originários de aquisição da propriedade dispõem, em regra, de natureza dúplice: tais modos originários determinam a quem cabe a propriedade do bem (regime atributivo) e, ao mesmo tempo, preveem como se dá o ressarcimento por alguém adquirir algo que pertencia a outrem ou que proveio de trabalho alheio (regime ressarcitório). É especialmente esse segundo aspecto que revela que tais modos originários são, na verdade, aplicações do enriquecimento injustificado por intervenção.
Como as pretensões de enriquecimento injustificado são subsidiárias aos outros institutos jurídicos (artigo 886, CC), fica esclarecido por qual razão institutos jurídicos que geram relação involuntária não se aplicam se o suporte fático da aquisição coincidir com o de uma relação voluntária.
Posse própria e posse não-própria
Em muitos dos exemplos acima, a posse está diretamente envolvida, na medida em que, em alguns casos, para intervir na propriedade alheia, é preciso que o interventor ostente o caráter de possuidor — como na usucapião. Com efeito, a relação entre o possuidor e o proprietário da coisa pode ser de duas naturezas.
Tal relação pode, primeiramente, ter natureza independente quando, por exemplo, existe um negócio jurídico de alienação do bem, como uma compra e venda ou uma doação. O comprador ou o donatário, ainda que seu contrato seja nulo, é possuidor de boa-fé se desconhece a causa da nulidade.
Ultimada a alienação, a posse se exerce com independência, na medida em que o possuidor se entende como dono dela. Pode, ainda, inexistir contrato, como se o possuidor toma posse de coisa que julga abandonada ou, julgando-a ocupada, a invade ou a rouba. Em todos esses casos, a posse é própria [3] e, assim, pode ser classificada em posse de boa-fé e posse de má-fé. A razão está em que tal classificação está diretamente ligada à noção de “aquisição da coisa” (artigo 1.201, caput, CC).
Mas há outra espécie de contratos — como a locação e o comodato — em que não há alienação da propriedade, mas apenas compartilhamento momentâneo da posse, caso em que a relação entre proprietário e possuidor tem natureza dependente, e a posse passa a se dividir em posse direta e indireta.
Nesses casos, como a posse se exerce em razão e nos limites do contrato, diz-se que a posse é não-própria. Assim, não há sentido em questionar se o locatário ou o comodatário são possuidores de boa ou má-fé, pois sua posse é não-própria e não se volta à aquisição da coisa.
Isso permite a seguinte ilação: “sempre que o CC estabelece consequências distintas para a posse de boa-fé e a de má-fé, supõe-se a existência de posse própria, isto é, ausência de vínculo de dependência entre possuidor e proprietário no que concerne o exercício da posse”. É por essa razão que tais consequências são tão habituais nos modos originários de aquisição da propriedade, como, por exemplo, a usucapião.
Ambiguidade do conceito de benfeitorias
Seguindo-se os passos da demonstração acima, pode-se explicar facilmente a coexistência de regimes distintos de benfeitorias no CC. O regime de benfeitorias dos artigos 1.219-22, CC, é, como todo o regime do capítulo intitulado “dos efeitos da posse” (artigos 1.210-22), aplicável apenas à posse própria e, por essa razão, distingue entre possuidor de boa-fé e má-fé.
Trata-se, portanto, de um regime de benfeitorias extracontratuais, que se contrapõe ao regime do artigo 578, CC, que constitui, no cerne do contrato de locação, um regime de benfeitorias contratuais, reproduzido com especificações na legislação extravagante.
Indício dessa distinção está no tratamento das benfeitorias úteis: se a situação é extracontratual, há indenização (artigo 1.219, CC); já no regime da locação do CC, apenas se houver previsão contratual. Qual a razão da distinção? Num regime de posse não-própria, mediada por contrato, pode-se contar com o acordo das partes; no caso das benfeitorias extracontratuais, não há nem mesmo proximidade entre as partes, quanto menos um acordo.
Isso permite corrigir alguns equívocos jurisprudenciais: é comum que, no caso do comodato, não se indenizem ao comodatário nem sequer as benfeitorias necessárias[4] — que, porém, são indenizadas ao invasor, típico caso de possuidor de má-fé. A razão para isso está na ausência de um regime próprio de benfeitorias nesse contrato, o que leva à errônea aplicação analógica das disposições dos artigos 1.219-22, CC.
Tal proceder é absolutamente incorreto, devendo a analogia partir do artigo 578, CC, que trata das benfeitorias contratuais para a locação: tanto no direito brasileiro como no estrangeiro, o regime do capítulo “dos efeitos da posse” está ligado à eficácia secundária da pretensão reivindicatória e, como tal, não serve, sob hipótese nenhuma, de base para analogia em casos contratuais.[5]
Daí ser mais adequado servir-se de outra previsão contratual. Por outro lado, ao comprador ou ao donatário que não registrou o título aquisitivo, ao invasor, bem como à petição de herança e à repetição do indébito, se aplica o regime das benfeitorias extracontratuais, pois todas essas posses são próprias.
Reconstrução de melhoramentos
Qual o problema central do julgado em comento? Supor uma distinção entre o regime ressarcitório das acessões e benfeitorias no seio da posse não-própria do locatário. O regime ressarcitório da acessão por construções e plantações (artigos 1.253-9, CC) distingue, a cada passo, a posse de má-fé e de boa-fé, o que, por sua vez, indica que regula apenas situações de posse própria.
Diferentemente da jurisprudência — que opõe acessão e benfeitorias como incompatíveis, senão como opostas, conforme haja melhoramento de algo que já existe ou nova construção[6] — nas relações contratuais, todo melhoramento deve ser julgado pelo regime ressarcitório das benfeitorias contratuais. Isso permite que se avalie o dispêndio realizado pelo possuidor conforme a destinação econômica do bem, o que se pode interpretar seja a partir da situação do bem, seja a partir das finalidades do contrato.
Em geral, novas construções constituirão benfeitorias úteis ou voluptuárias. Em suma: não há aplicação do regime ressarcitório da acessão em situação de posse não-própria, como na locação e no comodato.
Se essa tese soa hoje estranha, convém recordar que, no direito comum, era essa a apreensão da noção de benfeitoria: o principal tratadista sobre contrato de locação no direito comum, o italiano Pietro Pacioni (século 17) dava como exemplo de benfeitoria (geralmente) voluptuária a implantação de um jardim e a construção de uma grande casa de veraneio no campo. A acessão não aparece nem como argumento a ser refutado. [7]
Tal categorização é amiúde encontradiça nos autores. Outros adicionam que o direito de levantamento das benfeitorias voluptuárias admite até mesmo a demolição do que foi construído pelo locatário. [8] Ocorre que, com o tempo, a precisão do conceito foi se perdendo, e enganos triviais turvaram a sistematicidade dos regimes jurídicos.
De fato, o regime ressarcitório da acessão se aplica apenas às situações extracontratuais ou, mais amplamente, às relações involuntárias. Nesses casos, ela se diferencia das benfeitorias extracontratuais na medida em que estas últimas supõem a existência de uma relação econômica entre o dispêndio realizado e a função econômica do bem.
Há, porém, situações em que não há esse vínculo justamente por inexistir uma destinação econômica identificável; basta pensar em terrenos baldios. Nesses casos pontuais, aplica-se o regime ressarcitório da acessão.
Sem pretensão de esgotamento do tema, a conclusão é de que se deve distinguir claramente o regime ressarcitório do atributivo da acessão, de modo a abandonar a distinção entre o regime ressarcitório das benfeitorias e das acessões nos casos de posse não-própria, limitando a aplicação do último aos casos de posse própria em que inexista destinação econômica do bem.
[1] METTLACH-PINTER, J. C. Summa divisio do direito civil patrimonial. Curitiba: Juruá, 2023, pp. 38ss.
[2] ARISTÓTELES. EN V.2, 1131ª1-10.
[3] Sobre a distinção, cf. PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Vol. X. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 1.080, pp. 209ss.
[4] Cf., por exemplo, TJ-SP, Apelação n. 0005267-38.2008.8.26.0659.
[5] Cf., no direito alemão, cf. C. Baldus (Münchener Kommentar. Vol. VI. 6ª ed. München: Beck, 2013, Vor §§ 987-1003, n. 19, p. 1256): “[t]ambém no restante, deve-se afastar a afirmada aplicação subsidiária dos §§ 987ss.: lacunas na regulação da relação jurídica que justifica a posse devem ser preenchidas por meio da interpretação das normas sobre essas relações jurídicas (nos contratos, por meio de sua interpretação eventualmente integrativa), e não pela aplicação dos §§ 987ss.”.
[6] Criticando corretamente essa oposição infundada, cf., por todos, HAICAL, G. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas, in: BENETTI, G. et al. (orgs.). Direito, cultura, método: leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2019, pp. 514-53, esp. pp. 536-42.
[7] PACIONE, Pietro. Tractatus de locatione et conductione. Florença: Celli, 1811 (Cap. XXXIV, n. 34-8, 44, col. 383-4).
[8] WEGENS, Andreas. De locatione et conductione Tractatus. Leipzig: Boetii, 1740 (Cap. IX, nn. 17-8, p. 455).
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