Interpretação da gramática

Às vezes, 'e' em um texto da lei pode significar 'ou', decide Suprema Corte dos EUA

Autor

1 de abril de 2024, 9h44

Ao julgar o caso Pulsifer v. United States, que se refere a uma disputa sobre um dispositivo da lei First Step Act, que permite a condenados pedir a redução da pena, a Suprema Corte dos EUA decidiu, por 6 votos a 3 (fora das linhas ideológicas dos ministros), que em um texto jurídico a conjunção “e” pode significar “ou” — às vezes.

Wikimedia Commons
Suprema Corte dos EUA, Suprema Corte dos Estados Unidos

A lei federal Safety Step Act, criada em 2018 como uma iniciativa bipartidária para reduzir a população carcerária do país, inclui um dispositivo, chamado de “válvula de segurança” (safety valve), que permite aos juízes desconsiderar a aplicação, mesmo retroativa, de sentenças mínimas obrigatórias para certos tipos de crime — dentro de certas condições.

Algumas das condições a que os réus estão sujeitos, para que tenham direito a uma pena mais apropriada para o delito em julgamento — como é o caso do processo criminal contra Mark Pulsifer, que foi condenado a 15 anos de prisão (por causa da sentença mínima obrigatória) por distribuir menos de 50 gramas de metanfetamina — estão previstas no parágrafo (f) (1) da lei, que beneficia o réu se ele não tem:

  • Mais de 4 pontos* em seus antecedentes criminais, excluindo pontos nos antecedentes criminais que resultam de crimes de 1 ponto;
  • Uma condenação anterior por crime de 3 pontos; e
  • Uma condenação anterior por crime violento de 2 pontos.

*“Pontos” se referem ao sistema de aplicação de penas, que atribui pontos a cada tipo de crime, em conformidade com as diretrizes de sentenças dos EUA.

O foco da disputa é esse “e”. Para a defesa do réu e para 3 dos 9 ministros da corte, o “e” implica a conjunção (de acordo com a gramática) dos três elementos descritos. Em outras palavras, a combinação de A + B + C. Ou seja, para o réu não ter direito ao benefício da redução de sua pena, ele deveria ter em seus antecedentes tudo que é definido nos subparágrafos A, B e C.

Para a acusação, no caso o Departamento de Justiça dos EUA, e para 6 dos 9 ministros, o “e” — não no texto, mas no contexto da lei — pode significar “ou”. Ou seja, para que o réu perca o direito ao benefício, basta que tenha em seus antecedentes uma das três condições eliminatórias: ou A ou B ou C.

Debate gramatical

O ministro conservador Neil Gorsuch (autor do voto dissidente) e as ministras liberais Sonia Sotomayor e Ketanji Brown Jackson sustentaram o argumento da defesa de que frases verbais não funcionam da mesma maneira, quando formuladas no negativo, ilustradas por dois exemplos.

Um deles é a frase “don’t drink and drive” (literalmente, não beba e dirija — um carro, obviamente. Para a defesa, a frase só exerce o efeito pretendido se houver uma combinação dos verbos beber e dirigir. De outra forma, pode-se beber e não dirigir ou não beber e dirigir. A frase sugere que apenas a combinação das duas ações pode ser fatal.

O segundo exemplo é a frase “não limpe o banheiro com água sanitária e amônia. Para a defesa, a proibição não se refere apenas à água sanitária ou apenas à amônia). Portanto, a conjunção “e” implica a combinação dos dois produtos — e não uma coisa ou outra.

“Uma lagarta muito comilona”

A ministra liberal Elena Kagan (autora do voto vencedor) e os ministros conservadores Clarence Thomas, Samuel Alito, John Roberts (presidente da corte), Brett Kavanaugh e Amy Barrett, retrucaram com três exemplos.

Um deles, extraído do The Cambridge Grammar of the English Language, diz: “Não estou livre no sábado e no domingo”. Isso significa “mais provavelmente, que a pessoa não está livre todo o fim de semana para, por exemplo, aceitar um convite, mas pode estar livre ou no sábado ou no domingo.

Similarmente, uma pessoa pode dizer “não gostava da mãe e do pai dele”. Isso não significa que não gostava da mãe, nem do pai. Apenas não gostava da combinação dois juntos, mas poderia aceitá-los quando tratavam com eles separadamente.

O terceiro exemplo é mais claro: um hospital comunica a um paciente que só pode fazer uma cirurgia, se ele se abster de comida, bebida e fumo nas 12 horas que antecedem o procedimento. Isso não significa que o paciente pode comer e beber, se se abster de fumar. O “não”, nesse caso, significa que cada um dos itens da lista é proibido, não apenas a combinação dos três.

Finalmente, os ministros discutiram um trecho do livro infantil “Uma lagarta muito comilona” (The Very Hungry Carterpillar), que diz. “No sábado, a lagarta comeu um pedaço de bolo de chocolate, uma casquinha de sorvete, um picles, uma fatia de queijo suíço, uma fatia de salame, um pirulito, um pedaço de torta de cereja, uma salsicha, um cupcake e um fatia de melancia.”

Para a autora do voto vencedor, ministra Elena Kagan, tal como a frase “o réu não tem” na lei “First Step Act”, as palavras “comeu completamente” na história se aplicam “de forma independente e equivalente a cada um dos dez alimentos que se seguem.”

No voto dissidente, Gorsuch contra-atacou: “Segundo a história, a lagarta está se transformando em borboleta. Então, suponha que a história diga que a lagarta continuará sendo uma lagarta se não comer (A) uma salsicha, (B) um cupcake e (C) uma fatia de melancia”.

“Suspeito que os leitores mais comuns (e as crianças) não teriam dificuldades em concluir que a sentença significa que a lagarta continuará sendo lagarta, a não ser que coma todas as três coisas. Uma apenas não será suficiente”, ele escreveu.

Ambiguidade da lei

Em seus votos, os ministros também discutiram a definição da palavra ambiguidade. Para a minoria, o texto da lei é ambíguo. E quando a lei é ambígua ou não é clara, a regra da leniência frequentemente compele as cortes a decidir a favor do réu. Mas a maioria entendeu que a lei, nesse caso, não é ambígua.

“A mera existência de uma disputa textual, mesmo entre juízes federais altamente treinados, não é prova de ambiguidade. Apesar de haver duas interpretações gramaticais permitidas, no contexto seu texto é suscetível de apenas uma interpretação possível. Isso não deixa qualquer papel para a leniência desempenhar”, diz o voto da maioria.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!