Tribunal do Júri

Narrativas e argumentos — o modelo híbrido-formal no Júri

Autor

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

30 de setembro de 2023, 8h00

A ambiência do Tribunal do Júri autoriza a produção de vários momentos de reflexão sobre o procedimento e a atuação do povo no sistema de justiça e do próprio processo penal. Ainda que existam inúmeras críticas ao júri, certo é que se caracteriza como um grande laboratório sobre a atuação das partes, sobre a produção de argumentos e narrativas, sobre a produção dos elementos de prova e, em especial, sobre a tomada de decisão por um conselho popular.

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Outro ponto em destaque é a atualização contemporânea ao Tribunal do Júri. Se a retórica já foi classificada como o ponto alto dos julgamentos pelo júri, autorizando, inclusive, defesas impensáveis para a sociedade contemporânea [1], atualmente o foco maior se dirige às estratégias e técnicas probatórias. Os resultados não estão mais orientados à performance das partes, mas a estrutura das informações e a forma que são produzidas para a valoração do Conselho de Sentença. Não há retórica defensiva que consiga desconstituir um laudo pericial legalmente produzido, uma filmagem que demonstre o autor da conduta, a análise de metadados em um celular apreendido, etc.

Porém, todas essas questões não estão soltas na dinâmica processual. No plenário do júri, as partes têm que saber manejar como são apresentadas essas informações advindas dos elementos de prova para que estruture a melhor forma de valoração pelos jurados. Nesta simples reflexão, manteremos o foco na atuação das partes sobre a produção probatória e sobre como se estrutura, ainda como esboço hipotético, a estratégia para uma coerente e racional valoração das provas pelo Conselho de Sentença.

Para que tenhamos um aporte mais direcionado ao aspecto probatório, já expusemos (veja artigo aqui) a construção dos modelos teóricos de prova [2] e a necessidade de seguirmos além de uma lógica informal, que muito se assemelha ao enfrentamento retórico de apresentação e valoração da prova. Fica evidente, atualmente, que o procedimento probatório no processo penal não pode ser visto como um instrumento de simplicidade lógico-dedutivo. As questões são muito mais complexas do que esta forma de estruturação para a apresentação dos elementos de prova em plenário e formação de uma decisão.

Por outro lado, um modelo objetivo-demonstrativo no júri, condicionado apenas ao discurso sobre a busca de uma verdade, que se sabe corresponder à realidade apenas quando proferida uma decisão transitada em julgado [3] não se mostra factível, até por que poderia levar ao afastamento de reflexões sobre os critérios e forma da atribuição dos atores processuais no momento do julgamento.

Por outro lado, a atividade das partes não pode se caracterizar apenas diante de uma versão narrativa-histórica, diante da precariedade do critério coerenticista [4], bem como o sobre valor retórico das informações e de ausência de enfrentamento sobre o valor probatório em seu contexto individualizado.

Nesta linha, diante do desenvolvimento complexo de atos processuais, bem como a partir de um modelo de procedimento probatório com caráter prevalentemente dialético [5] (júri), necessário observar a análise híbrida ou integrada da concepção persuasiva, figurando também um valor argumentativo individualizado ao método de análise probatória (tema que já abordamos veja o artigo).

Assim, a partir da observância de ineficácia isolada da concepção objetiva/demonstrativa bem como narrativo, mas não podendo descartar seus predicados perante o quadro de prova que pretende formar o convencimento do julgador, Bex estabelece o modelo denominado híbrido ou formal híbrido que não se caracteriza como autônomo, e sim organizacional para a aplicação da atividade argumentativa e narrativa sobre o procedimento probatório [6].

Esse modelo se propõe a combinar as atividades argumentativas dos elementos de prova, com a estrutura narrativa — prevalente no júri —, em momentos diferentes do processo de apresentação e avaliação da prova [7].

Pela teoria híbrida,

"os fatos são organizados em várias histórias hipotéticas, coerentes referências do que (pode ter acontecido) aconteceu no caso concreto. Argumentos baseados em elementos de prova, em seguida, podem ser utilizados para justificar as histórias, como estes argumentos podem ser usados para suportar os elementos de uma história com provas, ou em outras palavras, para ancorar a história em provas" [8].

A partir de um conjunto de fatos que deve ser estrategicamente apresentado e explicado pelas partes, haverá uma relação hipotética através de várias narrativas causalmente conectadas originadas pelos seus enunciados. Consequentemente, utilizam-se argumentos baseados em informações advindas dos elementos de provas para raciocinar qual a narrativa que melhor se explica. Logo, que melhor se coaduna com a representação realizada pela imputação ou resistência defensiva.

Por isso, a teoria híbrida formal pode ser conceituada como uma

"conjugação de uma teoria causal para a construção de narrativas hipotéticas sobre fatos e uma teoria probatória para a construção de argumentos a partir da prova dos fatos. Mais especificamente, a teoria híbrida formal é uma combinação de um modelo formal de raciocínio causal" [9].

Segundo a teoria hibrido-formal ou integrada a narrativa sobre fatos e os argumentos sobre os elementos de provas devem ser combinados de diversas maneiras, indicando que os argumentos baseados sobre provas confirmam ou refutam a exposição histórica sobre os fatos [10].

A necessidade de aglutinação dos modelos (argumentativo e narrativo) ocorre a partir das críticas e dos predicados elencados em cada um quando analisados hipoteticamente e de forma individual.

O modelo narrativo (tema que já abordamos nesta coluna, veja artigo aqui) se caracteriza por uma visão geral. O raciocínio será eminentemente holístico focado nos motivos e nas ações, com utilização de relações causais que explicarão o caso concreto [11]. Qualifica-se, portanto, através de um viés coerenticista, com críticas à segurança da formação da decisão baseada na análise individual das informações. Por isso, a abordagem narrativista além de organizar as fontes de provas e informações disponíveis e relevantes, auxiliam no preenchimento das lacunas, tentando formar uma imagem coesa e coerente [12].

Por outro lado, na abordagem argumentativa (tema que já abordamos aqui, veja artigo), pela sua natureza eminentemente atomística de análise probatória (veja também esse artigo) e, portanto, mais clara e natural de aferição sobre o conjunto de informações disponíveis e relevantes, se torna inadequada para uma visão genérica das várias hipóteses que formam o caso concreto [13] e que, cotidianamente, são apresentadas aos jurados.

Contudo, se não houver uma maior preocupação teórica de caracterização sobre esses modelos, a distinção prática entre os mesmos não se denota clara, sendo reconhecida como artificial [14] e apenas intuitiva, o que afasta o grau de profissionalismo necessário para o contexto atual, em especial, no plenário do júri.

Em havendo inclinação à individualização das abordagens, pode-se alcançar uma função heurística de inferência sobre o caso e maior profissionalismo desenvolvido pelas partes.

Ainda, as narrativas podem ser usadas para a construção de hipóteses inteligíveis sobre a ocorrência fática, com a estrutura das motivações e das ações e, ao mesmo tempo, as narrativas devem ser apoiadas através dos elementos de provas argumentados (concepção argumentativa), estabelecendo a plausibilidade, integridade e coerência das hipóteses apresentadas pela acusação e refutadas, necessariamente (a expressão é imposta pela previsão constitucional da plenitude de defesa) pela defesa com individualização sobre seus conteúdos [15]. É dizer, o caráter atomístico da abordagem argumentativa dificulta a formação causal entre as ações, motivações e o próprio resultado. Por outro lado, a característica holística do modelo narrativista pode indicar um grave perigo formado pela "boa história" que constitui uma história "verdadeira" destituída de maior inferência sobre os elementos de prova. Contudo, a defesa híbrida-formal das duas perspectivas não retira as características e vantagens de cada uma [16].

Através da extração de pontos positivos, a partir da crítica de cada abordagem, a teoria híbrida-formal indica que as narrativas podem construir hipóteses inteligíveis para os julgadores e a atividade argumentativa deve ser usada para a conexão dos elementos de prova a essas narrativas e estabelecer um raciocínio técnico-jurídico para apoiar ou refutar as hipóteses [17]. Logo, a teoria híbrida formal consiste na combinação, ainda que hipotética — porém não intuitiva —, entre um contexto probatório específico e uma teoria causal sobre as ações e motivações [18], através da integração de argumentos e narrativas, como característica básica, para o raciocínio na teoria da prova penal [19] e tomada de decisão.

Na linha da concepção persuasiva da prova — o que se coaduna, de certa concreta, à estrutura do júri —, Bex aponta que na teoria híbrida formal de valoração das provas os critérios específicos da teoria da inferência da melhor explicação (abordaremos, criticamente, a IME em outra oportunidade) são aplicados. Necessário se faz o confronto com explicações alternativas que possuem um escopo assimétrico com a coerência e que formem um conteúdo probatório [20] destinado à formação de fontes de dúvidas, para o afastamento de vieses simplesmente confirmatórios. Aqui está a necessidade da atuação estratégica e técnica da defesa, atividade indissociável ao exercício da plenitude de defesa, até porque, essa atividade se desenvolve pelo planejamento responsável para sua atuação em juízo, desde o panorama do conhecimento técnico probatório, como a identificação de estratégias defensivas para cada fase do procedimento do júri.

A proposta a teoria proposta por Bex, ainda que no plano hipotético, pretende afastar a simples coerência de narrativas causais apresentadas em plenário, especialmente pela acusação, criando um elo necessariamente comunicacional com argumentos expostos e enfrentados pela inferência de todos os elementos de prova. Por isso, a apresentação da teoria híbrido formal da prova denota-se importante para que haja a estruturação dos argumentos individualizados dos elementos de provas em plenário (modelo argumentativo) e a organização das teses e refutações pela narrativa (modelo narrativista).

Nosso propósito, como estudiosos e atuantes no tribunal do júri, segue justamente pela tentativa de modernização técnica desse democrático instituto. Por isso, o retorno à apresentação teórica dos modelos de prova e sua sistematização no procedimento do júri, em especial no momento do julgamento em plenário, resulta na proposta de racionalização da atuação das partes, caracterizada, em especial, pela imposição constitucional de uma defesa plena e, ao final, na melhor tomada de decisão pelo Conselho de Sentença.

 


[1] Basta pensarmos na tese da legítima defesa da honra.

[2] Para a reflexão adota-se como referência a modelos que "implicam a construção de uma teoria ou de um esboço hipotético relativamente a uma determinada esquematização". PEREIRA, Rui Soares. Modelos de Prova. In Prova Penal Teórica e Prática. Coord. Paulo de Sousa Mendes e Rui Soares Pereira. Coimbra: Almedina, 2019, p. 49.

[3] Volta-se à questão de que a única certeza que há no processo penal se refere ao parâmetro da inocência até decisão transitada em julgado e da culpa quando proferida a decisão condenatória. É dizer, parte-se de uma incerteza para uma certeza, e esta poderá não configurar uma certeza histórica, mas certamente caracterizar-se-á como uma certeza jurídica.

[4] Crítica que já fizemos. SAMPAIO, Denis. A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022, cap. III, p. 199

[5] RAFARACI, Tommaso. Le nuove contestazioni nel Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1996, 93/95.

[6] BEX, Floris J. Arguments, Stories and Criminal Evidence. A Formal Hybrid Theory. Dundee: Springer, 2010.

[7] MENDES, Paulo de Sousa. A incerteza factual e a prova no processo penal. In PITON, André Paulino; CARNEIRO, Ana Teresa (org.). Liber Amicorum Manuel Simas Santos. Lisboa: Rei dos Livros/Letras e Conceitos, 2016, p, 2016, p. 1065.

[8] BEX, Floris e VERHEIJ, Bart. Legal Stories and the Processo f Proof. In Artificial Intelligence and Law 21(3), p. 255. (trad. livre)

[9] Ibdem. p. 257/258. (trad. livre)

[10] BEX, Floris. KOPPEN, Peter J. van, PRAKKEN, Henry e VERHEIJ, Bart. A hybrid formal theory of arguments, stories and criminal evidence. In Artificial Intelligence and Law, vol. 18, n. 2, 2010, p. 136..

[11] BEX. Arguments, Stories and Criminal Evidence, p. 83.

[12] BEX, KOPPEN, PRAKKEN, e VERHEIJ. A hybrid formal theory, p. 133

[13] BEX, KOPPEN, PRAKKEN, e VERHEIJ. A hybrid formal theory, p. 132, 133. Como expõem os autores, a abordagem argumentativa baseada em elementos individualizados sobre informações extraídos das provas relevantes e disponíveis indicam várias peças de um quebra-cabeça. No entanto, não havendo a descrição da sua imagem, não se torna possível a montagem do todo, pois individualizada em peças avulsas. Idem, p. 133.

[14] BEX. Arguments, Stories and Criminal Evidence, p. 83. Em regra e, em casos reais, os aspectos narrativo e argumentativo se misturam entre si de forma natural. BEX, KOPPEN, PRAKKEN, e VERHEIJ. A hybrid formal theory, p. 132.

[15] BEX. Arguments, Stories and Criminal Evidence, p. 85 .

[16] BEX, KOPPEN, PRAKKEN, e VERHEIJ. A hybrid formal theory, p. 136.

[17] BEX, KOPPEN, PRAKKEN, e VERHEIJ. A hybrid formal theory, p. 125.

[18] Idem, p. 144.

[19] Ibidem, p. 148.

[20] BEX. Arguments, Stories and Criminal Evidence, p. 87.

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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