O futuro da deliberação no STF: entre o virtual e o presencial
30 de setembro de 2023, 8h00
1. Os déficits deliberativos nos julgamentos presenciais do STF
Às vésperas do aniversário de 35 anos da Constituição Federal, noticiou-se que o novo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, pretende alterar a tradicional forma de deliberação nos julgamentos presenciais da corte, a guardiã da aniversariante.
A proposição inclui cindir a sessão em dois momentos: um primeiro, de arguição oral e interação da corte com os advogados das partes e dos amici curiae; e um segundo, de deliberação entre os magistrados. A iniciativa visa conferir maior prazo para que os ministros possam refletir acerca dos argumentos apresentados à tribuna [1]. Se adotada, a medida representará uma mudança radical à deliberação do tribunal, marcada por sessões longas, com a leitura de extensos votos previamente preparados por cada ministro, nas quais é notável o baixo intercâmbio de ideias entre as sustentações orais e os votos, bem como entre os votos dos próprios ministros.
A proposta, portanto, vem em boa hora. São inúmeros os estudos acadêmicos que diagnosticam problemas na prática deliberativa da corte. Há críticas recorrentes, que merecem atenção, como, por exemplo, (1) a forma fragmentada como os votos são colhidos, sem a formação de um verdadeiro consenso acerca da ratio decidendi do julgado [2]; (2) a falta de interação entre os juízes, que transparece na pouca influência dos argumentos do relator nos votos dos demais membros do tribunal [3]; e (3) a superexposição da corte [4] que, aliada a algumas regras regimentais [5], incentiva posturas individualistas, em detrimento da colegialidade. Até mesmo o presidente da República se aventurou a opinar recentemente sobre o tema, sugerindo a adoção de um modelo de deliberação a portas fechadas, sem publicizar como votou cada ministro [6].
Não é possível, contudo, refletir sobre o modelo decisório do STF sem esmiuçar o cenário atual, no qual a grande maioria dos processos não são julgados no Plenário presencial, mas no Plenário Virtual (PV), no qual a votação se dá de maneira assíncrona. De acordo com dados fornecidos pelo STF, em 2021, 98,7% das decisões colegiadas ocorreram no PV [7]. É claro que esta metamorfose institucional não ocorreu sem críticas, mas merecem destaque os fortes indícios de que o PV trouxe um incremento deliberativo. Em exercício de experimentalismo institucional [8], o presente artigo busca imaginar alternativas que contemplem as potencialidades de ambos os ambientes decisórios (presencial e virtual), estabelecendo relação de simbiose entre os dois modelos.
2. O Plenário Virtual e suas potencialidades
O PV foi inicialmente criado pela Emenda Regimental (ER) nº 21/07 para o julgamento da repercussão geral. O sucesso levou ao seu desenvolvimento: a ER nº 51/16 possibilitou o julgamento de agravos internos e embargos de declaração no PV. Já a ER nº 52/19 ampliou a competência do PV para o julgamento de medidas cautelares em ADIs e demais classes processuais cuja matéria tivesse jurisprudência dominante. A universalização do PV, porém, ocorreu em 2020. Em razão da pandemia de Covid-19, a corte editou a ER nº 53/20, autorizando que qualquer processo pudesse ser julgado nesse ambiente virtual. Foi inegável, desde então, o aprimoramento da interação entre o público e o tribunal, bem como dos mecanismos de publicidade.
Atualmente, os julgamentos no PV seguem o seguinte trâmite: com antecedência mínima de cinco dias úteis e por indicação do relator (não do presidente do tribunal ou da Turma), publica-se a inclusão do processo na pauta de sessão virtual. Os advogados, então, podem encaminhar arquivos com a sua sustentação oral e seu memorial até 48 horas antes do início do julgamento. O julgamento começa com a divulgação do relatório e voto do relator. A partir de então, os outros membros do tribunal têm o prazo de seis dias úteis para se manifestarem. É possível que os advogados apresentem questões de fato e novos memoriais em razão do voto do relator. Os demais ministros podem votar de quatro maneiras: (1) acompanhar o relator; (2) acompanhar o relator com ressalvas, (3) divergir do relator; ou (4) acompanhar a divergência. Além dessas opções, eles podem também interromper o julgamento com (5) pedido de vista ou (6) de destaque para julgamento em ambiente presencial. Cabe frisar que os votos apresentados por cada ministro durante a sessão virtual podem ser acompanhados em tempo real pelo site do STF [9]. Por fim, o resultado é disponibilizado ao fim do julgamento, computando, para fins de quórum, apenas os votos dos ministros que efetivamente manifestaram o seu posicionamento.
Esse novo modelo decisório, entretanto, não tem sido assimilado sem resistência. No recente Ofício nº 815/2023-GPR, o presidente da OAB criticou a inclusão de ações penais em PV sob o argumento de que "a realização de sustentação oral em tempo real, e não apenas por registro audiovisual prévio ao julgamento, possibilita que os argumentos das partes sejam apresentados de forma mais eficaz e clara". Miguel Godoy e Eduardo Borges, em sentido semelhante, argumentam que o PV tem se caracterizado como um ambiente de colegialidade meramente formal, com pouco estímulo à deliberação entre os ministros [10]. Pedro Adamy, por sua vez, argumenta que, no PV, "os julgadores recebem pouca ou nenhuma influência das partes envolvidas" [11].
A par das críticas, que devem ser consideradas para fins de aprimoramento, não há dúvidas de que o PV inaugurou um novo modelo decisório, paralelo ao plenário presencial, com virtudes e defeitos próprios. Se a ideia inicial era o de mimetizar as características do julgamento presencial — o ministro Alexandre de Moraes chegou a caracterizar o PV como um avatar do plenário físico [12] —, a experiência tem mostrado que há particularidades marcantes à deliberação num ou noutro ambiente, com efetivos ganhos no PV.
Em obra monográfica sobre o tema, Camila Nascimento compara os principais elementos do PV em face ao presencial, chegando a importantes conclusões. Consoante à autora, o modo de deliberação do PV, iniciando-se com a disponibilização do voto do relator e das sustentações orais, ocasiona que os ministros formulem votos de maneira mais consciente e construtiva, dialogando com os principais apontamentos do relator. Tal atitude é contrastante à dinâmica do plenário presencial, em que os ministros comparecem ao julgamento com votos já prontos, baseados em suas próprias percepções sobre o caso, com pouca ou nenhuma interlocução prévia com os pares e advogados.
No PV, exige-se que os ministros se manifestem seguindo algum entre os quatro posicionamentos possíveis a partir das conclusões do relator [13], o que os leva a interagirem com os argumentos dos demais ministros, ainda que de forma assíncrona e escrita. Já no plenário presencial, os votos são apresentados de maneira fracionada e desordenada, sem qualquer liame argumentativo entre si. Cada ministro profere uma decisão individual para o caso, sem compromisso com as conclusões alcançadas pelos outros colegas.
A partir dessas observações, a autora conclui que o PV, mesmo adotando formalmente o modelo decisório seriatim, aproxima-se dos modelos per curiam ou majoritarian practice, já que cria incentivos para que a opinião da corte seja expressa numa única decisão colegiada dos que aderiram à corrente vencedora, apesar da revelação dos votos vencidos [14]. Tal prática auxilia a identificação da ratio decidendi do precedente, conferindo maior segurança jurídica e racionalidade ao sistema.
A autora ressalta ainda que, quanto à interação entre a corte e os advogados, também há ganhos deliberativos no PV. Isso porque, durante a sessão virtual, as partes têm oportunidade de apresentar argumentos após o voto do relator, por meio da entrega de memoriais e contato direto com os gabinetes dos ministros, o que aumenta consideravelmente o impacto persuasivo de suas intervenções [15].
3. Sincretismo deliberativo: entre o presencial e o virtual
Se, por um lado, com o PV há um incremento deliberativo na fase decisória, o mesmo não pode ser dito com relação à fase de exposição argumentativa por parte dos advogados. Na linha das críticas mencionadas, a qualidade dos momentos de interlocução entre a corte e as partes é um fator relevante de legitimidade. O mero encaminhamento de arquivos com as sustentações orais, sem qualquer interação com os julgadores, não parece satisfazer os anseios dos jurisdicionados. Há a necessidade de que as partes se sintam efetivamente integrantes do processo decisório, com reais chances de influir no resultado.
Nesse sentido, cabe destacar que mesmo o modelo atual de julgamento presencial, no qual os votos são previamente elaborados pelos ministros, tampouco parece ser satisfatório, na medida que as sustentações orais arriscam tornar-se mera formalidade procedimental, visto que, com as posições dos magistrados já definidas, os argumentos produzem pouco impacto à construção da decisão.
Para sanar esse problema, autores têm sugerido, na linha da proposta do ministro Barroso, a cisão do processo de deliberação. André Rufino, por exemplo, defende que, "para alcançar melhores resultados quanto à amplitude informativa e cognitiva, as sustentações orais deveriam ocorrer em momento distinto e anterior à sessão plenária" [16]. Paula Pessoa, similarmente, propõe um procedimento bifásico, em que, numa primeira fase, seriam disponibilizados o voto do relator, as sustentações orais e os votos divergentes, enquanto a segunda fase envolveria o engajamento argumentativo dos ministros com as propostas de voto para, então, ser proferida a decisão da corte [17].
Assim, parece-nos possível imaginar um desenho institucional que sincretize o que há de melhor em cada um dos plenários (virtual e presencial), dividindo o processo deliberativo em duas etapas. A primeira, síncrona e presencial, seria dedicada à interação entre os membros da corte e os advogados, de forma que as sustentações orais efetivamente inaugurariam um diálogo sobre os principais argumentos constitucionais do caso, nos moldes como ocorrem as arguições perante a Suprema Corte dos EUA. Isso exigiria do relator a elaboração de um documento público, com as principais questões a serem enfrentadas no caso, a fim de balizar os debates na corte. A segunda etapa, deliberativa, seria assíncrona e virtual. A partir da disponibilização do voto do relator, iniciar-se-ia a colheita dos votos dos demais magistrados em sessão virtual, nos moldes como já ocorre no PV. Sugere-se, como aprimoramento, que, caso haja voto divergente, a sessão se renove por mais seis dias úteis, para que os novos argumentos sejam considerados pelos pares.
Parece-nos que a adoção de tais alternativas aprimoraria a deliberação no âmbito do STF e aumentaria a legitimidade da corte perante a comunidade jurídica e a sociedade civil. No aniversário de 35 anos da Constituição, a ser comemorado no próximo dia 5 de outubro, uma das melhores surpresas que se possa imaginar seria a aprovação de medidas que incorporem, ainda que parcialmente, o cenário institucional acima desenhado e, por tal, tragam melhorias sensíveis aos trâmites deliberativos necessários à resguarda do texto constitucional.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/stf-sob-barroso-estuda-dar-tempo-para-ministro-digerir-argumentos-de-advogados.shtml.
[2] SILVA, Virgílio Afonso. Deciding without deliberating. International Journal of Constitutional Law, nº 11, p. 557-584, 2015; e BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia. Modelo decisório do Supremo Tribunal Federal e duas sugestões de mudança. Conjur, dezembro de 2010 https://www.conjur.com.br/2010-dez-28/retrospectiva-2010-prudencias-ousadias-mudancas-necessarias-stf.
[3] SILVA, Virgílio Afonso. Um voto qualquer?: o papel do Ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista Estudos Institucionais, v. 1, n. 1, p. 180–200, 2015.
[4] SILVA, Virgílio Afonso. Big Brother is watching the court: effects of TV broadcasting on judicial deliberation. Verfassung und Rechtin Ubersee, vol. 51, p. 467-455, 2018; e SILVA, Virgílio Afonso; MENDES, Conrado Hubner. Entre a transparência e o populismo judicial. In: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1105200908.htm.
[5] André Rufino destaca que o STF "possui atualmente um sistema de normas, procedimentos e práticas de deliberação que pouco favorecem essa noção de colegialidade (…) cultiva-se abertamente naquele tribunal uma cultura de individualismo e de atuação monocrática por parte de cada magistrado". (Argumentação Constitucional: um estudo sobre a deliberação nos tribunais constitucionais. São Paulo: Almedina, 2019, p. 444).
[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/lula-alega-seguranca-e-sugere-que-votos-dos-ministros-do-stf-sejam-sigilosos.shtml.
[7] O plenário virtual na pandemia da Covid-19. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022, p. 8.
[8] O termo aqui é utilizado na acepção de Mangabeira Unger, no sentido de se perguntar "como podemos mudar a análise jurídica de forma que ela possa preencher sua vocação primeira numa sociedade democrática e esclarecida: informar-nos, como cidadãos, na tentativa de imaginarmos e de debatermos nossos futuros alternativos". (O direito e o futuro da democracia. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 9)
[9] Inicialmente, somente os ministros tinham acesso aos votos dos demais colegas durante o período de deliberação. No ponto, é de se louvar a atuação da OAB que, ainda no início da pandemia, encaminhou o Ofício nº 16/2020-PCO, requerendo a adaptação do PV aos requisitos de transparência e publicidade dos julgamentos, o que foi acatado pelo STF com a edição da Resolução nº 675/2020, definindo que o relatório, o voto e as eventuais sustentações orais devem ser disponibilizados no site do STF ainda durante a sessão de julgamento do PV.
[10] A expansão da competência do plenário virtual no STF: colegialidade formal e déficit de deliberação. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 12, nº 1, 2022.
[11] Plenário virtual em matéria tributária – déficit deliberativo e violações constitucionais. Revista de Direito Tributário Atual, nª 46, 2020, p. 529.
[12] Expressão retirada do debate travado entre os ministros no julgamento da QO nas ADIs 5.399, 6.191 e 6.333, em 9 de junho de 2022.
[13] 1. Acompanhar o relator; 2. Acompanhar o relator com ressalvas; 3. Divergir do relator; ou 4. Acompanhar a divergência.
[14] O Plenário Virtual, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 200-201.
[15] Op. Cit., p. 171-172.
[16] Op. Cit., p. 453.
[17] Engrenagens do desempenho deliberativo do STF nos julgamentos virtuais. Jota, 19 de nov. 2020.
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