Observatório Constitucional

O futuro da deliberação no STF: entre o virtual e o presencial

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

30 de setembro de 2023, 8h00

1. Os déficits deliberativos nos julgamentos presenciais do STF
Às vésperas do aniversário de 35 anos da Constituição Federal, noticiou-se que o novo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, pretende alterar a tradicional forma de deliberação nos julgamentos presenciais da corte, a guardiã da aniversariante.

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A proposição inclui cindir a sessão em dois momentos: um primeiro, de arguição oral e interação da corte com os advogados das partes e dos amici curiae; e um segundo, de deliberação entre os magistrados. A iniciativa visa conferir maior prazo para que os ministros possam refletir acerca dos argumentos apresentados à tribuna [1]. Se adotada, a medida representará uma mudança radical à deliberação do tribunal, marcada por sessões longas, com a leitura de extensos votos previamente preparados por cada ministro, nas quais é notável o baixo intercâmbio de ideias entre as sustentações orais e os votos, bem como entre os votos dos próprios ministros.

A proposta, portanto, vem em boa hora. São inúmeros os estudos acadêmicos que diagnosticam problemas na prática deliberativa da corte. Há críticas recorrentes, que merecem atenção, como, por exemplo, (1) a forma fragmentada como os votos são colhidos, sem a formação de um verdadeiro consenso acerca da ratio decidendi do julgado [2]; (2) a falta de interação entre os juízes, que transparece na pouca influência dos argumentos do relator nos votos dos demais membros do tribunal [3]; e (3) a superexposição da corte [4] que, aliada a algumas regras regimentais [5], incentiva posturas individualistas, em detrimento da colegialidade. Até mesmo o presidente da República se aventurou a opinar recentemente sobre o tema, sugerindo a adoção de um modelo de deliberação a portas fechadas, sem publicizar como votou cada ministro [6].

Não é possível, contudo, refletir sobre o modelo decisório do STF sem esmiuçar o cenário atual, no qual a grande maioria dos processos não são julgados no Plenário presencial, mas no Plenário Virtual (PV), no qual a votação se dá de maneira assíncrona. De acordo com dados fornecidos pelo STF, em 2021, 98,7% das decisões colegiadas ocorreram no PV [7]. É claro que esta metamorfose institucional não ocorreu sem críticas, mas merecem destaque os fortes indícios de que o PV trouxe um incremento deliberativo. Em exercício de experimentalismo institucional [8], o presente artigo busca imaginar alternativas que contemplem as potencialidades de ambos os ambientes decisórios (presencial e virtual), estabelecendo relação de simbiose entre os dois modelos.

2. O Plenário Virtual e suas potencialidades
O PV foi inicialmente criado pela Emenda Regimental (ER) nº 21/07 para o julgamento da repercussão geral. O sucesso levou ao seu desenvolvimento: a ER nº 51/16 possibilitou o julgamento de agravos internos e embargos de declaração no PV. Já a ER nº 52/19 ampliou a competência do PV para o julgamento de medidas cautelares em ADIs e demais classes processuais cuja matéria tivesse jurisprudência dominante. A universalização do PV, porém, ocorreu em 2020. Em razão da pandemia de Covid-19, a corte editou a ER nº 53/20, autorizando que qualquer processo pudesse ser julgado nesse ambiente virtual. Foi inegável, desde então, o aprimoramento da interação entre o público e o tribunal, bem como dos mecanismos de publicidade.

Atualmente, os julgamentos no PV seguem o seguinte trâmite: com antecedência mínima de cinco dias úteis e por indicação do relator (não do presidente do tribunal ou da Turma), publica-se a inclusão do processo na pauta de sessão virtual. Os advogados, então, podem encaminhar arquivos com a sua sustentação oral e seu memorial até 48 horas antes do início do julgamento. O julgamento começa com a divulgação do relatório e voto do relator. A partir de então, os outros membros do tribunal têm o prazo de seis dias úteis para se manifestarem. É possível que os advogados apresentem questões de fato e novos memoriais em razão do voto do relator. Os demais ministros podem votar de quatro maneiras: (1) acompanhar o relator; (2) acompanhar o relator com ressalvas, (3) divergir do relator; ou (4) acompanhar a divergência. Além dessas opções, eles podem também interromper o julgamento com (5) pedido de vista ou (6) de destaque para julgamento em ambiente presencial. Cabe frisar que os votos apresentados por cada ministro durante a sessão virtual podem ser acompanhados em tempo real pelo site do STF [9]. Por fim, o resultado é disponibilizado ao fim do julgamento, computando, para fins de quórum, apenas os votos dos ministros que efetivamente manifestaram o seu posicionamento.

Esse novo modelo decisório, entretanto, não tem sido assimilado sem resistência. No recente Ofício nº 815/2023-GPR, o presidente da OAB criticou a inclusão de ações penais em PV sob o argumento de que "a realização de sustentação oral em tempo real, e não apenas por registro audiovisual prévio ao julgamento, possibilita que os argumentos das partes sejam apresentados de forma mais eficaz e clara". Miguel Godoy e Eduardo Borges, em sentido semelhante, argumentam que o PV tem se caracterizado como um ambiente de colegialidade meramente formal, com pouco estímulo à deliberação entre os ministros [10]. Pedro Adamy, por sua vez, argumenta que, no PV, "os julgadores recebem pouca ou nenhuma influência das partes envolvidas" [11].

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A par das críticas, que devem ser consideradas para fins de aprimoramento, não há dúvidas de que o PV inaugurou um novo modelo decisório, paralelo ao plenário presencial, com virtudes e defeitos próprios. Se a ideia inicial era o de mimetizar as características do julgamento presencial — o ministro Alexandre de Moraes chegou a caracterizar o PV como um avatar do plenário físico [12] —, a experiência tem mostrado que há particularidades marcantes à deliberação num ou noutro ambiente, com efetivos ganhos no PV.

Em obra monográfica sobre o tema, Camila Nascimento compara os principais elementos do PV em face ao presencial, chegando a importantes conclusões. Consoante à autora, o modo de deliberação do PV, iniciando-se com a disponibilização do voto do relator e das sustentações orais, ocasiona que os ministros formulem votos de maneira mais consciente e construtiva, dialogando com os principais apontamentos do relator. Tal atitude é contrastante à dinâmica do plenário presencial, em que os ministros comparecem ao julgamento com votos já prontos, baseados em suas próprias percepções sobre o caso, com pouca ou nenhuma interlocução prévia com os pares e advogados.

No PV, exige-se que os ministros se manifestem seguindo algum entre os quatro posicionamentos possíveis a partir das conclusões do relator [13], o que os leva a interagirem com os argumentos dos demais ministros, ainda que de forma assíncrona e escrita. Já no plenário presencial, os votos são apresentados de maneira fracionada e desordenada, sem qualquer liame argumentativo entre si. Cada ministro profere uma decisão individual para o caso, sem compromisso com as conclusões alcançadas pelos outros colegas.

A partir dessas observações, a autora conclui que o PV, mesmo adotando formalmente o modelo decisório seriatim, aproxima-se dos modelos per curiam ou majoritarian practice, já que cria incentivos para que a opinião da corte seja expressa numa única decisão colegiada dos que aderiram à corrente vencedora, apesar da revelação dos votos vencidos [14]. Tal prática auxilia a identificação da ratio decidendi do precedente, conferindo maior segurança jurídica e racionalidade ao sistema.

A autora ressalta ainda que, quanto à interação entre a corte e os advogados, também há ganhos deliberativos no PV. Isso porque, durante a sessão virtual, as partes têm oportunidade de apresentar argumentos após o voto do relator, por meio da entrega de memoriais e contato direto com os gabinetes dos ministros, o que aumenta consideravelmente o impacto persuasivo de suas intervenções [15].

3. Sincretismo deliberativo: entre o presencial e o virtual
Se, por um lado, com o PV há um incremento deliberativo na fase decisória, o mesmo não pode ser dito com relação à fase de exposição argumentativa por parte dos advogados. Na linha das críticas mencionadas, a qualidade dos momentos de interlocução entre a corte e as partes é um fator relevante de legitimidade. O mero encaminhamento de arquivos com as sustentações orais, sem qualquer interação com os julgadores, não parece satisfazer os anseios dos jurisdicionados. Há a necessidade de que as partes se sintam efetivamente integrantes do processo decisório, com reais chances de influir no resultado.

Nesse sentido, cabe destacar que mesmo o modelo atual de julgamento presencial, no qual os votos são previamente elaborados pelos ministros, tampouco parece ser satisfatório, na medida que as sustentações orais arriscam tornar-se mera formalidade procedimental, visto que, com as posições dos magistrados já definidas, os argumentos produzem pouco impacto à construção da decisão.

Para sanar esse problema, autores têm sugerido, na linha da proposta do ministro Barroso, a cisão do processo de deliberação. André Rufino, por exemplo, defende que, "para alcançar melhores resultados quanto à amplitude informativa e cognitiva, as sustentações orais deveriam ocorrer em momento distinto e anterior à sessão plenária" [16]. Paula Pessoa, similarmente, propõe um procedimento bifásico, em que, numa primeira fase, seriam disponibilizados o voto do relator, as sustentações orais e os votos divergentes, enquanto a segunda fase envolveria o engajamento argumentativo dos ministros com as propostas de voto para, então, ser proferida a decisão da corte [17].

Assim, parece-nos possível imaginar um desenho institucional que sincretize o que há de melhor em cada um dos plenários (virtual e presencial), dividindo o processo deliberativo em duas etapas. A primeira, síncrona e presencial, seria dedicada à interação entre os membros da corte e os advogados, de forma que as sustentações orais efetivamente inaugurariam um diálogo sobre os principais argumentos constitucionais do caso, nos moldes como ocorrem as arguições perante a Suprema Corte dos EUA. Isso exigiria do relator a elaboração de um documento público, com as principais questões a serem enfrentadas no caso, a fim de balizar os debates na corte. A segunda etapa, deliberativa, seria assíncrona e virtual. A partir da disponibilização do voto do relator, iniciar-se-ia a colheita dos votos dos demais magistrados em sessão virtual, nos moldes como já ocorre no PV. Sugere-se, como aprimoramento, que, caso haja voto divergente, a sessão se renove por mais seis dias úteis, para que os novos argumentos sejam considerados pelos pares.

Parece-nos que a adoção de tais alternativas aprimoraria a deliberação no âmbito do STF e aumentaria a legitimidade da corte perante a comunidade jurídica e a sociedade civil. No aniversário de 35 anos da Constituição, a ser comemorado no próximo dia 5 de outubro, uma das melhores surpresas que se possa imaginar seria a aprovação de medidas que incorporem, ainda que parcialmente, o cenário institucional acima desenhado e, por tal, tragam melhorias sensíveis aos trâmites deliberativos necessários à resguarda do texto constitucional.

 


[2] SILVA, Virgílio Afonso. Deciding without deliberating. International Journal of Constitutional Law, nº 11, p. 557-584, 2015; e BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia. Modelo decisório do Supremo Tribunal Federal e duas sugestões de mudança. Conjur, dezembro de 2010 https://www.conjur.com.br/2010-dez-28/retrospectiva-2010-prudencias-ousadias-mudancas-necessarias-stf.

[3] SILVA, Virgílio Afonso. Um voto qualquer?: o papel do Ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista Estudos Institucionais, v. 1, n. 1, p. 180–200, 2015.

[4] SILVA, Virgílio Afonso. Big Brother is watching the court: effects of TV broadcasting on judicial deliberation. Verfassung und Rechtin Ubersee, vol. 51, p. 467-455, 2018; e SILVA, Virgílio Afonso; MENDES, Conrado Hubner. Entre a transparência e o populismo judicial. In: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1105200908.htm.

[5] André Rufino destaca que o STF "possui atualmente um sistema de normas, procedimentos e práticas de deliberação que pouco favorecem essa noção de colegialidade (…) cultiva-se abertamente naquele tribunal uma cultura de individualismo e de atuação monocrática por parte de cada magistrado". (Argumentação Constitucional: um estudo sobre a deliberação nos tribunais constitucionais. São Paulo: Almedina, 2019, p. 444).

[7] O plenário virtual na pandemia da Covid-19. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022, p. 8.

[8] O termo aqui é utilizado na acepção de Mangabeira Unger, no sentido de se perguntar "como podemos mudar a análise jurídica de forma que ela possa preencher sua vocação primeira numa sociedade democrática e esclarecida: informar-nos, como cidadãos, na tentativa de imaginarmos e de debatermos nossos futuros alternativos". (O direito e o futuro da democracia. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 9)

[9] Inicialmente, somente os ministros tinham acesso aos votos dos demais colegas durante o período de deliberação. No ponto, é de se louvar a atuação da OAB que, ainda no início da pandemia, encaminhou o Ofício nº 16/2020-PCO, requerendo a adaptação do PV aos requisitos de transparência e publicidade dos julgamentos, o que foi acatado pelo STF com a edição da Resolução nº 675/2020, definindo que o relatório, o voto e as eventuais sustentações orais devem ser disponibilizados no site do STF ainda durante a sessão de julgamento do PV.

[10] A expansão da competência do plenário virtual no STF: colegialidade formal e déficit de deliberação. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 12, nº 1, 2022.

[11] Plenário virtual em matéria tributária – déficit deliberativo e violações constitucionais. Revista de Direito Tributário Atual, nª 46, 2020, p. 529.

[12] Expressão retirada do debate travado entre os ministros no julgamento da QO nas ADIs 5.399, 6.191 e 6.333, em 9 de junho de 2022.

[13] 1. Acompanhar o relator; 2. Acompanhar o relator com ressalvas; 3. Divergir do relator; ou 4. Acompanhar a divergência.

[14] O Plenário Virtual, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 200-201.

[15] Op. Cit., p. 171-172.

[16] Op. Cit., p. 453.

[17] Engrenagens do desempenho deliberativo do STF nos julgamentos virtuais. Jota, 19 de nov. 2020.

Autores

  • é procurador do Distrito Federal, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito pela New York University, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

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