Diário de Classe

De Kelsen a Schmitt — o que significa ser o guardião da Constituição?

Autores

  • Giovanna Dias

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Frederico Pessoa da Silva

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

30 de setembro de 2023, 8h00

O debate entre Carl Schmitt (1888-1985) e Hans Kelsen (1881-1973) não é uma novidade. Trata-se de um dos embates mais significativos para o direito no século 20, apesar das críticas contundentes direcionadas a ambos os filósofos. Apesar de não ser uma novidade, é sempre importante revisitá-lo e buscar, nele, conexões interessantes com as questões jurídicas complexas que se apresentam na atualidade. Suas visões divergiam profundamente em relação à natureza do direito, da soberania e do papel que uma Corte Constitucional ocupa em relação à guarda da Constituição. No fundo, trata-se de uma tensão entre o normativismo kelseniano, que se consolidaria apenas posteriormente, e o decisionismo schmittiano.

Foram diversos escritos de ambos os autores que concretizaram o que se chama de debate, mas o seu ápice se deu com a promulgação da Constituição Alemã (no final da República de Weimar) e da Constituição Austríaca, com a qual Kelsen contribuiu significativamente, tendo esse, por sua vez, sido um dos principais idealizadores do Tribunal Constitucional da Áustria.

A divergência, nesse contexto, girava em torno de saber qual a melhor maneira de se garantir a defesa da Constituição. Em 1928, Kelsen publicou o texto seminal que inaugurou a contenda entre ambos os gigantes, "A Jurisdição Constitucional", em que delineou a necessidade da existência de uma Corte Constitucional que promova essa defesa, uma vez que a função política da Constituição, nas palavras do jurista, é de estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder [1].

Por detrás dessa compreensão já era possível vislumbrar o que, em verdade, acabaria por ocupar o cerne nuclear do positivismo normativista kelseniano: a noção de que o elemento indivisível do ordenamento jurídico não é a vontade política de um soberano, mas uma norma. Mais que isso: uma norma provinda não de um ato de vontade, mas pressuposta por um ato de conhecimento. De pronto, é absolutamente relevante pontuar que a obra de consolidação do pensamento de Kelsen — Teoria Pura do Direito — não estava preocupada com isso que poderíamos denominar de "desenhos institucionais" [2], antes pelo contrário, eis que, como sempre frisado pela Crítica Hermenêutica do Direito, a interpretação judicial era reconduzida por Kelsen à zona da dita "política jurídica", âmbito de exercício autêntico de atos de imposição normativa por meio da vontade, o que resvala em um — talvez não querido pelo autor — realismo jurídico "na prática" (um certo "positivismo fático" como bem colocado por Lenio Streck).

Ainda assim, Kelsen sempre deixou claro como sendo uma das premissas basilares dos seus esforços reflexivos sobre Teoria do Direito a sua preocupação com relação à captura da "ciência do direito" — e das "ciências sociais" em geral — por discursos ideológicos de verniz político.

A (tentativa de) concretização dessa pretensão epistemológica manifesta-se na obra do autor em vários de seus aspectos, e com certeza um desses é a delimitação da natureza do ordenamento jurídico como um "sistema normativo dinâmico", no qual a validade de uma norma é derivada da confirmação de ter ela sido produzida a partir de uma "forma" estabelecida por outras normas superiores, até que, no fim desse "encadeamento" Kelsen posiciona uma norma final, que fecha todo o sistema, a "norma pressuposta fundamental", a qual, por sua vez, atribui validade jurídica à última norma positiva do sistema, i.e., à Constituição [3].

Essa norma final, por sua vez, é apresentada na Teoria Pura do Direito como um "postulado lógico transcendental" construído pela razão do "cientista do direito" para pensar o direito como um objeto "puramente" jurídico de análise — o que Warat denomina de "pureza ideológica" [4] — ainda que a realidade do fenômeno jurídico não seja em qualquer medida pura.

Nesse sentido, o Direito, visto a partir da perspectiva da ciência jurídica e de suas proposições, não representa um sistema normativo que tenha na "vontade política" o seu fundamento de validade. É apenas a partir da centralização do "conceito de Direito" na ideia de "norma" que a validade jurídica pode verdadeiramente ser delimitada. No momento dessas formulações apresentadas por Kelsen, o autor não tinha em vista a Jurisdição Constitucional ou o papel das Cortes Supremas na guarda da Constituição. Tratava-se apenas de uma pretensão de descrever o fenômeno do direito tal como ele se apresenta.

Todavia, ao partir para um debate sobre esses outros temas alheios à Teoria do Direito propriamente dita — na visão dele próprio —, Kelsen assumiu uma postura que partiu da ideia de "normatividade do texto constitucional", promovendo a defesa de um arranjo institucional específico que centralizou nas Cortes Constitucionais o papel de "cães de guarda" da Constituição. Isso porque, na sua perspectiva, ao mesmo tempo em que essas Cortes compartilham de uma função tão política quanto aquela exercida pelas instâncias de representação [5], exercem sua função jurisdicional nos limites precisos de um "processo de forma judiciária" [6], o qual detém, dentre numerosas virtudes percebidas por Kelsen, a capacidade de preservar os interesses de minorias que restariam silenciadas se a ordem constitucional fosse garantida pelas mesmas instâncias responsáveis pela atividade de representação política [7], tendo em vista que as Cortes Constitucionais deteriam, na visão de Kelsen, limitações "relativamente" mais fortes do que aquelas que constrangem a liberdade do legislador [8].

Schmitt, contudo, parte para o polo oposto, radicalizando a dimensão política da controvérsia e contestando essa "judicialização" das tensões sobre a Constituição, a qual, para tal autor, representava mais do que um texto normativo, mas uma verdadeira agregação da unidade do povo. Deste modo, para esse autor, era o presidente do Reich que deveria fazer a guarda da Constituição nos momentos de crise institucional, o que enfatizou com mais destaque em sua obra O Guardião da Constituição, publicada em 1931. É necessário salientar que suas ideias foram fertilizadas sob a ótica do Estado alemão, e que Schmitt teve uma relação inegável com o Partido Nacional-Socialista. Foi um autor que vivenciou as duas Grandes Guerras, de modo que seus pensamentos tiveram como horizonte o contexto de exceção política, preocupando-se com a homogeneidade e unidade do povo alemão.

O fundamento para entender o presidente do Reich como o legítimo guardião do pacto constitucional nesses momentos de crise encontra guarida nos pensamentos de Benjamin Constant acerca da existência de um poder neutro, intermediário e regulador, bem como no fato de Schmitt conferir ao Soberano uma posição central e definidora dos momentos de exceção política. Soberano é aquele que decide no limite do estado de exceção; é o responsável por guiá-lo e, no fim do dia, determinar a partir de quando se instaura a normatividade. Por mais que os demais Poderes sejam responsáveis por produzir as normas do sistema jurídico, é o Soberano quem vai autorizar que isso seja feito. O fundamento de todo o direito, nesse contexto, não é uma norma pressuposta fundamental, tal como acreditava Kelsen, mas sim uma decisão soberana que instaura, a partir do nada, uma ordem normativa, ou que autoriza a sua instauração, ponto fim ao caos [9].

A exceção, em Schmitt, vem como um conceito-limite para explicar o fenômeno jurídico, no sentido de que é uma decisão política que promove o seu fundamento, e não uma norma fundamental pressuposta por um ato de conhecimento, tal como Kelsen pressupunha. Para Schmitt, o guardião da Constituição não possui uma relação de subordinação com os demais Poderes, mas de coordenação, na medida em que é neutro, (pouvoir neutre et intermédiaire), localizado não acima, mas ao lado dos demais [10]. Lorenzo Córdova Vianello explica que as teorias que subordinam o direito ao poder possuem esse viés: identificam o Estado como um sistema de poderes que, em última análise, tomam as decisões coletivas e estabelecem, como consequência, o direito. O poder Soberano, nesse sentido, está no vértice desses poderes, e pode ser considerado como a fonte de todos eles, assim como a fonte das normas que por eles são produzidas [11]. Nesse viés, é o poder que cria o direito e, portanto, prevalece sobre ele, e a legitimidade desse poder político, centralizado na figura do Soberano, decorreria precisamente da compreensão de que ele reúne a vontade política mais profunda que uniria toda a comunidade política. Nesse sentido, "soberanas não são as regras do jogo; soberano é quem estabelece o início do jogo jurídico" [12].

Schmitt, ao contrário de Kelsen, repudiava a ideia de que uma Corte Constitucional pudesse figurar como guardiã da Constituição. Criticou o supremo tribunal dos Estados Unidos, que constantemente se colocava — e se coloca até hoje — como um guardião, enfatizando as diferentes experiências históricas experimentadas pelo Estado continental europeu [13]. Ele admite, no fundo, que os tribunais façam um controle acessório das leis, podendo, em casos específicos, negar a sua aplicação. Mas disso não decorre que eles exercem, fundamentalmente, a guarda da Constituição.

O autor ainda criticava a concepção da resolução judicial de todas as questões políticas como ideal do Estado de Direito, uma vez que isso resultaria não em uma juridicização da política, mas, sim, em uma politização da Justiça [14]. Percebe-se, a partir disso, que muitos países, incluindo o Brasil, têm incorporado a perspectiva de Kelsen no que diz respeito à guarda da Constituição, colocando o Poder Judiciário no centro dessa proteção, a partir de uma Corte Constitucional. Todavia, a preocupação de Schmitt era válida e relevante, não no sentido de sua conclusão (a de conferir ao presidente do Reich essa função), mas no sentido de identificar uma demasiada expectativa de que essa mesma Corte Constitucional se coloque como defensora e resolvedora de questões políticas que, à princípio, devem ser resolvidos no âmbito do diálogo legislativo.

Identifica-se, no contexto atual, que a própria Corte Constitucional, sob o fundamento de guardar os preceitos gerais da Constituição e com a pretensão de suprir essa expectativa social, por vezes promovem decisões que deveriam ser estabelecidas no âmbito dos demais Poderes, quando não o fazem em contrário ao que já foi, de fato, decidido nos demais Poderes. Assim, contraditoriamente, sob a pretensão de se colocar como guardiã da Constituição, por vezes negam a sua própria aplicabilidade, na medida em que se inserem em âmbito decisório que está constitucionalmente fora das suas atribuições. Resta, portanto, o questionamento: o que significa, de fato, ser o guardião da Constituição?

 


[1] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 240.

[2] LOPES, Ziel Ferreira. Como uma democracia lida com desacordos jurídicos? Estado da Arte, 24 jul 2020. Disponível em https://estadodaarte.estadao.com.br/democracia-desacordos-juridicos-ziel-lopes/.

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[4] WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis: Editora da UFSC, 1983.
 

[5] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, p. 251.

[6] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, p. 264-266.

[7] Seja pela força de uma maioria concreta, ou até mesmo de uma minoria que contingencialmente se fez vencedora no processo político. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, 181.

[8] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, p. 126.

[9] JÚNIOR, Ronaldo Porto Macedo. O decisionismo jurídico de Carl Schmitt. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 21 jan 2011, p. 203.

[10] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2007, p. 193.

[11] VIANELLO, Lorenzo Córdova. La contraposición entre derecho y poder desde la perspectiva del control de constitucionalidad en Kelsen y Schmitt. Cuestiones Constitucionales, n. 15, 2006, p. 48.

[12] JÚNIOR, Ronaldo Porto Macedo. O decisionismo jurídico de Carl Schmitt. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 21 jan 2011, p. 205.

[13] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2007, p. 20.

[14] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2007, p. 33.

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