Opinião

A regulação administrativa por entidades privadas e o caso da ABNT

Autores

  • Maurício Zockun

    é advogado sócio da Zockun Advogados professor de Direito Administrativo nos cursos de graduação especialização mestrado e doutorado da PUC-SP livre-docente e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. 

  • Carolina Zancaner Zockun

    é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC) mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

28 de setembro de 2023, 6h11

O que é regulação?
Especialmente no passado as leis previam detalhadamente os casos de sua incidência, o momento da sua aplicação e como os particulares deviam ou não deviam se comportar em face das suas disposições. Nesses casos, afirma-se que a norma veiculada na lei é completa ou autoexecutável, pois a irradiação dos seus efeitos se dá sem a necessidade de produção normativa ulterior, seja em nível legal ou infralegal.

Spacca
Ao lado dessas leis, outras veiculam normas incompletas, pois o objeto nelas identificado para fins de incidência ou o comportamento e/ou a abstenção que se pretende impor ao particular demanda complementação por outra norma, de mesmo nível hierárquico ou não. Esse é o campo das denominadas "leis quadro", inspiração das denominadas lois cadre, do direito francês.

Quando leis de baixa densidade normativa — campo das "leis quadro" — impõem a atuação do Estado, o Poder público se encontra na contingência de realizar a denominada regulação administrativa. Assim, dá-se a regulação administrativa nos casos em que o objeto ou matéria legislada já está veiculada em lei formal, mas de modo incompleto tornando a lei não "autoexecutável". Nestas circunstâncias, incumbirá ao Estado, no exercício da função administrativa, desenvolver aquela matéria legislada, conferindo-lhe contornos técnicos e/ou objetivos, sem o que a norma edificada não terá aptidão para irradiar os seus efeitos.

Regulação administrativa: um conceito "retrofitado"
Modernamente a regulação administrativa está atrelada ao denominado "poder normativo das agências reguladoras". Em rigor, trata-se de um "banho de loja" dado ao instituto, incutindo-lhe ares mais contemporâneos, mas, em absoluto rigor, é um instituto centenário.

Um conhecido exemplo de regulação administrativa são as denominadas "normas penais em branco", cujo preceito normativo não está suficientemente desenvolvido em lei formal. Daí porque, ainda no campo penal, Guilherme de Souza Nucci [1] reconhece a legitimidade de esta regulação administrativa complementar um conceito veiculado em lei sem que, com isto, seriam inobservados os princípios da legalidade e da tipicidade.

Estribado na teoria das normas e tipos penais — em tudo aplicável aos mais variados ramos do direito —, pode-se afirmar que, no campo do direito público, o desenvolvimento do preceito normativo contido na lei por meio da regulação administrativa — editada no exercício de função administrativa — é elemento integrante e indissociável daquele.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello teve a felicidade de captar a essência do que modernamente se denomina regulação administrativa, ainda que ao seu tempo outra fosse a designação, qual seja regulação autorizada ou delegada. Disse ele: "Os regulamentos autorizados ou delegados são aqueles emanados pelo Executivo em razão de habilitação legislativa que lhe é conferida pelo Legislativo, porém nos termos dessa determinação de competência, para desenvolver os preceitos constantes da lei de habilitação, que delimita seu âmbito a respeito (…) De certo modo, portanto, os dispositivos complementares, em desenvolvimento, estão virtualmente contidos na lei de habilitação, embora tenha uma força de alterar a ordem jurídica anterior" [2].

Logo como se materializada a regulação administrativa? Por meio dos centenários e conhecidos regulamentos autorizados e delegados (e não por meio de regulamento autônomos, este manifestamente incompatível com a nossa ordem jurídica).

Logo, dá-se a legítima regulação administrativa quando o objeto ou matéria legislada já está veiculada e plasmada em lei formal, circunstância em que incumbirá ao Estado, no exercício da função administrativa, desenvolver aquela matéria legislada, conferindo-lhe contornos técnicos e/ou objetivos, sem o que a norma edificada não terá aptidão para irradiar os seus efeitos.

Regulação administrativa "sob homologação estatal"
Dizia Geraldo Ataliba que o direito tributário nada mais é do que um apêndice hipertrofiado do direito administrativo [3]. Em larga medida Geraldo Ataliba estava (e continua estando) correto, pois a atividade desempenhada pelo Estado na aplicação da lei tributária é disciplinada por institutos típicos do denominado direito administrativo "raiz".

Mas essa hipertrofia que o direito tributário ganhou no curso da história é relevante, pois nesse singular campo ganhou corpo um especial modo de participação do particular no desempenho de algumas atividades estatais; seja de modo voluntário ou coercitivo. Faz-se especial referência ao denominado lançamento tributário.

Com efeito, o Código Tributário Nacional (CTN) prevê o denominado lançamento por homologação. E no que, em síntese, consiste esse lançamento por homologação? Por meio dele, a lei impõe ao particular o dever de periodicamente apurar a grandeza econômica passível de tributação, calcular o valor do tributo eventualmente devido, informar a fiscalização tributária a apuração realizada e, sendo o caso, realizar o pagamento do tributo. Passados cinco anos da remessa dessas informações sem que haja qualquer espécie de manifestação ou oposição da Administração Tributária, presume-se legítima a apuração realizada pelo particular e, por essa razão, correto o pagamento eventualmente efetuado pelo particular ou a falta de pagamento.

Denomina-se essa presunção de "homologação tácita" do lançamento realizado pelo particular, o que os administrativistas chamariam de efeito positivo do silêncio da Administração Pública.

E o que isso tem de haver com a regulação administrativa? Tudo!

Como a mudança do papel do Estado implementada desde a década de 90, o Poder Público vem deixando de desempenhar diretamente o que a ordem jurídica lhe impõe. Com isso, vem-se delegando o exercício da regulação administrativa aos particulares, sob a sua ulterior homologação (como ocorre no lançamento tributário, nosso conhecido há mais de 70 anos).

E sem ingressar no movediço campo das dissenções doutrinárias — pois aqui os rótulos que pretendem disciplinar esse fenômeno são amplos e variados —, optamos denominar essa hipótese de regulação administrativa "sob homologação estatal", ainda que alguns denominem essa figura de autorregulação [categoria distinta da denominada autorregulação privada, instituto por meio do qual os particulares pretendem autorregular as atividades que desempenham no campo privado, como se dá no âmbito do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), o que pode não ser uma boa solução, como já se noticiou neste Conjur a propósito da proposta de autorregulação das plataformas digitais].

Casos de regulação administrativa "sob homologação estatal"
A regulação administrativa "sob homologação estatal" não é incomum e já foi examinada, por exemplo, nesta ConJur em relação ao setor ferroviário em razão do advento da Lei federal 14.273, de 2021.

No entanto, o mais longevo "case" de sucesso desse modelo está em curso entre nós desde 1962: a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Pois bem, em 1962 o então presidente João Goulart sancionou a Lei federal 4.150 prevendo que 1) nas concessões federais, naquelas subvencionadas pelo governo federal e em todas as contratações públicas, "…será obrigatória a exigência e aplicação dos requisitos mínimos de qualidade, utilidade, resistência e segurança usualmente chamados 'normas técnicas' e elaboradas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, nesta lei mencionada pela sua sigla 'ABNT'; 2) anualmente, caso o Poder Público pretenda a edição ou a atualização de uma norma técnica, deveria solicitar que a ABNT até 31 de março; 3) que a observação das normas ABNT viabilizaria 'o uso de rótulos, selos, letreiros, sinetes e certificados demonstrativos da observância das normas técnicas chamadas 'marcas de conformidade'"; 4) que as "marcas de conformidade" devem ser consideradas pelo Instituto de Resseguro do Brasil para fins de cobertura de risco elementares; e 5) a ABNT será subvencionada pelo Estado, o que vem ocorrendo até hoje.

Desde então as normas técnicas editadas pelas ABNT são acolhidas pela legislação como sinônimo de "conformidade" de produtos e adequado padrão de fabricação e prestação de serviços.

Estudantes de Direito conhecem muito bem a força normativa das normas da ABNT ao elaborarem os seus trabalhos de conclusão de curso, suas dissertações de mestrado, seus artigos acadêmicos e suas teses de doutorado. O atendimento às normas editadas pela ABNT nos trabalhos acadêmicos é um capítulo à parte do sofrimento da vida estudantil. A necessidade de observância das normas técnicas editadas pela ABNT é prevista, ainda, 1) no novo Marco Legal da Ferrovias (Lei federal 14.273), cujo artigo 54 assina que "o transporte de produtos perigosos será realizado em conformidade com a legislação ambiental e com as disposições do autorregulador ferroviário ou, na sua ausência, com as normas da ABNT"; 2) na nova lei de licitações e contratações públicas (Lei federal 14.133), que em seu artigo 42, I, assinala que a boa qualidade do bem a ser fornecido para a Administração se dá pela comprovação de que ele atende as normas técnicas oficiais ou da ABNT; 3) como condição para o cumprimento do Plano de manutenção de instalações e equipamentos de sistemas de climatização de ambientes (artigo 3º, parágrafo único, da Lei federal 13.589), dentre outras.

Qualitativa participação popular na regulação administrativa "sob homologação estatal"
Pois bem, mesmo antes do advento da Lei da Liberdade Econômica e da Lei das Agências Reguladoras Federais, reconhecia-se que a regulação administrativa deve ser preferencialmente precedida de audiência pública, participação dos interessados e procedimento de Análise de Impacto Regulatório (AIR); a Anvisa, por exemplo, foi uma das pioneiras na adoção do AIR.

E porque a regulação administrativa é publicizada, aberta aos diversos atores do setor regulado, no que se inclui a população, e acrescida de AIR? Para viabilizar que as normas a serem eventualmente editadas a esse propósito colham em adequada magnitude os interesses a serem disciplinados, de modo que a regulação administrativa a ser produzida atinja o resultado mais adequado possível, sem prejuízo do paulatino acompanhamento dos resultados perpetrados em razão dessa regulação [denominado de procedimento de Análise de Resultado Regulatório (ARR)].

Assim, a qualitativa participação do administrado na regulação administrativa é um dos desideratos democráticos em vista dos quais se busca o desenvolvimento de uma atividade estatal mais eficiente e afinada à adequada persecução do interesse público. Afinal, não se poder regular de costas para o administrado.

Ora, se a regulação administrativa "sob homologação estatal" é uma espécie da regulação administrativa, em princípio nela também deve ser assegurada a qualitativa participação do administrado.

E dizemos que essa qualitativa participação dos administrados é, em princípio, possível, pois antevemos a possibilidade de essa regulação administrativa ter por exclusivo destinatário os operadores do setor regulado. Nesse caso, como a regulação administrativa ‘sob homologação estatal’ não causa impacto direto aos administrados em geral, não se justifica essa qualitativa participação dos administrados; ao menos não na sua integralidade.

Esse parece ser esse o caso, por exemplo, de parcela da legislativamente denominada autorregulação do setor ferroviário, que tem por um dos objetivos fixar os "padrões exclusivamente técnico-operacionais da execução do transporte ferroviário" (artigo 44, I, da Lei federal 14.273). No entanto, nos casos em que essa regulação pretende assegurar a "neutralidade com relação aos interesses dos usuários" (artigo 44, IV, da Lei federal 14.273), evidentemente que os usuários devem participar desse processo, pois eles podem ser atingidos por essa regulação. Aliás, neste caso vislumbrando-se, inclusive, a possibilidade de realização de AIR, de forma a apurar se a regulação administrativa "sob homologação estatal" que se pretende realizar será efetivamente neutra em relação aos usuários.

A ausência da qualitativa participação popular na regulação administrativa "sob homologação estatal": o caso ABNT
Como se viu, os atos normativos técnicos editados pela ABNT têm grande impacto na sociedade. No entanto, não se prevê a participação popular qualitativa na produção dessas normas técnicas.

Esse descompasso é compreensível.

Afinal, a lei que prevê a adoção das normas pela ABNT em diversas relações entabuladas pelo Poder Público foi publicada em 1962, ao passo que o AIR e o ARR foram previstos legislativamente apenas em 2019. Entre 1962 e 2016 houve um grande avanço no modo de produção de regulação administrativa ‘sob homologação estatal’ que, no entanto, não foi incorporado na disciplina normativa relacionada à ABNT.

No manual que disciplina a participação popular no processo de elaboração de normas da ABNT não se faz qualquer espécie de referência ao AIR ou ao ARR. Segundo esse manual, "Durante a Consulta Nacional, qualquer pessoa ou entidade pode enviar comentários e sugestões. Todos os comentários são analisados e respondidos pela Comissão de Estudo responsável, que realiza reunião para análise das considerações recebidas. Todos os interessados que se manifestaram durante o processo de Consulta Nacional são convidados a participar desta reunião, a fim de deliberarem, por consenso, se este Projeto de Norma deve ser aprovado como Documento Técnico ABNT".

Há uma inegável defasagem no modelo da regulação administrativa "por homologação estatal" realizada pela ABNT, mormente diante da existência das figuras como o AIR e o ARR, que não são observados na produção das normas técnicas por aquela entidade.

A ABNT já esteve na vanguarda da regulação administrativa, sendo premente a necessidade de incorporação dos instrumentos que proporcionam a qualitativa participação popular, sob pena de aquela entidade ser protagonismo da vanguarda do atraso nesse campo. Afinal, adaptar-se não é uma opção; é uma exigência dos nossos tempos e da nossa ordem jurídica.

 


[1] Curso de direito penal: parte geral: artigos 1º a 120 do código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 156 -159.

[2] Princípios gerais de direito administrativo. Volume I: Introdução. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 363 e 364 (item 39.3).

[3] Hermenêutica e sistema constitucional tributário. Interpretação no direito tributário. Geraldo Ataliba (coord.). São Paulo: Saraiva; EDUC, 1975.

Autores

  • é advogado sócio da Zockun Advogados, professor da PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e diretor científico do Instituto de Direito Administrativo Paulista (IDAP). Presidente da Comissão especial de Direito Administrativo do Conselho Federal da OAB.

  • é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC), mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

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