Público & Pragmático

A Lei Federal nº 14.273/21 e a autorregulação regulada no setor ferroviário

Autor

  • Vitor Soliano

    é mestre em Direito Público (UFBA) professor da Faculdade Baiana de Direito membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

13 de março de 2022, 8h00

O novo Marco Legal das Ferrovias (Lei Federal nº 14.273/2021) já foi objeto de dois artigos nesta coluna. Neste texto, trataremos de outra inovação importante da nova lei: a possibilidade de instituição de mecanismo de autorregulação no setor ferroviário.

Embora o conceito seja altamente disputado e precisões terminológicas sejam difíceis, podemos dizer que a autorregulação se caracteriza pelo exercício de funções regulatórias (normativas, fiscalizatórias, adjudicatórias etc.) por entidades privadas ou público-privadas. Diferente da "mera" participação de particulares no processo de regulação pública estatal, na autorregulação os particulares regulados possuem papel mais ativo e determinante na regulação.

O gênero autorregulação abarca uma significativa diversidade de fenômenos que vai desde a autorregulação privada total, em que são produzidas normas de comportamento para os próprios particulares que decidem se autorregular, passando por mecanismos de delegação ou reconhecimento de espaços de autorregulação privada supervisionada por entidade pública, até a estruturação de entidades de natureza híbrida, público-privadas, incumbidas do exercício da função regulatória. Em comum, as várias formas de autorregulação implicam algum tipo de autolimitação, autovinculação e "autonormação".

Equipamentos e serviços de infraestrutura pública [1] compõem o setor que tradicionalmente mais legitimam algum tipo de regulação econômica estatal clássica. Seja em razão das falhas de mercado que possuem, seja em razão da natureza essencial ou estratégica desses serviços e equipamentos, seja em razões dos múltiplos, complexos, dispersos e conflitantes interesses e expectativas que neles estão envolvidos, os setores de infraestrutura pública tendem a atrair e autorizar a regulação econômica estatal tradicional, realizada diretamente por entidades públicas (heterorregulação). Em verdade, pode-se dizer que os setores de infraestrutura estão na origem do surgimento da teoria da regulação econômica.

Esta constatação, contudo, não deve conduzir à conclusão de que esses setores sejam infensos à autorregulação. Em primeiro lugar, porque não se verifica razões a priori para que os atores econômicos não possam tentar construir, espontânea e privadamente, boas práticas nos seus respectivos setores. Em segundo lugar, porque não se verifica, também a priori, impedimentos constitucionais para que a legislação ordinária obrigue, delegue, autorize ou reconheça espaços privados de regulação no setor de infraestrutura.

Neste sentido, a Lei Federal nº 14.273/21 consagrou no seu artigo 5º, IX o estímulo à autorregulação como uma das diretrizes que devem guiar a exploração econômica de ferrovias. Consigna, ao mesmo tempo, que a autorregulação deverá ser supervisionada, regulada e fiscalizada pelo poder público. De saída, fica claro que a nova legislação optou pelo mecanismo da autorregulação regulada. Contudo, o que isto significa(rá)?

O artigo 43 do novo diploma dispõe que as operadoras ferroviárias podem associar-se livremente na forma de pessoa jurídica sem fins lucrativos para promover autorregulação. A autorregulação será realizada na forma da lei, do seu regulamento e do estatuto da associação. O caput do dispositivo traça as diretrizes fundamentais da autorregulação: (1) é opcional; (2) será realizada por uma entidade criada pelas operadoras ferroviárias [2]; (3) será balizada pelos contornos da própria lei e da sua regulamentação.

Uma questão digna de nota é que a lei não diferenciou, para fins de participação na autorregulação, os operadores ferroviários que receberam outorga por concessão (artigo 8º, II) ou autorização (artigo 8º, I). Ambos os tipos de operadores, portanto, poderão se engajar em autorregulação.

A princípio a lei não previu a possibilidade de os agentes transportadores ferroviários [3] integrarem a associação autorreguladora. Contudo, parece possível sustentar que não há proibição neste sentido, especialmente quando se considera as funções que serão desempenhadas pela autorregulação, como se verá na sequência.

A entidade autorreguladora deverá ser uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos e sua função geral deverá ser gerenciar, mediar e dirimir questões e conflitos de natureza técnico-operacional, conforme estipula o artigo 3º, II da nova lei.

Quanto à esfera de ação, o autorregulador recebeu do artigo 44 da nova lei um leque significativo de funções: instituição de normas de padrões técnicos e operacionais da execução do transporte ferroviário; conciliação de conflitos entre seus membros, excetuados os de ordem comercial; coordenação, planejamento e administração em cooperação do controle operacional das malhas ferroviárias operadas pelos membros do autorregulador ferroviário; autorregulação e coordenação da atuação dos seus membros para assegurar neutralidade com relação aos interesses dos usuários; solicitação ao órgão regulador de revogação e de alteração de normas incompatíveis com a eficiência ou com a produtividade ferroviárias; articulação com órgãos e com entidades da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para conciliação do uso da via permanente de seus membros com outras vias terrestres e com os demais modos de transporte e aprovação de programas de gestão de manutenção, de riscos e de garantias das operações de transportes.

O dispositivo, portanto, sinaliza a esfera fundamental de ação autorregulatória: questões de natureza técnica e operacional [4]. Ademais, aponta para as grandes funções regulatórias da entidade: normativa, arbitral/mediadora e de coordenação. Implicitamente, pode-se dizer que algum grau de competência fiscalizadora foi atribuída ao autorregulador, assim como é possível defender que ele poderá exercer funções certificadoras em questões técnicas e operacionais.

O propósito da lei em atribuir destaque à autorregulação em questões técnicas e operacionais fica claro na redação do seu artigo 46, parágrafo único. Estabelece o dispositivo que a regulação desses temas será feita prioritariamente pelo autorregulador. O regulador ferroviário [5] só poderá intervir nestas questões de forma excepcional.

Seguindo o núcleo comum das estruturas autorreguladoras, o artigo 43, §2º da lei estabelece que o estatuto da associação autorreguladora poderá instituir normas vinculantes para as suas associadas. Trata-se, portanto, de norma legal que atribui efeitos vinculantes a normas criadas privadamente pelos seus próprios destinatários.

O autorregulador também exercerá influência sobre a capacidade de transporte das ferrovias. De acordo com o artigo 3º, III da nova lei, capacidade de transporte é a capacidade de tráfego máxima de um trecho ferroviário, observadas as premissas técnicas e operacionais de segurança, expressa pela quantidade de trens que podem circular, nos dois sentidos, em um período determinado. Logo, as entidades autorreguladoras terão uma participação na definição da capacidade de transporte, já que podem se engajar em questões técnicas.

Por fim, o artigo 18 determina que os contratos de concessão de ferrovias firmados a partir da data de publicação da nova lei devem prever recursos para o desenvolvimento tecnológico do setor e para a preservação da memória ferroviária. As verbas para desenvolvimento tecnológico do setor devem ser utilizadas em programas prioritários, observadas as diretrizes emitidas pelo Poder Executivo, em parceria com diferentes instituições, inclusive entidades de autorregulação ferroviária.

Como se disse acima, ao mesmo tempo em que instituiu espaços de autorregulação no setor ferroviário, a Lei Federal nº 14.273/21 atribuiu ao Estado deveres de fiscalização, supervisão e regulação da autorregulação. Ou seja, a atuação privada na atividade regulatória será relevante, mas limitada.

De início, é possível dizer que a ação autorregulatória se submete aos princípios e diretrizes do setor ferroviário positivados nos artigos 4º e 5º da nova lei. Desta forma, os deveres de proteção e respeito aos direitos dos usuários, preservação do meio ambiente, aumento da oferta de mobilidade e de logística, defesa da concorrência, regulação equilibrada, promoção de desenvolvimento econômico e social, adoção e difusão das melhores práticas do setor ferroviário [6] e garantia da qualidade dos serviços e da efetividade dos direitos dos usuários, estímulo ao investimento em infraestrutura, à integração de malhas ferroviárias e à eficiência dos serviços, incentivo ao uso racional do espaço urbano, à mobilidade eficiente e à qualidade de vida nas cidades, dentre outros, também deverão guiar a autorregulação. Além disso, o exercício da autorregulação também sofrerá condicionamentos da futura regulamentação da lei, seja por decreto ou por resoluções.

Em complemento, a nova lei manteve as funções regulatórias dos reguladores ferroviários. Na órbita federal, esta competência é exercida pela ANTT, por força, especialmente, do artigo 25 da Lei Federal nº 10.233/01.

Ademais, a nova lei, incluindo o inciso IX no citado dispositivo, atribuiu à ANTT a competência de supervisionar as associações privadas de autorregulação ferroviária. Esta competência foi ratificada pelo artigo 46 do novo Marco Legal das Ferrovias. Nas ferrovias delegadas a Estados e Municípios, os reguladores subnacionais também terão estes poderes (artigo 3º, XIII da nova lei).

Embora o papel, as formas e os espaços de supervisão ainda precisem ser adequadamente definidos, inclusive para não esvaziar a autorregulação, esta competência é central para caracterizar o modelo escolhido pelo novo Marco.

A competência mediadora/arbitral da ANTT também foi mantida. Caberá à agência decidir/mediar questões gerais não resolvidas diretamente pelos atores econômicos do setor ou pela entidade autorreguladora. É o que se extrai do artigo 46 da nova lei e da nova redação dada ao artigo 25, V da Lei Federal nº 10.233/01.

Com o propósito de tentar reduzir os riscos de abuso por parte dos autorreguladores, a nova lei estipula que as operadoras ferroviárias não associadas não se submetem às normas editadas pela entidade autorreguladora (artigo 43, §3º). Igualmente, proíbe que o autorregulador edite normas que dificultem ou impeçam a interconexão da malha por operadora ferroviária não associada ao autorregulador (artigo 44, §1º). Por fim, as normas editadas pelos autorreguladores que interfiram na competitividade do setor ficam sujeitas ao controle pelas entidades de defesa da concorrência que poderão requerer manifestação do regulador ferroviário para subsidiar sua decisão (artigo 47).

Os dispositivos citados são centrais no exercício da supervisão da autorregulação. Um dos principais receios com esta estratégia regulatória é exatamente a criação de espaços para favorecimentos indevidos, restrições à competição e capturas regulatórias.

Além disso, a nova lei também exerce um grau de tutela sobre a estrutura de governança do autorregulador. Em primeiro lugar, o artigo 2º, II, "e" da nova lei estipula que compete à União (através da ANTT) realizar e manter, na forma da regulamentação, o registro dos atos constitutivos autorreguladores.

Em segundo lugar, estabelece o seu artigo 45 que o autorregulador ferroviário será dirigido em regime de colegiado, nos termos de seu estatuto, e que os diretores devem ser escolhidos entre os representantes das operadoras ferroviárias associadas e devem ter experiência técnico-operacional em ferrovias e notório conhecimento das melhores práticas do setor ferroviário. Ademais, o artigo 44, §2º determina que o autorregulador possua programa de integridade e canal de ouvidoria. O devido cumprimento desses deveres será, obviamente, supervisionado e fiscalizado pelo regulador ferroviário.

Por fim, os projetos para o desenvolvimento tecnológico do setor e para a preservação da memória ferroviária que serão financiados com os recursos de que tratam o artigo 18 da lei serão previamente aprovados pelo regulador ferroviário (artigo 18, §3º). Esta exigência é importante pois, como se viu, as entidades de autorregulação poderão ser destinatárias destes recursos. Logo, a supervisão do regulador é central para minorar os riscos de conflito de interesse.

A Lei Federal nº 14.273/21 insere o setor ferroviário em uma nova fase da regulação de infraestruturas públicas. O diploma assume que pode haver benefícios em atribuir espaços de autorregulação no setor, especialmente na resolução de conflitos e na tutela de questões técnicas e operacionais. Ao mesmo tempo, demanda que o exercício privado de regulação seja permanentemente regulado, supervisionado e fiscalizado por entidade pública.

O modelo de autorregulação regulada escolhido tenta conjugar as vantagens da regulação privada com as finalidades coletivas e publicísticas da regulação pública. Em breve o setor ferroviário será regulado por um entrelaçamento de normas privadas e normas públicas.

 


[1] Tradicionalmente são considerados de infraestrutura pública os setores de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos (logística), transmissão e distribuição de energia elétrica e transporte e distribuição de gás natural (energia), transmissão de dados e radiofrequência (telecomunicações), abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto (saneamento básico).

[2] Os operadores ferroviários são as pessoas jurídicas que receberam outorga para concomitante gestão da ferrovia e operação de seu transporte ferroviário, de acordo com o artigo 3º, XII da nova lei.

[3] Os agentes transportadores ferroviários são pessoas jurídicas responsáveis pelo transporte ferroviário de cargas, desvinculada da exploração da infraestrutura ferroviária, de acordo com o artigo 3º, inciso I da nova lei. O dispositivo consagra a possibilidade de desverticalização do setor ferroviário.

[4] Exemplos de questões técnicas e operacionais: padrões e rotinas de manutenção do material rodante de terceiros que o operador ferroviário deve seguir em caso de compartilhamento da infraestrutura (artigo 42, §§ 1º e 2º), padrões e cuidados no transporte de produtos perigosos (artigo 54), idade máxima do material rodante, velocidade máxima dos trens em determinadas condições, dentre outras.

[5] Conforme estipular o artigo 3º, XIII da nova lei, regulador ferroviário é o órgão ou a entidade da União, dos estados ou dos municípios que tenha a atribuição de regular e de fiscalizar a gestão da infraestrutura e o transporte ferroviário de cargas ou de passageiros.

[6] De acordo com o artigo 3º, X da nova lei, melhores práticas do setor ferroviário são as práticas e procedimentos compatíveis com padrões adotados por operadoras ferroviárias prudentes e diligentes, sob condições e circunstâncias semelhantes, relativamente a aspecto ou aspectos operacionais, comerciais, ambientais e de segurança relevantes para a gestão ferroviária de primeira linha habitualmente empregados no setor ferroviário nacional e internacional.

Autores

  • é mestre em Direito Público (UFBA), professor da Faculdade Baiana de Direito, membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

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