Seguros Contemporâneos

Seguros para grandes riscos, seguros massificados e a isonomia (parte 2)

Autores

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Guilherme Bernardes

    é advogado e sócio de Chalfin Goldberg e Vainboim Advogados e mestre em Direito e Ciência Jurídica—Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

28 de setembro de 2023, 8h00

Dando continuidade à primeira parte deste artigo, passemos a analisar como os ordenamentos estrangeiros tratam a diferença entre seguros massificados e de grandes riscos. Na Europa, a distinção é objeto expresso da Diretiva 2009/138/CE, de 25/11/2009, chamada "Solvência II".

Spacca
O artigo 13º, nº 27, traz a definição do que qualifica um seguro para grandes riscos, fazendo-o de modo tipológico e quantitativo. A letra a) do dispositivo refere a determinados tipos de contratos de seguros que se amoldam à natureza dos grandes riscos e a letra c) menciona critério quantitativo, a ser observado no balanço contábil, movimento líquido de negócios e número de empregados. A presença de dois desses três pressupostos também elege o seguro à categoria dos grandes riscos [1].

Nesses termos, essa diferença de tratamento é observada em diversos Estados-membros da Comunidade Europeia. Veja-se, assim, na Espanha, a Ley nº 50/1980, especialmente os artigos 2º, 44 e 107, nº 2. O artigo 2º determina a aplicabilidade da lei a todos os contratos de seguros, ao passo que os artigos 44 e 107, nº 2, excepcionam o tratamento protetivo aos contratos de seguros para grandes riscos:

"Artículo 2

Las distintas modalidades del contrato de seguro, en defecto de Ley que les sea aplicable, se regirán por la presente Ley, cuyos preceptos tienen carácter imperativo, a no ser que en ellos se disponga otra cosa. No obstante, se entenderán válidas las cláusulas contractuales que sean más beneficiosas para el asegurado.

Artículo 44

[…]

No será de aplicación a los contratos de seguros por grandes riesgos, tal como se delimitan en esta Ley, el mandato contenido en el artículo 2 de la misma

Artículo 107.

1. La ley española sobre el contrato de seguro será de aplicación al seguro contra daños en los siguientes casos: a) Cuando se refiera a riesgos que estén localizados en territorio español y el tomador del seguro tenga en él su residencia habitual, si se trata de persona física, o su domicilio social o sede de gestión administrativa y dirección de los negocios, si se trata de persona jurídica. b) Cuando el contrato se concluya en cumplimiento de una obligación de asegurarse impuesta por la ley española.

2. En los contratos de seguro por grandes riesgos las partes tendrán libre elección de la ley aplicable" (grifou-se).

Em Portugal, o Decreto Lei nº 72/2008, em seus artigos 12º e 13º, estabelece os regimes de imperatividade absoluta e relativa, flexibilizando-os quando os contratos em questão forem de grandes riscos. Observem-se, assim, os numerais 2 desses dois dispositivos:

"Artigo 12º

Imperatividade absoluta

[…]

2 – Nos seguros de grandes riscos admite-se convenção em sentido diverso relativamente às disposições constantes dos artigos 59.º e 61.º

Artigo 13º

Imperatividade relativa

[…]

2 – Nos seguros de grandes riscos não são imperativas as disposições referidas no número anterior" (Grifou-se).

A essa altura, cumpre abrir um breve parêntese para trazer a lição de J. C. Moitinho de Almeida, quando examinou a versão primitiva do PLC nº 29 — à época tramitava na Câmara dos Deputados o PL nº 3.555/2004. A propósito da inexistência de distinção entre os seguros para grandes riscos e os massificados, assim afirmou o festejado autor português:

"IV – Grandes riscos

23. Exclusão de disposições imperativas

O Projecto contempla inúmeras disposições imperativas que se não justificam no caso de seguros de grandes riscos. A exemplo, entre outras, das leis portuguesas (artigos 12º., nº. 2, e 13º, nº. 2), espanhola (artigos 2º e 44º), e alemã (§ 210º, da VVG) afigura-se de se estabelecer a distinção e de permitir a livre contratação de tais seguros" [2].

Fecha-se o parêntese e caminha-se à França, cujo Code des Assurances também determina tratamento distinto para seguros de grandes riscos e massificados. O artigo L-111-6 conceitua os grandes riscos e o artigo L.181-1, numeral 5, dispõe que cabe às partes a escolha da lei aplicável quando o contrato de fundo for do grupo grandes riscos [3].

Ainda na Europa, a lei de seguros alemã, de 2008, em seu artigo 210, reproduz de maneira idêntica os termos da Diretiva 2009/138, também definindo tratamento diferente para os seguros de grandes riscos e os seguros massificados [4].

Prosseguindo, caso se pense que os ordenamentos jurídicos europeus não devam influenciar o legislador brasileiro ao argumento de que no velho mundo há menos assimetria de informação entre segurados e seguradoras, então passe-se ao exame dos ordenamentos latino-americanos.

Na Argentina, a Ley nº 17.418/1967, em seu artigo 158, estabelece regime que se assemelha ao português, ao referir-se a algumas normas inderrogáveis, outras derrogáveis, o que se amolda à necessidade de maior flexibilidade aos seguros para grandes riscos [5].

"Obligatoriedad de las normas

Art. 158. Además de las normas que por su letra o naturaleza son total o parcialmente inmodificables, no se podrán variar por acuerdo de partes los artículos 5, 8, 9, 34 y 38 y sólo se podrán modificar en favor del asegurado los artículos 6, 7, 12, 15, 18 (segundo párrafo), 19, 29, 36, 37, 46, 49, 51, 52, 82, 108, 110, 114, 116, 130, 132, 135 y 140.

Cuando las disposiciones de las pólizas se aparten de las normas legales derogables, no podrán formar parte de las condiciones generales. No se incluyen los supuestos en que la ley prevé la derogación por pacto en contrario" (grifou-se).

O Chile apresenta regime ainda mais liberal. A Ley nº 20.667/2013, em seu artigo 542, § 2º, estabelece plena liberdade à contratação dos seguros para grandes riscos. Noutras palavras, a lei chilena é imperativa para todos os contratos de seguros, mas, quando os contratantes forem pessoas jurídicas e o prêmio da ordem de US$ 7.000, o diploma legal converte-se em dispositivo [6].

Finalizando o exame do direito estrangeiro latino-americano, a Colômbia, por intermédio da Ley nº 35, de 1993, excepcionou aos seguros para grandes riscos o tratamento protetivo previsto na Ley nº 45, de 1990 [7]; e no Peru, a Ley nº 29.946/2012, artigo 3º, determina que quando as partes negociarem o clausulado, a lei tornar-se-á dispositiva [8].

Concluindo, Argentina, Chile, Peru e Colômbia preveem tratamento legal distinto para seguros de grandes riscos e seguros massificados, a revelar, portanto, que o que se observou na Europa é comumente adotado em nossos países vizinhos.

Se assim é, pode-se afirmar, com convicção redobrada, que não cabe ao PLC nº 29/2017 reinventar essa roda, sob pena de prejudicar os próprios segurados. Refletindo em perspectiva a respeito da eventual aprovação desse texto do PL, que não distingue seguros de perfis completamente diferentes, é possível que seguradoras que operam em grandes riscos no País comecem a se desinteressar pelo mercado local. A considerar que essas empresas são, majoritariamente, multinacionais, igualmente presentes nos países vizinhos da região, não seria difícil imaginar que ao invés de seguir operando no Brasil, redirecionasse suas energias a países próximos, com regimes legais próprios ao desenvolvimento de seguros dessa natureza.

De maneira resumida, e, talvez propondo um paralelo exagerado, assim como a Consolidação das Leis do Trabalho não deve tratar o operário de chão de fábrica e um diretor de instituição financeira da mesma forma, o PL de seguros não pode empregar tratamento igual a negócios jurídicos claramente desiguais. Isto seria um severo atentado ao princípio da isonomia e, principalmente, aos longos anos de avanços da doutrina e jurisprudência consumeristas no país, que, baseada na principiologia constitucional de proteção ao consumidor, diferenciou pessoas físicas de pessoas jurídicas e criou, dentro deste último grupo, uma categoria apta à tutela protetiva, contanto que apresentem situação de vulnerabilidade [9].

Para terminar, deseja-se ir além das fronteiras dos contratos de seguros e refletir de maneira mais abrangente, iluminando o caminho a ser trilhado pelo intérprete quando estiver lidando com contratos concebidos no âmbito de relações paritárias (empresariais). Assim, recorre-se à lição de Paula Forgioni que, com lucidez, estabelece critério certeiro:

"Definição dos contratos empresariais. A exclusão dos contratos com consumidores. Fixadas essas premissas, conclui-se que os contratos com consumidores (ou "B2C", na terminologia estadunidense) não mais integram o direito comercial. […] a confusão entre os contornos do direito comercial e do direito do consumidor pode comprometer a percepção dos fundamentos do primeiro. As matérias possuem lógicas diversas, de forma que a aplicação do Código do Consumidor deve ficar restrita às relações de consumo, ou seja, àquelas em que as partes não se colocam e não agem como empresa. De outra parte, se o vínculo se estabelece em torno ou em decorrência da atividade empresarial de ambas as partes, premidas pela busca do lucro, não se deve subsumi-lo à lógica consumerista, sob pena de comprometimento do bom fluxo de relações econômicas." [10]

O milenar princípio da isonomia nos ensina, de maneira aristotélica, que aos iguais deve ser aplicado tratamento igual e aos desiguais, tratamento desigual, na exata medida em que se desigualem. O PLC 29/2017, tal como posto, perde uma oportunidade preciosa para, em definitivo, tornar o nosso País afeito ao desenvolvimento dos seguros para grandes riscos.

Por último e a propósito da ADI 7.074, proposta pelo Partido dos Trabalhadores contra a Resolução CNSP nº 407, essencialmente ao argumento de que o referido órgão não teria competência para legislar sobre seguros, o PLC 29 acaba por desperdiçar outra excelente oportunidade porque, a uma só vez, poderia resolver o que se discute nessa ADI, tornando, assim, prejudicado o seu objeto, além de redirecionar o Brasil à direção do quanto se observa tanto na Europa, quanto na América Latina, em termos de seguros para grandes riscos [11].

 


[1] Esses critérios tipológico e quantitativo também são observados na Resolução CNSP nº. 407, que trata dos contratos de seguros de danos para grandes riscos.

[2] MOITINHO DE ALMEIDA, J. C. Contrato de seguro. Estudos. In Algumas observações sobre o Projecto de Lei brasileiro nº. 3.555, de 2004. Lisboa: Coimbra ed., 2009. p. 266.

[3] « Article L111-6 Modifié par LOI n°2023-171 du 9 mars 2023 – art. 1 Sont regardés comme grands risques : 1° Ceux qui relèvent des catégories suivantes : a) Les corps de véhicules ferroviaires, aériens, maritimes, lacustres et fluviaux ainsi que la responsabilité civile afférente auxdits véhicules ; b) Les marchandises transportées ; c) Le crédit et la caution, lorsque le souscripteur exerce à titre professionnel une activité industrielle, commerciale ou libérale, à condition que le risque se rapporte à cette activité ; d) Les installations d'énergies marines renouvelables, définies par un décret en Conseil d'Etat ; 2° Ceux qui concernent l'incendie et les éléments naturels, les autres dommages aux biens, la responsabilité civile générale, les pertes pécuniaires diverses, les corps de véhicules terrestres à moteur ainsi que la responsabilité civile, y compris celle du transporteur, afférente à ces véhicules, lorsque le souscripteur exerce une activité dont l'importance dépasse certains seuils, dans des conditions définies par décret en Conseil d'Etat. Article L181-1 […] 5° Pour les grands risques tels qu'ils sont définis à l'article L. 111-6, les parties ont le libre choix de la loi applicable au contrat. » (Grifou-se). Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/download/pdf/legiOrKali?id=LEGITEXT000006073984.pdf&size=2,2%20Mo&pathToFile=/LEGI/TEXT/00/00/06/07/39/84/LEGITEXT000006073984/LEGITEXT000006073984.pdf&title=Code%20des%20assurances. Acesso em 2.8.2023.

[5] "Este art. 158 de la Ley de Seguros conforma una suerte de ‘mínimo de orden público’, cuyo loable objetivo es la adecuada protección de los derechos de los asegurados dentro de un marco de razonabilidad jurídica, equidad y buena fe. Para cumplir con tal objetivo el artículo en cuestión establece que determinadas normas de la Ley de Seguros son inmodificables, otras son modificables pero solamente a favor del asegurado y las restantes en principio sería libremente modificables dentro del principio de la autonomía de la voluntad." (LOPEZ SAAVERDA, Domingo M. Ley de seguros 17.418 comentada y anotada. Buenos Aires: La Ley, 2009. p. 275).

[6] Disponível em: https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1050848. Acesso em 2.8.2023.

[7] Ordóñez, Andrés E. Ordóñez. JARAMILLO, Carlos Ignacio. BARRERA, Carlos Darío. Aniversario del Código de Comercio: pasado, presente y futuro de la regulación del contrato de seguro en el Código de Comercio Colombiano de 1.971. Disponível em https://www.emercatoria.edu.co/PAGINAS/VOLUMEN11/HTML1/139.html. Acesso em 30.7.2023.

[8] "Artículo III. El contrato de seguro se celebra por adhesión, excepto en las cláusulas que se hayan negociado entre las partes y que difieran sustancialmente con las preredactadas" Disponível em https://www2.congreso.gob.pe/Sicr/TraDocEstProc/Expvirt_2011.nsf/Repexpvirt?OpenForm&Db=201100028&View. Acesso em 2.8.2023.

[9] Neste sentido, trecho de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça: "2. No âmbito desta Corte Superior se consolidou Teoria Finalista Mitigada acerca da aplicação da legislação consumerista, segundo a qual se prestigia o exame da vulnerabilidade no caso concreto, isto é, se existe, na hipótese analisada, uma evidente superioridade de uma das partes da relação jurídica capaz de afetar substancialmente o equilíbrio da relação" (STJ, REsp nº 1.926.477/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 18 out. 2022).

[10] FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: RT, 2009. p. 29-34.

[11] A ADI 7-74 foi distribuída em 8/2/2022 e encontra-se conclusa ao min. relator, rr. Gilmar Mendes, desde 31.5.2022.

Autores

  • é sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, advogado, parecerista, doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec, professor na FGV Direito Rio, FGV Conhecimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e na Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) e da Revista Jurídica da CNSeg.

  • é advogado formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ULisboa). Foi professor de Seguros de Riscos Cibernéticos da Escola de Negócios e Seguros, além de lecionar na pós-graduação do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEPED/Uerj) e na Escola Mineira de Direito (EMD).

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